
Em alguns círculos, as pessoas exultam: Biden pronunciou-se sobre a questão da suspensão das patentes das vacinas contra o Covid-19!
Durante meses, a fim de ocultar a sua política destrutiva dos hospitais públicos e a sua negligência, os governos apresentaram a vacinação como a solução milagrosa. Naturalmente, a vacina é um instrumento importante para protecção contra o Covid.
Mas os hospitais não são apenas camas de reanimação, são lugares para cuidar das pessoas. Assim é na Índia, onde está a ocorrer uma catástrofe sanitária porque não existem hospitais em número suficiente, nem camas, nem pessoal, e há escassez de botijas de oxigénio. As pessoas estão a morrer por falta de cuidados de saúde nas entradas dos hospitais.
Este enfoque sobre as vacinas, “esquecendo” a destruição dos hospitais públicos, enredou aqueles que estão dispostos a ser enganados.
O chefe da OMS (Organização Mundial de Saúde) lançou a ideia da suspensão das patentes das vacinas.
UMA CAMPANHA INTERNACIONAL
Desde então, foram feitos vários apelos: um apelo internacional por líderes de esquerda e “progressistas” para fazer das vacinas um “bem comum”; um apelo de líderes dos países europeus – incluindo François Hollande – sobre o mesmo tema; um apelo das ONG à União Europeia; um apelo dos líderes da União Europeia, incluindo Macron e Merkel, para fazer das vacinas um “bem público”.
Na América Latina e na Europa, grupos que afirmam estar na extrema-esquerda manifestaram-se a favor da suspensão das patentes, apresentando isso como sendo um slogan anti-capitalista contra as Big Pharma (grandes farmacêuticas), esquecendo – digamos, de passagem – a responsabilidade dos “governos genocidas”, de acordo com a expressão dos nossos camaradas brasileiros. Notemos que se este slogan tem eco em certos círculos políticos e ONGs, não o tem entre as massas ou entre aqueles que estão simplesmente à procura de ser vacinados.
Depois, Joe Biden pronunciou-se a favor da suspensão temporária das patentes das vacinas, suspensão a ser negociada na OMS. Como escreveu o editorialista do jornal financeiro francês Les Echos, a 7 de Maio: “Ao apelar à suspensão de patentes das vacinas contra o Covid, Joe Biden conseguiu um golpe de mestre. Dá a impressão de voar em socorro de toda a humanidade e, por outro lado, coloca a Europa na posição inglória de seguidista. A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, sentiu-se compelida a seguir o exemplo, reforçando a sensação de que, após quatro anos de isolamento, os EUA reconquistaram o seu lugar de líder mundial.” Logo a seguir, Macron declarou que era “completamente a favor da suspensão das patentes”. O Papa também se pronunciou a favor da suspensão temporária das patentes.
Alguns, “ingenuamente”, verão a decisão de Biden como uma resposta “progressista” aos apelos para a suspensão das patentes das vacinas. De acordo com o jornal L’Humanité (7 de Maio), a Administração dos EUA “diz que está pronta a limitar o império e os lucros fabulosos dos monopólios farmacêuticos, a fim de colocar em primeiro lugar a saúde e a vida em todo o planeta”.
Assim, Biden seria um “progressista”!
RESTABELECER A LIDERANÇA DOS EUA
Mas, na realidade, Biden está a tomar o ponto de vista da defesa da liderança norte-americana, numa altura em que a revolta dos povos ameaça a ordem mundial. Além disso, um apelo de deputados do Partido Democrata norte-americano sobre esta matéria afirma: “A sua Administração tem uma oportunidade incrível de reverter os danos que Trump causou à reputação mundial do nosso país e restaurar o papel de líder dos EUA (…).
Por cada dólar investido na produção de vacinas para as tornar acessíveis aos países mais pobres, os países ricos receberão 4,80 dólares como retorno do investimento. Não se trata apenas de uma obrigação moral, é economicamente eficiente.”
Com a utilização da pandemia, assistimos a uma ofensiva sem precedentes dos governos subservientes ao capital para organizar uma viragem da sociedade e acabar com os direitos, as normas e as conquistas sociais e democráticas.
Não se trata, na realidade, da questão das patentes. A questão da suspensão das patentes das vacinas é apenas a árvore que esconde a floresta. Por detrás do consenso sobre esta questão está o desejo de unir toda a gente, no período pós-pandemia, a fim de estabelecer um “novo mundo”. Isto pode ser visto através da reacção entusiasta da esquerda e dos “progressistas”, alguns dos quais se colocam neste quadro.
CAPITALISMO “INULTRAPASSÁVEL”?
