Trump: “Até à morte”

“Donald Trump irá lutar até à morte”, declarou o seu filho numa conferência de imprensa. O próprio Trump anunciou que rejeitava a transição, dado que tinha alcançado a vitória eleitoral. Mobilizou os seus advogados. Ele apela aos seus apoiantes para que resistam. E a 9 de Novembro, demitiu o seu Secretário de Estado para a Defesa. Um dirigente da campanha de Joe Biden replicou que, se Trump não deixasse a Casa Branca até 20 de Janeiro de 2021 – data da investidura de Biden – os Serviços secretos obrigá-lo-iam a sair pela força.

Esta situação expressa a grande crise que está a dilacerar todas as instituições dos EUA, o sistema bipartidário e a classe dominante. O patronato – e, por outro lado, a Direcção da AFL-CIO (a principal Confederação sindical dos EUA) – mas também alguns responsáveis do Partido Republicano apelam ao respeito pela transição (ver no final).

Biden lançou um apelo à unidade. E declarou: “O povo norte-americano quer que cooperemos. E essa vai ser a minha opção. Apelo aos membros Democratas e Republicanos no Congresso para o fazerem comigo”.

Biden está consciente dos riscos que correm as instituições americanas e os próprios Estados Unidos da América. E quer aparecer como seu defensor. Um dos impulsionadores desta crise, e em consequência da eleição de Biden, é a irrupção na cena política de centenas de milhares de Negros, de jovens, de Latinos e de sindicalistas. Não se trata aqui apenas da luta contra o racismo sistémico. Foi uma verdadeira explosão social provocada pela crise que deixou dezenas de milhões de desempregados e lançou nas ruas milhões e milhões de precários, principalmente jovens e Negros. A fim de conquistar os seus votos, e sob a pressão do que é conhecido como a ala esquerda do Partido Democrata, Biden teve de “esquerdizar” o seu discurso prometendo medidas económicas e sociais, bem como um sistema de saúde para todos.

Mas agora que ele foi eleito as coisas mudam.

Um dos grandes patrões norte-americanos, Robert Rosenberg, declarou: “A principal tarefa do novo Presidente será mudar o clima do país – marcado, na minha opinião, pelo medo, a ansiedade e a discórdia, por um clima de esperança e de inclusão.”

O grande patronato norte-americano está preocupado com esta situação. Outro grande patrão explicou que o mandato de Joe Biden poderia ser positivo, “a médio e longo prazo, se ajudasse a aliviar as tensões sociais nos EUA”. E as declarações do Presidente da AFL-CIO indicam que ele está disposto a contribuir para isso.

Mas os patrões, evidentemente, querem defender-se. Nicole Wolter, Director de uma empresa metalúrgica, declarou: “Queremos que as coisas permaneçam na mesma, inclusive a nível da regulamentação. Não quero que me agravem os impostos”.

O jornal financeiro francês L’Opinion escreve: “Os Directores das grandes empresas poderão expressar o seu desacordo com a Administração do Sr. Biden, de forma mais enérgica, após ele tomar posse (…); porém, os chefes de empresa que trabalharam com o Sr. Biden declaram considerar o antigo vice-presidente (de Obama) como mais favorável aos negócios do que outros membros do seu Partido”. O Director de uma companhia petrolífera, Lee Tillman, preocupado com a dificuldade crescente na obtenção de direitos de prospecção, declarou, no entanto: “Não há dúvida: se a Lei sobre as infra-estruturas for aprovada, ficaremos numa posição muito melhor no decurso dos próximos dois ou três anos”. Mesmo antes da investidura de Biden, o patronato estabelece as suas condições.

O apelo de Biden aos Republicanos e o facto de estes manterem muito provavelmente uma maioria no Senado deverão levar a uma “coabitação”. Biden tinha-se comprometido com um plano de relançamento da economia, cujo financiamento implicava o restabelecimento de taxas sobre os lucros que Trump tinha suprimido. Mas tudo isso terá de ser negociado com o Senado de maioria Republicana.

Alexandria Ocasio-Cortez é apresentada como uma das líderes da ala “esquerda” do Partido Democrata. Ela tinha apoiado a candidatura de Bernie Sanders, contra Biden, antes de finalmente apelar a votar a favor deste último. Ela declarou: “A história do nosso Partido tende a demonstrar que a base está galvanizada pela perspectiva das eleições, mas que essas comunidades são rapidamente abandonadas após as eleições. Penso que o período de transição vai indicar se a nova Administração vai adoptar uma abordagem mais aberta e colaborativa ou uma abordagem de fecho”.

Mas a ala “esquerda” do Partido Democrata continua a pertencer ao Partido Democrata, mesmo que sofra a pressão da rua. Porque a mobilização independente dos Negros, dos jovens, dos Latinos e de muitos sindicalistas – que se uniram para expulsar Trump – vai agora ver-se confrontada com a política da nova Administração.

De facto, serão Biden e o Partido Democrata que irão liderar o país. Para serem eleitos, eles aproveitaram-se destas mobilizações. As exigências nelas feitas contra o racismo, por um Sistema de saúde para todos, contra a precariedade e o desemprego continuam a existir. Os numerosos responsáveis e militantes sindicais que participaram nessas mobilizações – independentemente da posição da AFL-CIO nacional – serão confrontados com a política da Direcção nacional da AFL-CIO de apoio a Biden. E estas exigências levantam a questão da independência em relação a todos aqueles – e especialmente a Biden – que querem manter o Sistema.

