Índia: “O Sistema de Saúde indiano afundou-se”

Um sistema hospitalar em crise que não pode responder ao Covid, daí as terríveis imagens, transmitidas pelos meios de comunicação social, de trabalhadores indianos a morrer em frente aos hospitais por falta de cuidados, falta de camas, falta de médicos e enfermeiros.

No nosso país, os órgãos da Comunicação social deram sistematicamente conta, nas últimas semanas, da situação catastrófica (em número de infectados e de mortes por Covid-19) que existe na Índia – considerada “a maior democracia do mundo” – mas “esqueceram-se” de indicar as causas políticas e sociais geradoras dessa catástrofe. Nomeadamente, não referiram o problema central da privatização em massa dos serviços públicos de Saúde, desde a década de 1960.

Transcrevemos uma entrevista (1) com a enfermeira Surya Prakash, Presidente da União de Saneamento Hospitalar e do Sindicato das Enfermeiras da Central sindical AICCTU (de Nova Deli), que faz um relato detalhado dessas causas.

Na Índia, o Sistema de Saúde pública é considerado como sendo gratuito. Com um investimento público de menos de 4% do PIB em cada ano, os sucessivos governos – tanto o do Congresso Nacional Indiano como o actual BJP (Partido do Povo Indiano) – aprofundaram a incúria que reina neste sector. Ele está entregue a entidades privadas que estão a transformar regiões da Índia em grandes Centros de saúde para turistas ricos.

A PRIVATIZAÇÃO DOS CUIDADOS DE SAÚDE

Como a nossa camarada Surya Prakash nos afirmou, com esta segunda vaga da pandemia e as políticas de Modi (o actual Primeiro-ministro), “o Sistema de Saúde indiano entrou em colapso”. Os trabalhadores indianos já não podem contar com os hospitais, que têm sido sistematicamente privatizados.

Desde 1960, foi introduzida a concorrência entre os sectores público e privado, a qual se tornou ainda mais acentuada, na década de 70, através da abertura de numerosas clínicas privadas geridas por médicos do NRI (Non Resident Indian – Indianos não residentes). Em 1982, o Governo “reconheceu não somente a importância do sector privado na prestação de cuidados de saúde, mas acima de tudo a importância das autoridades públicas apoiarem o desenvolvimento do sector privado, a fim de atingir o objectivo da «saúde para todos em 2000».” No seguimento das várias crises financeiras (de 1990 e de 2008), são as parcerias público-privadas que irão acabar de liquidar os hospitais públicos. Actualmente, existem 0,5 camas de hospital por 1.000 habitantes na Índia (1).

Em Abril de 2018, o governo de Modi anunciou o programa Aayushman Bharat, que visa dar cobertura de saúde a cerca de quinhentos milhões de pessoas. Isto rondará os 1,7 mil milhões de dólares por ano, os quais, na sua maioria, irão parar às mãos de entidades privadas. Desde a sua criação, as clínicas privadas têm afirmado que não são capazes de oferecer os seus serviços a baixo custo, mesmo com subsídio governamental.

Esta privatização não permite a implementação de uma verdadeira política de Saúde pública. Em cada ano morrem 600 mil pessoas vítimas de doenças respiratórias, incluindo 420 mil mortes por tuberculose; há uma taxa de mortalidade infantil de quarenta e três por mil partos (taxa multiplicada por três, entre os trabalhadores mais pobres, para os quais o mais pequeno ferimento pode ser fatal).

QUEM É RESPONSÁVEL?

Este Sistema hospitalar em crise não pode responder ao Covid. E daí as terríveis imagens, veiculadas pela Comunicação social, de trabalhadores indianos a morrerem em frente aos hospitais, por falta de cuidados, por falta de camas, por falta de médicos e de enfermeiros.

Se muitos têm sido anunciados como mortos provocados pelo Covid, a contabilidade das mortes não diz nada sobre os que morrem por doenças não diagnosticadas ou daqueles que morrem escondidos das câmaras da televisão.