Este “novo mundo” seria dividido entre os “progressistas” e os reaccionários, para fazer desaparecer a luta de classe entre exploradores e explorados. Para eles, o capitalismo é inultrapassável e deve, portanto, ser ajustado.
Trata-se uma vasta cortina de fundo para “colocar numa camisa-de-forças” a classe operária e as suas organizações, fazendo-as acompanhar e participar nesta “nova sociedade”.
Pela nossa parte, consideramos que os exploradores e os explorados têm interesses antagónicos, pelo que nos mantemos no terreno da independência de classe e da luta de classe.
Somos a favor da expropriação dos trusts farmacêuticos, bem como de todos os outros trusts. Apenas a mobilização das massas contra os governos ao serviço do capital conseguirá realizar esta expropriação.
Usando a terminologia desses “progressistas”, o “novo mundo” é para nós a transformação económica da sociedade, a qual só pode acontecer através da tomada do poder político pela classe operária, que será então capaz, sobre esta base, de tomar todas as medidas de acordo com as necessidades do povo.
Estas são as lições da Comuna de Paris de 1871, há 150 anos!
A propósito da suspensão das patentes
A representante de Joe Biden declarou: “A Administração acredita firmemente na protecção da propriedade intelectual, mas – ao serviço do fim desta pandemia – apoiamos a renúncia a essa protecção para as vacinas Covid-19.” E, com base nisto, abre-se agora uma fase de negociações na OMS.
A reacção dos laboratórios farmacêuticos não é unânime: “Para a AstraZeneca, que concedeu licenças gratuitas a vários fabricantes, sabendo muito bem que não podia produzir tudo por si só, uma suspensão das patentes não faz muita diferença. A Moderna (…) anunciou que, durante o período pandémico, permitiria que outras empresas biotecnológicas utilizassem a sua tecnologia. Por outro lado, uma suspensão seria mais prejudicial para a parceria Pfizer-BioNTech.” (Les Echos, 7 de Maio).
Mesmo que a Pfizer proteste, esta Big Pharma já arrecadou 4 mil milhões em lucros e todos os contratos já assinados não serão, de forma alguma, modificados por este anúncio. Para já não mencionar que a Administração dos EUA anunciou que indemnizaria a Pfizer.
Além disso, a Pfizer não esperava obter muito lucro com os países pobres. “Em meados de Abril, tinham sido encomendadas 8,6 mil milhões de doses de vacinas: 53% delas são reservadas para países de elevado rendimento, com uma população total de apenas 1,2 mil milhões de habitantes. Os países pobres reservaram apenas 770 milhões de doses.” (Les Echos, 7 de Maio).
Digamos, em seguida, que a capacidade de produção nas fábricas destes grupos atingiu o seu máximo, tendo por isso que subcontratar de qualquer forma. O fabrico da vacina por outras empresas não irá resolver o problema. De facto, a vacina será vendida a baixo custo aos países mais pobres, ou mesmo fornecida gratuitamente, se os governos assumirem que compensam economicamente as empresas. Os peritos dizem que a produção, após a suspensão das patentes, demorará vários meses ou mesmo vários anos, dependendo da capacidade de produção da tecnologia e do know-how em cada país.
Como afirma o Dossiê dos Echos, “para vacinas de ARN, não há capacidade de produção disponível no mundo (…). A prova disso é que o laboratório Moderna tornou acessível a sequência ARN da sua vacina, sem que ninguém tenha até agora feito qualquer uso dela.” (7 de Maio).
Num comunicado de imprensa, Michelle McMurry-Heath, presidente da Biotechnology Innovation Organization (Organização para a Inovação da Biotecnologia), declara: “A entrega da receita de cozinha aos países necessitados sem lhes fornecer os ingredientes, as garantias e os recursos humanos necessários não ajudará aqueles que estão à espera da vacina.”
Reunidos na Cimeira Social Europeia, no Porto, nos passados dias 7 e 8 de Maio, os líderes europeus foram confrontados com a resistência de Merkel à suspensão, em defesa da indústria farmacêutica alemã. Por outro lado, os dirigentes da UE denunciam a implementação de um decreto nos EUA que exige que os laboratórios produtores de vacinas nesse país dêem prioridade aos norte-americanos, o que restringe drasticamente a sua exportação.
É por esta razão que os líderes da UE apelaram aos EUA para levantarem a proibição das exportações. A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse sobre a suspensão das patentes: “Isto não é algo que trará vacinas nos próximos meses, ou talvez mesmo no próximo ano, e as vacinas são necessárias agora.”
Como escreve o diário francês L’Opinion (7 de Maio): “Patentes das vacinas: tanta algazarra por tão pouco.”
Crónica, da autoria de Lucien Gauthier, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 654, de 12 de Maio de 2021, do Partido Operário Independente de França.