A propósito das vacinas contra o Coronavírus

Esta Carta Semanal (1) não é uma publicação da Ciência médica. Portanto, não nos cabe avaliar a eficácia ou os efeitos secundários das vacinas, mas sim comentar os aspectos políticos ligados a todo o processo.

O desastre da aplicação

A União Europeia comprou vacinas a vários laboratórios, assinando seis acordos, em condições secretas (incluindo o preço), com um custo total de 12.600 milhões de euros entre 2020 e 2021, e um possível custo adicional de 7.020 milhões. As doses serão distribuídas entre os vários Estados proporcionalmente à sua população. No entanto, a aplicação efectiva das vacinas está a ser, em toda a Europa, muito limitada, pondo em evidência o colapso dos sistemas de Saúde, após anos de cortes.

A Alemanha, o país que mais vacinas conseguiu distribuir, aplicou apenas 20% das vacinas que recebeu até Dezembro. A França, em dez dias (de 25 de Dezembro a 3 de Janeiro) apenas contava 500 vacinados, mas, ao mesmo tempo, o Estado mobilizou 100.000 polícias para controlar a população no dia 31 de Dezembro. Nos EUA, apenas 33% das vacinas recebidas foram administradas.

Noutros países, a vacinação é feita com critérios discriminatórios. Como por exemplo Israel, líder mundial em vacinação, que já aplicou a primeira dose a 12% da sua população, mas não distribuiu uma única dose entre os Palestinianos nos territórios ocupados.

Segundo dados divulgados até 6 de Janeiro, em Espanha foram administrados 18.7% das doses distribuídas, com variações entre 55% nas Astúrias ou 51% em Ceuta e 5% em Madrid e na Cantábria. O que não evita fricções entre os governos regionais. O de Madrid, que apenas repartiu 5% das doses recebidas, não parou de acusar o Governo central pelas poucas doses que entraram.

Em alguns casos, a vacinação tem significado mais um passo na privatização da Saúde. Em Madrid, foram privatizadas equipas de vacinação, mediante um contrato com a Cruz Vermelha, feito sem concurso público e que foi assinado antes de ser conhecido que as vacinas iriam ser distribuídas. Um contrato no valor total de 804.098 euros por 6 meses, que prevê um “lucro industrial” declarado de 10% (80.000 euros), e cobrirá 12 equipas móveis de enfermeiros e assistentes de enfermagem mais um coordenador. Mas as contas não fazem sentido. Por exemplo, em salários está prevista uma despesa mensal de 5.287€ para cada equipa; mas, segundo o Acordo sanitário privado de Madrid, o salário de uma enfermeira é de 1.246€ e o de um assistente de 1.122€, o que perfaz um total de 2.368€. Assim, o montante orçamentado é 2,23 vezes superior a este montante. Outras comunidades, tais como a Andaluzia, estão também a estudar a possibilidade de privatização.

Um negócio fabuloso…

Vacinar milhares de milhões de pessoas, em todo o mundo, constitui um negócio que pode superar os 100 mil milhões de dólares. Não esqueçamos que, pelas informações que transpareceram, a vacina da Pfizer custa cerca de 30€, a da Moderna 21€, e a da AstraZeneca 6€.

Comparando estes preços de venda com os investimentos declarados, é escandaloso. A Pfizer afirma ter investido na sua vacina “2 mil milhões de dólares” (1.700 milhões de euros) e especifica que “autofinanciou todos os custos da vacina”, para ter as mãos livres na hora de fixar os preços. Mas o seu parceiro durante o desenvolvimento da vacina, a BioNTech, recebeu ajudas públicas do Governo alemão, nada menos do que 375 milhões de euros.

Quanto à falta de financiamento público da vacina Pfizer, há que matizar esta afirmação, já que a Comissão Europeia assumiu antecipadamente compromissos de compra com cada produtor de vacinas, financiando em troca parte dos custos iniciais dos Laboratórios – financiamento a cargo do Instrumento de Assistência Urgente da União Europeia – como um pagamento por conta das vacinas que os Estados-membros irão efectivamente comprar.