E é com o mesmo desplante, tal como em muitos outros países, que o Governo se dirige ao povo com uma “comunicação” que é infantilizante e completamente desfasada da realidade. Por exemplo, o ministro da Saúde, Harsh Vardhan, atreveu-se a declarar: “Não há arma maior do que usar máscara, lavar as mãos regularmente com sabão e manter a distância social.”

Uma máscara? O preço das máscaras cirúrgicas e das máscaras FFP2 foi multiplicado por quatro num ano, quando existem mais de 170 milhões de Indianos a viver com menos de dois dólares por dia. Lavagem das mãos? 75% da população não tem acesso a água potável. Distanciamento social? A densidade populacional, no Estado de Deli, excede os 4.000 habitantes por km².

MODI E OS CAPITALISTAS SÃO RESPONSÁVEIS

Surya Prakash responde-nos com este texto da AICCTU (2), publicado por ocasião da comemoração do Dia 1º de Maio: “O país inteiro parece um cemitério. As pessoas estão a morrer por falta de oxigénio, de medicamentos e de camas hospitalares. Isto já não pode ser chamado morte por Covid, porque as pessoas estão a morrer por causa do fracasso do governo de Modi na preparação da segunda vaga da pandemia.

Mais ninguém, a não ser o governo de Modi, é responsável pelas mortes cruéis e desumanas. Mas o governo Modi está a passar por cima dos cadáveres dos Indianos para assegurar lucros fabulosos aos gigantes da indústria farmacêutica. A vacina é exportada para o estrangeiro à custa de vidas de Indianos. As empresas estão autorizadas a aumentar o preço das vacinas no meio de uma pilha de cadáveres.

É responsabilidade do Governo fornecer vacinas gratuitas a todos, mas as pessoas estão a ser sacrificadas no altar dos lucros das empresas. As mortes incontáveis, a pobreza e a fome cada vez maiores, a perda de salários e dos empregos tornaram-se normais.”

SILÊNCIO E INDIFERENÇA DO GOVERNO ACELERAM A BARBÁRIE

O Governo deveria normalmente fornecer oxigénio engarrafado aos hospitais públicos. Mas, perante a sua inacção, está a desenvolver-se um verdadeiro mercado negro. Por exemplo, há botijas de oxigénio roubadas dos hospitais que, em seguida, são vendidas. Os medicamentos também não escapam à especulação: os seus preços foram multiplicados por vinte, no último mês. Há vitaminas e drogas que são vendidas fraudulentamente como medicamentos. No entanto, no início de 2021, Modi congratulava-se por a Índia ser a “maior farmácia do mundo”.

Dois juízes do Supremo Tribunal de Nova Deli acabam de ordenar ao governo de Modi que acabe com o bloqueio da distribuição de botijas de oxigénio, bem como para que forneça um relatório sobre a incúria que tem demonstrado ao deixar morrer milhares de pessoas.

Como Surya Prakash nos lembra, é a classe operária indiana que está a morrer: “Alguns trabalhadores migrantes estão a regressar à sua aldeia natal, pois não têm empregos nem salário… Outros nem sequer têm meios para regressar às suas aldeias… Todos têm fome e são pobres.”

Autoridades de diversos Estados, incentivadas pelo Governo central, têm cancelado os comboios destinados a reconduzir os chamados trabalhadores migrantes (que se deslocam de uma região para outra) para as suas aldeias de origem. Estes trabalhadores do sector informal viram-se assim condenados, tal como já tinha acontecido no primeiro confinamento, a morrer de fome, ou vítimas de doença, da falta de cuidados de saúde, de camas hospitalares e de oxigénio.

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(1) Em Portugal este número tem baixado nos últimos anos, mas em 2018 ainda era de 3,4 camas por 1000 habitantes, isto é, cerca de 7 vezes mais do que na Índia.

(2) A All India Central Council of Trade Unions (AICCTU) é a principal Central sindical dos trabalhadores indianos.

