“Basta de mentiras”

Se Pink Floyd não tem o mesmo significado para todas as gerações, ele continua a ser o nome de uma banda musical mítica com uma reputação mundial. É por isso que saudamos a corajosa declaração feita – em 6 de Fevereiro, pelo seu co-fundador, Roger Waters – em resposta ao pedido de uma jovem ucraniana que lhe pediu para falar sobre a guerra no seu país.

Ele escolheu recentemente o TikTok – uma rede social entre as mais populares – para ampliar a sua audiência. Aí ele declarou estar farto das mentiras sobre a guerra na Ucrânia e também o seu desejo de contribuir para uma solução. Ele não poupou Putin, nem Biden, nem Zelensky, nem a NATO, contextualizando os elementos que nos ajudam a compreender como chegámos a esta situação. De passagem, ele não deixou de acusar os pequenos capangas do imperialismo norte-americano – os Macron, Johnson, Schroeder e consortes – de cumplicidade na escalada da guerra.

“Estou enojado com a invasão da Ucrânia por [o presidente russo Vladimir] Putin; é um erro criminoso, na minha opinião, o acto de um gangster”, escreve Roger Waters. “Deve haver um cessar-fogo imediato. Lamento que os governos ocidentais estejam a adicionar combustível ao incêndio que destruirá o seu belo país despejando armas na Ucrânia, em vez de se envolverem na diplomacia que será necessária para parar o massacre.

Farei tudo o que estiver ao meu alcance para ajudar a pôr fim a esta guerra horrível no seu país, tudo menos acenar com uma bandeira para encorajar a matança. É isso que os gangsters querem, eles querem que acenemos bandeiras. É assim que eles nos dividem e nos controlam, para criar uma cortina de fumo que nos cegue em relação à nossa capacidade inata de empatizarmos uns com os outros, enquanto pilham e violam o nosso frágil planeta. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para ajudar a devolver a paz a si, à sua família e ao seu belo país.

A Rússia é um paraíso de gangsters capitalistas neoliberais puros e duros, decalcado do modelo dos Estados Unidos da América.”

Roger Waters retoma, assim, a tradição que levou gerações de intelectuais e de artistas, de ambos os lados do Atlântico, a manifestarem-se contra as guerras imperialistas e coloniais.

Como verdadeira expressão da consciência dos povos, eles usaram a sua notoriedade para se dizerem, alto e bom tom, o que milhões estão a pensar, aqueles milhões que não têm voz.  Este foi o caso de centenas de artistas e intelectuais norte-americanos durante a Guerra do Vietname. Foi o caso de Jane Fonda e de outros grandes actores de Hollywood que, durante a segunda guerra do Iraque, tomaram a seu cargo a petição – lançada por familiares de vítimas do bombardeamento do World Trade Center – que negava a Bush o direito de falar em nome do povo norte-americano para lançar o seu assalto assassino ao Iraque, usando mentiras tão grandes como as que estamos a ouvir agora.

Foi, num tempo mais distante, em França, o caso dos 120 intelectuais que se pronunciaram contra a guerra na Argélia, e de Boris Vian que escreveu a canção Le Déserteur (O Desertor) contra as mobilizações dos soldados pelo Estado francês, para a Indochina e depois para a Argélia (1), e cujos famosos versos ainda continuam actuais: “Se é preciso derramar sangue, ide lá derramar o vosso, senhores bons apóstolos, senhores a quem chamam grandes”.

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(1) É de notar que os apóstolos da guerra já existiam nessa altura, pois foi um Parlamento presidido por Guy Mollet, da SFIO (antepassado do PS), que votou a favor de poderes especiais, uma proposta apoiada pelos deputados da PCF, para que o Governo desencadeasse a guerra na Argélia. Dois anos mais tarde, de Gaulle tomou o poder, amplificando uma guerra que custou a vida de mais de um milhão de Argelinos e de Argelinas e de 200.000 soldados e civis franceses.

Crónica da autoria de Lucien Gauthier, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” Informações operárias – nº 747, de 8 de Março de 2023, do Partido Operário Independente de França.

A primeira vítima da guerra é a verdade

A guerra actual está a atirar os trabalhadores e os pobres de uma nação contra os de outra, em benefício daqueles que não morrem mas ficam ricos através da guerra. Noutros países, tais como a França, todo o peso da guerra cai, também aí, sobre os oprimidos, as classes sociais que vivem do seu trabalho.

Os primeiros a esfregar as mãos em relação a estas mortes e misérias são os capitalistas das indústrias do gás e do armamento. Estas são as conclusões do importante Encontro de 25 de Fevereiro, na Bolsa de Trabalho de Paris.

Um juiz tornou-se famoso durante o caso Dreyfus. Cada vez que uma testemunha demonstrava a conspiração do Estado-Maior, a fabricação de mentiras para condenar um homem inocente, o juiz cortava-lhe a palavra, gritando: “A pergunta não será feita.”