Quer a Pfizer tenha ou não recebido ajuda estatal, as ajudas chovem sobre os Laboratórios farmacêuticos. Vários governos, Fundações (como a Bill & Melinda Gates) e doadores privados destinaram 6.901 milhões de euros para financiar a investigação ao vírus SRA-CoV-2. As remessas destinadas a vacinas atingem os 3.948,9 milhões de euros, absorvendo mais de metade de todos os gastos desembolsados pelos Laboratórios.

Com a Moderna, os EUA contrataram uma compra inicial no valor de 1.500 milhões de dólares.

A britânica AstraZeneca, que desenvolveu uma vacina em conjunto com a Universidade de Oxford, recebeu do governo de Donald Trump 1.089 milhões de euros através da Autoridade de Investigação e Desenvolvimento Biomédico Avançado (Barda). Também receberam apoios da Barda, da Janssen e da gigante Johnson & Johnson, com 552,6 milhões de euros, e da Moderna Therapeutics com outros 390,7.

…de uma indústria poderosa…

Estamos a falar de uma indústria poderosa. Em 2002, a soma dos lucros das 10 empresas farmacêuticas mais importantes excedeu os ganhos combinados das outras 490 empresas que aparecem na lista das 500 indústrias mais rentáveis. Essas 10 farmacêuticas tiveram um lucro total de 35,9 mil milhões de dólares e as restantes 490 empresas, juntas, um lucro total de 33,7 mil milhões de dólares.

Essas enormes somas de dinheiro provêm de margens de lucro brutas de 70 a 90%, e a sua taxa de lucro é a mais elevada de todas (segundo a revista Fortune foi, em 2000, de 18,6%, em comparação com 15,8% dos bancos comerciais, por exemplo). E, ainda por cima, pagam muito poucos impostos (a carga fiscal da Indústria farmacêutica é cerca de 16,2%, contra 27,3% em média da Grande indústria), ao mesmo tempo que os medicamentos que necessitam de receita médica aumentam o seu preço bem acima do nível da inflação (6 a 20% todos os anos).

Em 2002, a Pfizer – a comercializadora da primeira vacina contra a COVID – tornou-se no primeiro Laboratório do mundo, após a fusão com a Warner Lambert e a Pharmacia (que, por sua vez, tinha comprado a Upjohn e a Monsanto). A Pfizer passou, com tal fusão, a deter 11% do mercado global. Cinco anos antes, a Merck era o maior laboratório, mas só tinha 5% do mercado mundial. A taxa de lucro da Pfizer foi, em 2004, 22% do montante total das vendas, que foi de 53 mil milhões de dólares.

…que põe ao seu serviço governos e instituições internacionais

As Farmacêuticas são, na sua imensa maioria, empresas dos grandes países imperialistas: 60% das patentes de medicamentos são dos EUA, 20% da União Europeia, e os EUA dominam o mercado dos 50 medicamentos mais vendidos. E impõem o seu domínio por meio dos governos imperialistas ao seu serviço.

Os interesses das grandes Companhias farmacêuticas são defendidos através da pressão do Governo dos EUA sobre os outros países, os quais são ameaçados com sanções económicas e com a imposição de pactos bilaterais desvantajosos para esses países e benéficos para a Indústria farmacêutica norte-americana.

E através, também, da OMC, um de cujos primeiros acordos foi o ADPIC (2), que impôs em 1995 um sistema de patentes para os medicamentos.

Até 1995, a maioria dos países não reconhecia que os medicamentos pudessem ser patenteados, pois não eram considerados produtos comerciais mas sim artigos “de primeira necessidade”, aos quais devia ser reconhecido o direito de acesso de todos os enfermos, independentemente da sua capacidade económica. A partir de então, foi imposto um sistema de patentes abusivo a todos os países, incluindo os mais pobres, e foi alargado o tempo de exploração das patentes farmacêuticas de 17 para 20 anos.