Entrevista conduzida por Dharesh HAKE e publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 653, de 6 de Maio de 2021, do Partido Operário Independente de França.

A propósito das vacinas contra o Coronavírus

Esta Carta Semanal (1) não é uma publicação da Ciência médica. Portanto, não nos cabe avaliar a eficácia ou os efeitos secundários das vacinas, mas sim comentar os aspectos políticos ligados a todo o processo.

O desastre da aplicação

A União Europeia comprou vacinas a vários laboratórios, assinando seis acordos, em condições secretas (incluindo o preço), com um custo total de 12.600 milhões de euros entre 2020 e 2021, e um possível custo adicional de 7.020 milhões. As doses serão distribuídas entre os vários Estados proporcionalmente à sua população. No entanto, a aplicação efectiva das vacinas está a ser, em toda a Europa, muito limitada, pondo em evidência o colapso dos sistemas de Saúde, após anos de cortes.

A Alemanha, o país que mais vacinas conseguiu distribuir, aplicou apenas 20% das vacinas que recebeu até Dezembro. A França, em dez dias (de 25 de Dezembro a 3 de Janeiro) apenas contava 500 vacinados, mas, ao mesmo tempo, o Estado mobilizou 100.000 polícias para controlar a população no dia 31 de Dezembro. Nos EUA, apenas 33% das vacinas recebidas foram administradas.

Noutros países, a vacinação é feita com critérios discriminatórios. Como por exemplo Israel, líder mundial em vacinação, que já aplicou a primeira dose a 12% da sua população, mas não distribuiu uma única dose entre os Palestinianos nos territórios ocupados.

Segundo dados divulgados até 6 de Janeiro, em Espanha foram administrados 18.7% das doses distribuídas, com variações entre 55% nas Astúrias ou 51% em Ceuta e 5% em Madrid e na Cantábria. O que não evita fricções entre os governos regionais. O de Madrid, que apenas repartiu 5% das doses recebidas, não parou de acusar o Governo central pelas poucas doses que entraram.

Em alguns casos, a vacinação tem significado mais um passo na privatização da Saúde. Em Madrid, foram privatizadas equipas de vacinação, mediante um contrato com a Cruz Vermelha, feito sem concurso público e que foi assinado antes de ser conhecido que as vacinas iriam ser distribuídas. Um contrato no valor total de 804.098 euros por 6 meses, que prevê um “lucro industrial” declarado de 10% (80.000 euros), e cobrirá 12 equipas móveis de enfermeiros e assistentes de enfermagem mais um coordenador. Mas as contas não fazem sentido. Por exemplo, em salários está prevista uma despesa mensal de 5.287€ para cada equipa; mas, segundo o Acordo sanitário privado de Madrid, o salário de uma enfermeira é de 1.246€ e o de um assistente de 1.122€, o que perfaz um total de 2.368€. Assim, o montante orçamentado é 2,23 vezes superior a este montante. Outras comunidades, tais como a Andaluzia, estão também a estudar a possibilidade de privatização.

Um negócio fabuloso…

Vacinar milhares de milhões de pessoas, em todo o mundo, constitui um negócio que pode superar os 100 mil milhões de dólares. Não esqueçamos que, pelas informações que transpareceram, a vacina da Pfizer custa cerca de 30€, a da Moderna 21€, e a da AstraZeneca 6€.

Comparando estes preços de venda com os investimentos declarados, é escandaloso. A Pfizer afirma ter investido na sua vacina “2 mil milhões de dólares” (1.700 milhões de euros) e especifica que “autofinanciou todos os custos da vacina”, para ter as mãos livres na hora de fixar os preços. Mas o seu parceiro durante o desenvolvimento da vacina, a BioNTech, recebeu ajudas públicas do Governo alemão, nada menos do que 375 milhões de euros.