Nos ecrãs dos canais franceses de “informação”, colocados sob o controlo de generais e de almirantes, uma questão é proibida: quais são os interesses financeiros do “campo” da NATO, em oposição ao “campo” dos oligarcas russos? O objectivo é fazer as pessoas acreditarem que o primeiro campo não existe, que esta não é uma guerra entre grandes potências, para competir pelos mercados.

BIDEN, MACRON, NATO: LIBERTADORES DOS POVOS?

Devemos ser tão ingénuos ao ponto de admitir que os invasores, os ocupantes militares e os assassinos em massa norte-americanos do Afeganistão, do Iraque e, anteriormente, do Vietname, etc., se tornaram “libertadores” dos povos. Igualmente em relação a Macron, o líder imperialista da Françafrique (África “francófona”).

Estas perguntas que “não serão feitas” nos canais televisivos da união sagrada para a guerra, os internacionalistas e os democratas fizeram-nas, em Paris e noutras cidades da Europa, a 25 de Fevereiro. Vamos colocá-las aqui.

1 – As cinco principais empresas capitalistas do petróleo, incluindo a TotalEnergies, obtiveram 200 mil milhões em lucros de guerra. Porquê este lucro imenso e excepcional? Porque o mercado europeu, 45% do qual era anteriormente abastecido por petróleo e gás russos, foi subitamente forçado a absorver, em alternativa, a produção de gás de xisto norte-americano. E eles querem fazer-nos engolir que não existe qualquer relação entre a substituição do gás siberiano pelo gás do Texas e o desencadear da guerra.

2 – Esta captação do mercado europeu da energia, a fim de vender os maiores excedentes norte-americanos existentes desde 1949, ao custo de uma gigantesca poluição, exige – segundo nos dizem – para ficar completa, a construção ao longo de vários anos de infra-estruturas para o transporte de gás liquefeito. “A guerra durará vários anos, repetem-nos, por coincidência, os “peritos militares” responsáveis pela nossa “informação”…

A FÁBULA DA SIMPLES “OPORTUNIDADE”

3 – Estes imensos lucros de guerra dos produtores de gás de xisto do Texas, incluindo a TotalEnergies, escandalizam a população, mergulhada em necessidades básicas e miséria. Então, os arautos desta guerra até ao fim, os apoiantes da guerra a todo o custo, que combatem o cessar-fogo, inventaram uma fábula. Trata-se de ilibar os que se aproveitam da guerra, incluindo a TotalEnergies, protegida e apoiada por Macron, uma multinacional francesa do Texas e do Novo México. Eis a fábula, aparentemente engolida por alguns pequeno-burgueses de “esquerda”, que querem identificar apenas uma grande potência (a Rússia) nesta guerra, e se põem docilmente a reboque dos “libertadores” Biden, Macron e da NATO.

Estes últimos, bem como os capitalistas do gás e do armamento, não tiveram nada a ver com a invasão russa, dizem eles; apenas se aproveitaram do ataque russo como sendo uma pechincha, uma surpresa divina, uma oportunidade para invadir e dominar o mercado europeu, para embolsar o jackpot. Eles não têm qualquer responsabilidade.

Qual é o valor deste argumento?

A NATUREZA DE UMA GUERRA E O SEU “INÍCIO”

4 – De facto, os oligarcas russos impuseram esta guerra ao povo russo e ao povo ucraniano, desencadearam esta guerra, tal como o Japão desencadeou a guerra em Pearl Harbour, a 7 de Dezembro de 1941.

Numa guerra entre abutres, entre potências militares, há sempre uma delas que a inicia.

Mas todos os historiadores e todos os democratas, especialmente norte-americanos (1), sabem que três meses antes, no final de Julho de 1941, os três imperialismos (Norte-americano, Britânico e Holandês) – ferozes colonialistas rivais dos colonialistas japoneses na Ásia – tinham, através de um embargo total, proibido ao Japão 88% das suas importações de petróleo e três quartos das suas trocas comerciais. Esta agressão económica deixou o Japão sem outra saída para além da guerra, a qual Roosevelt queria.

5 – Vejamos a política recente dos líderes norte-americanos da NATO que os arautos “de esquerda” da guerra até ao fim querem ilibar, para camuflar o seu alinhamento com o “seu” Estado, liderado por Macron.

O que quis dizer o diplomata dos EUA Charles Freeman – outrora Chefe das agências de informação dos EUA – quando declarou que a política seguida pelo seu Estado é “combater a Rússia até ao último Ucraniano”? É verdade que o actual Director da CIA, Burns, escreveu já há muito tempo: “A entrada da Ucrânia na NATO é a mais avermelhada das linhas vermelhas”, e que esta doutrina de prudência foi expressa durante anos por Kissinger, McNamara, Kennan e dezenas de altos diplomatas: uma tal decisão sobre a Ucrânia conduziria à guerra.