Com este Sistema de patentes, todos os medicamentos criados entre 1995 e 2005, mais todos os que tenham sido criados a partir de 2005, estarão protegidos pela patente e não entrarão em concorrência livre, podendo assim o seu preço ser encarecido mais de 10 vezes (no mínimo). Esse Sistema inclui, além disso, cláusulas abusivas: a obrigação, por parte de um Laboratório que deseje produzir genéricos de um medicamento patenteado, de comprar ao proprietário não somente o direito de patente daquele medicamento mas também de outros produtos que este queira impor-lhe (vendas vinculativas); o direito de o proprietário da patente determinar a forma sob a qual o Laboratório comprador tem que produzir o seu produto genérico; a obrigação do comprador de informar o proprietário da patente de todas as melhorias realizadas no produto; a limitação ou proibição das exportações.

Uma especulação desenfreada

A perspectiva de um negócio de 100.000 milhões de dólares provocou uma especulação crescente, para a qual concorrem os laboratórios, ao dosearem as informações sobre as suas vacinas. A 10 de Novembro, a Pfizer e a BioNTech anunciaram na imprensa os primeiros resultados da sua vacina, com uma eficácia de 90%. A 18 de Novembro, o Laboratório Moderna, também norte-americano, anunciou a sua, atribuindo-lhe uma eficácia de 94%. No dia seguinte, a Pfizer e a BioNTech corrigiram os seus números, dizendo que a eficiência da sua vacina é de 95%.

A 23 de Novembro, o Laboratório anglo-sueco AstraZeneca e a Universidade de Oxford anunciaram os primeiros resultados da sua vacina, com uma eficiência entre 70 e 90%, segundo a dose. Todos estes anúncios foram feitos através de comunicados de imprensa, não acompanhados por nenhuma publicação científica. Quando a Agência Europeia (de Medicamentos) atrasou o reconhecimento da vacina da Astra-Zeneca (a que tem maior financiamento público), a Comissão Europeia imediatamente duplicou a compra de vacinas à Pfizer (mais 300 milhões de vacinas).

Ao mesmo tempo, as Companhias farmacêuticas competem entre si, alegando terem diferentes condições de conservação das vacinas a distribuir. A da Pfizer deve ser conservada a 70º abaixo de zero, a da Moderna a -20ºC, e a da AstraZeneca a dois ou três graus abaixo de zero.

A especulação em Bolsa com estas Companhias disparou. A BioNTech aumentou, num ano, o seu valor em Bolsa de 4.600 para 21.000 milhões de dólares (norte-americanos). O seu valor de mercado actual é quatro vezes maior que o da Companhia de aviação alemã Lufthansa. As acções da Pfizer subiram 14,2% no Pre-market (3) de Nova Iorque, enquanto as acções da BioNTech subiram quase 23% em Frankfurt. As acções de outras Companhias que desenvolvem investigação sobre vacinas e que estão agora na etapa final da validação também subiram: a Johnson & Johnson subiu 4% no Pre-market e a Moderna subiu 7,4%, enquanto a AstraZeneca – com uma vacina mais barata e talvez menos eficaz – caiu 0,5%.

Pode a Humanidade consentir que haja Companhias farmacêuticas a ganhar centenas de milhar de milhões de dólares à custa da pandemia? Não está na hora de avançar com a necessária expropriação da investigação sobre medicamentos e das grandes Farmacêuticas, e da anulação de qualquer patente que limite o acesso dos enfermos aos medicamentos? A nossa resposta a esta última pregunta é afirmativa, para o que é preciso darmo-nos os meios que tornem possível essa acção, o que só poderá ser obra da classe trabalhadora organizada lutando pelos seus interesses.

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(1) Trata-se da Carta semanal do POSI (Partido Operário Socialista Internacionalista, Secção espanhola da 4ª Internacional), nº 817, de 11 de Janeiro de 2021.

(2) ADPIC – Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (TRIPS, na sigla em Inglês).

(3) O Pre-market é uma sessão extra que ocorre antes do horário normal da Bolsa de Valores.

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