Quanto à falta de financiamento público da vacina Pfizer, há que matizar esta afirmação, já que a Comissão Europeia assumiu antecipadamente compromissos de compra com cada produtor de vacinas, financiando em troca parte dos custos iniciais dos Laboratórios – financiamento a cargo do Instrumento de Assistência Urgente da União Europeia – como um pagamento por conta das vacinas que os Estados-membros irão efectivamente comprar.

Quer a Pfizer tenha ou não recebido ajuda estatal, as ajudas chovem sobre os Laboratórios farmacêuticos. Vários governos, Fundações (como a Bill & Melinda Gates) e doadores privados destinaram 6.901 milhões de euros para financiar a investigação ao vírus SRA-CoV-2. As remessas destinadas a vacinas atingem os 3.948,9 milhões de euros, absorvendo mais de metade de todos os gastos desembolsados pelos Laboratórios.

Com a Moderna, os EUA contrataram uma compra inicial no valor de 1.500 milhões de dólares.

A britânica AstraZeneca, que desenvolveu uma vacina em conjunto com a Universidade de Oxford, recebeu do governo de Donald Trump 1.089 milhões de euros através da Autoridade de Investigação e Desenvolvimento Biomédico Avançado (Barda). Também receberam apoios da Barda, da Janssen e da gigante Johnson & Johnson, com 552,6 milhões de euros, e da Moderna Therapeutics com outros 390,7.

…de uma indústria poderosa…

Estamos a falar de uma indústria poderosa. Em 2002, a soma dos lucros das 10 empresas farmacêuticas mais importantes excedeu os ganhos combinados das outras 490 empresas que aparecem na lista das 500 indústrias mais rentáveis. Essas 10 farmacêuticas tiveram um lucro total de 35,9 mil milhões de dólares e as restantes 490 empresas, juntas, um lucro total de 33,7 mil milhões de dólares.

Essas enormes somas de dinheiro provêm de margens de lucro brutas de 70 a 90%, e a sua taxa de lucro é a mais elevada de todas (segundo a revista Fortune foi, em 2000, de 18,6%, em comparação com 15,8% dos bancos comerciais, por exemplo). E, ainda por cima, pagam muito poucos impostos (a carga fiscal da Indústria farmacêutica é cerca de 16,2%, contra 27,3% em média da Grande indústria), ao mesmo tempo que os medicamentos que necessitam de receita médica aumentam o seu preço bem acima do nível da inflação (6 a 20% todos os anos).

Em 2002, a Pfizer – a comercializadora da primeira vacina contra a COVID – tornou-se no primeiro Laboratório do mundo, após a fusão com a Warner Lambert e a Pharmacia (que, por sua vez, tinha comprado a Upjohn e a Monsanto). A Pfizer passou, com tal fusão, a deter 11% do mercado global. Cinco anos antes, a Merck era o maior laboratório, mas só tinha 5% do mercado mundial. A taxa de lucro da Pfizer foi, em 2004, 22% do montante total das vendas, que foi de 53 mil milhões de dólares.

…que põe ao seu serviço governos e instituições internacionais

As Farmacêuticas são, na sua imensa maioria, empresas dos grandes países imperialistas: 60% das patentes de medicamentos são dos EUA, 20% da União Europeia, e os EUA dominam o mercado dos 50 medicamentos mais vendidos. E impõem o seu domínio por meio dos governos imperialistas ao seu serviço.

Os interesses das grandes Companhias farmacêuticas são defendidos através da pressão do Governo dos EUA sobre os outros países, os quais são ameaçados com sanções económicas e com a imposição de pactos bilaterais desvantajosos para esses países e benéficos para a Indústria farmacêutica norte-americana.

E através, também, da OMC, um de cujos primeiros acordos foi o ADPIC (2), que impôs em 1995 um sistema de patentes para os medicamentos.

Até 1995, a maioria dos países não reconhecia que os medicamentos pudessem ser patenteados, pois não eram considerados produtos comerciais mas sim artigos “de primeira necessidade”, aos quais devia ser reconhecido o direito de acesso de todos os enfermos, independentemente da sua capacidade económica. A partir de então, foi imposto um sistema de patentes abusivo a todos os países, incluindo os mais pobres, e foi alargado o tempo de exploração das patentes farmacêuticas de 17 para 20 anos.