Preocupações nas altas instâncias

A decisão de Trump de recusar reconhecer a vitória de Biden e de apelar aos seus apoiantes para que resistam está a causar preocupação no seio da classe dominante dos EUA. O Director do Banco JP Morgan, uma das vozes mais influentes do mundo financeiro, declarou: “Chegou a hora da unidade. Devemos respeitar os resultados das eleições presidenciais norte-americanas e, como temos feito em todas as eleições, honrar a decisão dos eleitores e apoiar uma transição de poder.”

O antigo Presidente republicano, George W. Bush, telefonou a Biden para o felicitar pela sua vitória. Num comunicado declarou: “Apesar das nossas diferenças políticas, sei que Joe Biden é um homem bom que ganhou a oportunidade para liderar e unificar o nosso país. O presidente eleito repetiu que era o candidato democrata, mas que irá dirigir o país para todos os norte-americanos”.

E o Presidente da AFL-CIO, Richard Trumka, declarou: “Prevaleceu a democracia. A vitória de Joe Biden e Kamala Harris, numas eleições livres e justas, é uma vitória para o movimento operário americano (…). Agora, a AFL.CIO está pronta para ajudar o Presidente eleito, e a sua Vice-Presidente, a elaborar um primeiro plano de acção favorável aos trabalhadores”.

Análise publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 630, de 11 de Novembro de 2020, do Partido Operário Independente de França.

EUA: “O próximo presidente herdará uma nação – e um mundo – em crise”

A um pouco mais de um mês das eleições, a campanha das Presidenciais nos EUA está a acelerar. O New York Times, apoiante de Biden, publicou a 27 de Setembro um artigo sobre as declarações de rendimentos do Presidente dos EUA, que este sempre se recusou a tornar públicas, ao contrário da tradição norte-americana.

Estas declarações mostram que as suas empresas – cuja gestão ele sempre elogiou como prova da sua capacidade para dirigir bem os assuntos de Estado dos EUA – perdem milhões de dólares todos os anos.

Elas também mostram declarações de despesas comerciais (não tributáveis) cuja legalidade parece questionável: 70.000 dólares em honorários de cabeleireiro, algumas centenas de milhares de dólares pagos à sua filha como consultora,…

Como resultado, ele não pagou nenhum imposto federal sobre o rendimento durante vários anos, e tanto em 2016 (o ano da sua eleição) como em 2017, pagou $750, menos do que um norte-americano médio. Isto é anedótico, mas revela a crise em que está mergulhado o aparelho de Estado dos EUA. Donald Trump foi eleito em 2016 como expressão desta crise e só contribuiu para a aprofundar. Ameaça agora usar a lei de 1807 contra insurreições, para subjugar as manifestações Black Lives Matter.

Esta lei, que permite ao Presidente utilizar os militares para reprimir um movimento insurrecional, foi utilizada amplamente ao longo da década de 1860 durante a luta para impor os direitos civis no Sul e, depois, para reprimir violentamente os movimentos pelos direitos civis quando os cidadãos recusaram ficar satisfeitos com a fachada de igualdade que as leis aprovadas lhes deram.

Trump também ameaça não reconhecer o resultado de 3 de Novembro, se ele não lhe for favorável. Tradicionalmente, o voto por correspondência representa 25% dos votos nas eleições norte-americanas e, com as restrições decorrentes do Covid, espera-se este ano uma subida exponencial desta percentagem: Trump coloca em dúvida, com antecedência, a autenticidade destes resultados, e diz-se pronto a contestá-los.

A sua decisão de nomear, na sequência da morte de Ruth Bader Ginsburg, uma nova juíza reaccionária para o Supremo Tribunal, a meio da campanha presidencial, aparenta-se a um golpe de força, apoiado por senadores republicanos, que há quatro anos recusaram que Obama tivesse feito o mesmo oito meses antes das eleições.

Neste contexto, Biden conseguiu o apoio de centenas de diplomatas e de oficiais superiores das Forças Armadas dos EUA, os quais, segundo o New York Times, “teriam apoiado qualquer membro do Partido Republicano, desde que não se chamasse Trump”.

Na sua carta de apoio, eles declaram: “O próximo presidente herdará uma nação – e um mundo – em crise (…). Apenas FDR (1) e Abraham Lincoln (2) ocuparam os seus postos face a crises mais monumentais do que o próximo Presidente.”

E é um facto. O Covid fez explodir a crise económica, latente desde 2008, com o seu cortejo de desempregados e despejos (os quais – proibidos desde 4 de Setembro, na sua maioria – serão retomados de novo a 1 de Janeiro). As manifestações Black Lives Matter continuam, e até recuperaram intensidade, depois de ter sido anunciado que os agentes da Polícia que mataram Breonna Taylor não seriam incomodados.

Por outro lado, as contra-manifestações de grupos violentos de Brancos radicais estão a multiplicar-se. A nível internacional, a guerra comercial com a China está ao rubro, enquanto a situação no Médio-Oriente continua a agravar-se. As sondagens prevêem uma vitória de Biden – mesmo se a experiência de 2016, quando a vitória de Clinton parecia garantida, incita à máxima cautela. Uma reeleição de Trump aprofundaria imediatamente a crise, tanto ao nível interno como internacional. Mas uma vitória de Biden não resolveria, de modo nenhum, os problemas com que o imperialismo norte-americano está confrontado.

A luta da classe operária pela igualdade real entre Negros e Brancos, por um Sistema universal de cuidados de Saúde, em prol de empregos reais com salários adequados está a ter lugar e continuará a seguir a estas eleições, independentemente do seu resultado.

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(1) Franklin Delano Roosevelt, eleito em 1932, em plena crise económica, foi Presidente durante toda a Segunda Guerra Mundial.

(2) Lincoln, eleito em 1860, foi Presidente dos EUA durante a Guerra Civil de Secessão.

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Análise de Devan Sohier publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 624, de 31 de Setembro de 2020, do Partido Operário Independente de França.