Com este Sistema de patentes, todos os medicamentos criados entre 1995 e 2005, mais todos os que tenham sido criados a partir de 2005, estarão protegidos pela patente e não entrarão em concorrência livre, podendo assim o seu preço ser encarecido mais de 10 vezes (no mínimo). Esse Sistema inclui, além disso, cláusulas abusivas: a obrigação, por parte de um Laboratório que deseje produzir genéricos de um medicamento patenteado, de comprar ao proprietário não somente o direito de patente daquele medicamento mas também de outros produtos que este queira impor-lhe (vendas vinculativas); o direito de o proprietário da patente determinar a forma sob a qual o Laboratório comprador tem que produzir o seu produto genérico; a obrigação do comprador de informar o proprietário da patente de todas as melhorias realizadas no produto; a limitação ou proibição das exportações.

Uma especulação desenfreada

A perspectiva de um negócio de 100.000 milhões de dólares provocou uma especulação crescente, para a qual concorrem os laboratórios, ao dosearem as informações sobre as suas vacinas. A 10 de Novembro, a Pfizer e a BioNTech anunciaram na imprensa os primeiros resultados da sua vacina, com uma eficácia de 90%. A 18 de Novembro, o Laboratório Moderna, também norte-americano, anunciou a sua, atribuindo-lhe uma eficácia de 94%. No dia seguinte, a Pfizer e a BioNTech corrigiram os seus números, dizendo que a eficiência da sua vacina é de 95%.

A 23 de Novembro, o Laboratório anglo-sueco AstraZeneca e a Universidade de Oxford anunciaram os primeiros resultados da sua vacina, com uma eficiência entre 70 e 90%, segundo a dose. Todos estes anúncios foram feitos através de comunicados de imprensa, não acompanhados por nenhuma publicação científica. Quando a Agência Europeia (de Medicamentos) atrasou o reconhecimento da vacina da Astra-Zeneca (a que tem maior financiamento público), a Comissão Europeia imediatamente duplicou a compra de vacinas à Pfizer (mais 300 milhões de vacinas).

Ao mesmo tempo, as Companhias farmacêuticas competem entre si, alegando terem diferentes condições de conservação das vacinas a distribuir. A da Pfizer deve ser conservada a 70º abaixo de zero, a da Moderna a -20ºC, e a da AstraZeneca a dois ou três graus abaixo de zero.

A especulação em Bolsa com estas Companhias disparou. A BioNTech aumentou, num ano, o seu valor em Bolsa de 4.600 para 21.000 milhões de dólares (norte-americanos). O seu valor de mercado actual é quatro vezes maior que o da Companhia de aviação alemã Lufthansa. As acções da Pfizer subiram 14,2% no Pre-market (3) de Nova Iorque, enquanto as acções da BioNTech subiram quase 23% em Frankfurt. As acções de outras Companhias que desenvolvem investigação sobre vacinas e que estão agora na etapa final da validação também subiram: a Johnson & Johnson subiu 4% no Pre-market e a Moderna subiu 7,4%, enquanto a AstraZeneca – com uma vacina mais barata e talvez menos eficaz – caiu 0,5%.

Pode a Humanidade consentir que haja Companhias farmacêuticas a ganhar centenas de milhar de milhões de dólares à custa da pandemia? Não está na hora de avançar com a necessária expropriação da investigação sobre medicamentos e das grandes Farmacêuticas, e da anulação de qualquer patente que limite o acesso dos enfermos aos medicamentos? A nossa resposta a esta última pregunta é afirmativa, para o que é preciso darmo-nos os meios que tornem possível essa acção, o que só poderá ser obra da classe trabalhadora organizada lutando pelos seus interesses.

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(1) Trata-se da Carta semanal do POSI (Partido Operário Socialista Internacionalista, Secção espanhola da 4ª Internacional), nº 817, de 11 de Janeiro de 2021.

(2) ADPIC – Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (TRIPS, na sigla em Inglês).

(3) O Pre-market é uma sessão extra que ocorre antes do horário normal da Bolsa de Valores.

Espanha: PAREM COM O DESMANTELAMENTO DO SISTEMA DE SAÚDE PÚBLICA!

Em muitos municípios do Estado espanhol estão a ser encerrados Postos de atendimento continuado, consultas, Centros de saúde, e as marcações em cuidados primários têm, em geral, uma demora de 15 dias; as consultas médicas são, em regra, por via telefónica; os oncologistas afirmam que deixaram de ser diagnosticados 25% dos cancros precoces e, pelo menos desde Março, tem havido um excesso de mortalidade que não se justifica; os lares para idosos converteram-se em alojamentos de contágio e de morte. Os gestores hospitalares substituem a falta de pessoal por contratos precários que têm os dias contados; recorreu-se ao Exército para suprir a falta de rastreadores e de pessoal auxiliar, e para dirigir o “estado de alarme”; é imposta a mobilidade funcional e geográfica a médicos e enfermeiros, o pessoal sanitário está exausto e todos os direitos dos trabalhadores da Saúde são espezinhados, incluindo o direito de reunião e os direitos sindicais.

Tudo em nome do combate à pandemia por SARS-CoV-2. E, perante a indignação e a ira dos profissionais, o Governo central e os governos autónomos regionais pretendem compensá-los com um pagamento que não chega para todos, criando mais desorganização e mal-estar entre os trabalhadores do sector da Saúde. Melhor seria devolverem já os 8% do poder de compra perdido nestes últimos anos.

A população está a mobilizar-se em defesa da sua saúde

A população resiste, organiza-se em plataformas e colectivos para se opor a esta situação, com concentrações em frente aos Centros de saúde, em Bilbau ou em Sevilha, em Barcelona ou em Madrid, com manifestações como a do dia 29 de Novembro, no caso de Madrid, que também foi convocada pelos sindicatos (Ver sobre estes aspectos os últimos números das edições do periódico Información Obrera).

Recolheram-se cento e cinquenta mil assinaturas contra a assistência telefónica, como resultado da morte por cancro do cólon de uma mulher de 48 anos, numa aldeia em Burgos; durante meses, ela não conseguiu uma consulta presencial. A sua irmã denunciou assim o que aconteceu: “No papel, ela morreu devido ao cancro, mas eu sinto que o que a matou mais foi a desculpa do COVID (…); o COVID tornou-se na desculpa perfeita para as Administrações instalarem as consultas telefónicas no nosso sistema de Saúde pública. Na prática, isto significa que os cidadãos perderam um dos direitos fundamentais: o direito aos cuidados de saúde de qualidade e com dignidade (…). Exijo soluções AGORA, para que nenhuma outra família tenha de sentir que perdeu um ente querido por quem muito mais podia ser feito e não foi feito porque «eram tempos de COVID». Não, o COVID não justifica tudo”.

Soluções, já

É esta a questão, as soluções são necessárias já, elas são urgentes e a pandemia não pode justificar nenhum ataque, nenhum atropelo. Aos cortes na Saúde pública destes doze últimos anos (estamos a falar em cerca de 30 mil milhões de euros, desde 2008 até agora), é agora acrescentada uma ofensiva para desmantelar a Saúde pública, uma ofensiva que se centrou em primeiro lugar nos cuidados primários de saúde, os quais são sobrecarregados de tarefas e a que se retiram meios, afectando todo o Sistema, o qual constitui uma conquista histórica: o direito aos cuidados de saúde, como serviço público gratuito e de qualidade.

A Junta  da Andaluzia escuda-se na pandemia para encerrar consultas de pediatria em bairros operários e serviços de urgência em algumas localidades, e envia centenas de pacientes para clínicas privadas, cujos trabalhadores denunciam a saturação, enquanto que em Madrid acaba de ser inaugurado o hospital Isabel Zendal – hospital monográfico para o COVID-19 – com um custo de 100 milhões de euros e que se pretende dotar de pessoal mobilizando profissionais de outros Centros sanitários. Todos os colectivos profissionais e sindicais dos cuidados de saúde têm resistido a esta situação, aos quais o Governo regional responde com propaganda falsa e outros meios que vão desde a pressão à coacção. A verdade é que é se trata de uma ofensiva geral de desmantelamento e privatização que, de acordo com o Governo central, toda a gente deveria aceitar em nome do “interesse comum” da luta contra o coronavírus; trata-se do conhecido recurso ao inimigo externo, e da política de “união sagrada”, de “unidade nacional” para o combater. Como dizem as Notas editoriais de “A Verdade” (a revista teórica da 4ª Internacional), no seu nº 106 de Setembro de 2002, “eles precisavam de uma ocasião…”, e encontraram-na com a pandemia do COVID.

O sistema capitalista contra o direito à saúde

Alguns perguntarão como é possível que um Governo que se autodenomina progressista encabece este ataque à Saúde pública, em colaboração com os governos autónomos regionais, dirigidos por partidos de todas as cores políticas. A menos que se entenda que esta é uma das actuações impostas a todos os governos que não têm mais nenhuma perspectiva política do que servir um Sistema, o imperialista, imerso numa crise de decomposição e que só pode sobreviver destruindo tudo o que a humanidade e a luta da classe operária conquistou.

O FMI aborda esta situação no seu Relatório da Missão da Consulta do Artigo IV para Espanha, de 30 de Setembro de 2020. Extraímos algumas frases para mostrar o conteúdo dessa Declaração Final da Missão de Consulta do FMI: “O impacto da pandemia do COVID-19 foi particularmente grave em Espanha. (…)

A curto prazo, uma nova retoma da actividade dependerá, em grande medida, de contenção da crise sanitária. (…)

Uma falha no controlo de novos surtos, um progresso mais lento do que o esperado em matéria de vacinas e de tratamentos (…) poderiam travar ainda mais as perspectivas futuras.

As medidas fiscais têm que continuar centradas na superação da crise sanitária e económica imediata e conter o risco de que a recessão se transforme em stress para o sector financeiro, com custos reais e sociais ainda mais elevados.”

O que, para o FMI, significa continuar a manter as dádivas aos empresários (“apoio aos balanços – das empresas”) com “investimento público” nos ERTE (1), garantias públicas e “resgate” de empresas.

“A este respeito, a disponibilidade dos Fundos da UE oferece uma oportunidade para facilitar a introdução de reformas (…), melhorar a concorrência e promover as parcerias público-privadas.”

Há que assinalar que as medidas tomadas pelo governo Sánchez-Iglesias coincidem totalmente com as propostas pelo FMI, que as avalisa.

A pandemia serve para acentuar a ofensiva contra os direitos e as conquistas.

Este Relatório – que se pronuncia abertamente pela “introdução de reformas laborais”, por “um pacote sustentável de reformas de pensões que equilibre a sustentabilidade das pensões com a aceitabilidade social” e por “um renovado compromisso político com as reformas estruturais (…) para facilitar a redução da dívida” – diz ainda que é preciso monitorizar os surtos, as vacinas feitas, os novos tratamentos encontrados e superar a crise sanitária… mas tem apenas uma receita para isso: “fomentar parcerias público-privadas”; isto é, financiar as multinacionais farmacêuticas e a Saúde privada à custa do desmantelamento da Saúde pública. Por mais que se leia e releia a “Declaração final” não encontraremos mais nada.

Este discurso é retomado pela Associação Patronal em Espanha, mas com um conteúdo muito mais concreto: Pedro Nieto, presidente do Grupo de Trabalho da Saúde do Círculo de Empresários, expõe – em entrevista à revista Redacção Médica, publicada a 8 de Outubro – o conteúdo do seu Relatório La Sanidad (A Saúde), um sector ainda mais estratégico por causa da pandemia.

Nele apela ao “reforço do compromisso com o sector da Saúde, devido ao grande valor que a Saúde pode trazer para a economia”.

Refere, ainda, que “o impacto do Covid-19 expôs uma série de problemas estruturais que levaram a uma resposta tardia e insegura à pandemia”, referindo-se, obviamente, à falta de colaboração com a Saúde privada para fazer face à pandemia.

Assinala, também, que “a baixa integração dos sistemas de cuidados adaptados aos idosos e o subfinanciamento crónico da Saúde não permitiu investir recursos para fins estratégicos. (…) Se houver dinheiro para investir, seria um grande sector para ele. O financiamento deve ir para quatro blocos: digitalização, inovação, colaboração público-privada e desafio demográfico. (…) Temos de investir em tecnologia e lançá-la, para isso há empresas muito boas que nos podem dar essa cobertura (…) mas temos de investir mais (…) incentivar a colaboração público-privada (…) tem de haver cooperação e complementaridade do Estado com o sector privado (…). O Estado por si só não pode fazer tudo (…); é preciso ser inovador na assistência aos idosos. (…) Agora, que vai haver um Fundo de dinheiro da União Europeia (UE), deve ter-se a visão de colocar o foco neste sector, que pode ter um desempenho e um futuro muito bons”.

Refira-se que se trata de toda uma série de declarações gratuitas, para concluir afirmando que é o Estado que deve complementar o sector privado (desviando os Fundos públicos – que financiam actualmente a Saúde pública – para a Saúde privada), e não o contrário, como tem sido afirmado até agora para justificar a privatização de sectores da assistência sanitária.

O Governo adapta-se a estes pedidos

Esta é a linha estratégica seguida pelo Governo. No dia 7 de Outubro, o jornal El País divulgou, no seu site, um evento organizado pela Farmacêutica Roche, em que participaram Salvador Illa (Ministro da Saúde, do Consumo e do Bem-estar Social), Fernández Vara (Presidente do Governo Regional da Estremadura) e Carme Artigas (Subsecretário de Estado para a Digitalização e Inteligência Artificial), entre outros. O Ministro da Saúde manifestou-se a favor da colaboração público-privada com o argumento do “reforço da Saúde”. Tanto o presidente da Estremadura, como o representante da Roche e o Subsecretário de Estado expressaram a “necessidade de redefinir a Saúde”, manifestando as “sinergias” que “a cooperação público-privada pode trazer, bem como o trabalho em conjunto e a partilha dos recursos entre os dois sectores”; também foi afirmado que “a Saúde pública tem défices porque não foi suficientemente investido nela”. Há pessoas para quem o cinismo não tem limites.

Não pretendemos tentar esgotar aqui todas as questões relacionadas com a privatização dos cuidados de saúde, como a digitalização, a produção de novas vacinas, novos fármacos e novos tratamentos.

A questão urgente agora é defender a Saúde pública, os direitos dos trabalhadores da Saúde pública que garantem assistência de qualidade, devolver à Saúde os 30 mil milhões de euros desviados para o sector privado ou para o “resgate” (recuperação) do capital financeiro, expropriando a Banca e as multinacionais farmacêuticas.

O que é realmente necessário é organizarmo-nos para este fim, pelo que apelamos à subscrição do Manifesto (2) para salvar a Saúde pública e os direitos dos trabalhadores da Saúde pública, para recolher assinaturas, para realizar reuniões de signatários para decidir como agir para defender as reivindicações, para formar comissões de acção.

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(1) ERTE significa Expediente de Regulação Temporária de Emprego, sendo o equivalente do “lay-off” simplificado de Portugal, que dá direito a um subsídio por paragem de actividade.

(2) O link para acesso ao Manifesto é https://bit.ly/3ovlK6v

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Documento publicado na Carta semanal do POSI (Partido Operário Socialista Internacionalista, Secção espanhola da 4ª Internacional), nº 812, de 7 de Dezembro de 2020.