POVOS SACRIFICADOS AO LUCRO

… Por conseguinte, não é em pleno conhecimento de causa que Blinken (actual ministro dos Negócios Estrangeiros dos EUA), em representação de Biden, declarou em 2021: “Apoiamos a entrada da Ucrânia na NATO” e garantiu a Zelensky, em Novembro de 2021, todo o armamento necessário para a guerra? Depois destas provocações, utilizando e sacrificando os povos ucraniano e russo, logo a seguir à guerra iniciada pelos oligarcas russos (um mês depois!), foram assinados acordos para a venda à Europa de milhares de milhões de metros cúbicos de gás norte-americano, substituindo o gás russo.

6 – Àqueles que, em França, são heróis baratos e apelam à guerra a todo o custo, tendo a indecência de comparar esta guerra entre grandes potências com a guerra de libertação do povo argelino, a resposta foi dada em duas frases, no dia 25 de Fevereiro. Ela veio de uma mulher Franco-Argelina, cuja família lutou contra o imperialismo francês: “Nós estávamos sozinhos, não tínhamos a NATO connosco.” Ponto final nesta vergonhosa manobra.

Logo que as verdades económicas são ditas, assim que as provocações deliberadas de apoio à guerra são denunciadas, ouvimos a acusação ritual de “estão feitos com os Russos”. No século XXI, após a confissão de Colin Powell de que a guerra mais mortífera, a do Iraque, foi fomentada por falsificadores da CIA, depois destas mentiras difundidas para todo o mundo terem sido reconhecidas pelo homem que as disse na ONU, que mais é preciso – a menos de se ser incuravelmente atrasado mental – para não embarcar nos truques hipócritas dos governos fautores de guerras?

Esta semana, num ecrã de TV da união sagrada um almirante declarou: a população da Rússia é três vezes maior do que a da Ucrânia; portanto, é preciso que os Ucranianos matem três vezes mais Russos.

Esta linguagem de carnificina imperialista, estamos a ouvi-la um século depois da matança de 1914-1918, enquanto a luta pela reabilitação dos 639 soldados franceses fuzilados para dar o exemplo ainda não foi completada.

Nós, internacionalistas, lutamos por um cessar-fogo imediato.

Nem o campo de Putin e dos oligarcas, nem o campo de Biden, Macron, Total e dos seus congéneres capitalistas norte-americanos, são nossos.

O nosso campo é o das vítimas e dos povos, nas palavras da Internacional: “Os reis embebedam-nos com fumo; Paz entre nós, guerra contra os tiranos”.

Crónica da autoria de Michel Sérac, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” Informações operárias – nº 746, de 1 de Março de 2023, do Partido Operário Independente de França.

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(1) Ver, por exemplo, Howard Zinn, A People’s History of the USA, capítulo XVI.

ALEMANHA: Cessar-fogo e negociações de paz, de imediato!

Sahra Wagenknecht e Alice Schwarzer lançaram, a 10 de Fevereiro, um “Manifesto pela Paz” (ver abaixo), o qual tem tido uma resposta inacreditável: 500.000 assinaturas já foram obtidas, apesar da cobertura hostil dos meios de Comunicação social. As assinaturas estão a ser registadas a uma taxa de cerca de uma por segundo.

Sahra Wagenknecht é membro do Bundestag alemão (Parlamento). Desde o início da guerra, ela tem-se oposto à escalada militar e aos 100 mil milhões adicionais para a guerra decididos pelo Primeiro-ministro Scholz. A luta de Wagenknecht contra a guerra e contra as sanções em relação à Rússia – causadores de escassez de energia eléctrica, do aumento de preços, da paragem de fábricas e do enriquecimento dos oligarcas russos – têm-lhe valido ataques de todos os lados: dos meios de Comunicação social, do SPD, dos Verdes, da Direita e da liderança do seu próprio partido (Die Linke – A Esquerda).

Alice Schwarzer é uma escritora e activista dos direitos da mulher, das mais conhecidas na Alemanha.

Sahra Wagenknecht – com base na ampla corrente que se está a formar dentro e fora do Die Linke, com posições convergentes – apela a um grande comício contra a guerra, no sábado (25 de Fevereiro), em frente à Porta de Brandenburgo, no coração de Berlim. Tendo em conta a rejeição generalizada da guerra, este apelo a um comício transformou-se, de imediato, num apelo a uma manifestação nacional, com o aluguer de autocarros em todo o país.

O sucesso do “Manifesto para a Paz” exprime a forte rejeição à guerra que existe na Alemanha, cada vez mais ligada à rejeição de toda a política do chanceler Scholz. Em seguida, a 4 de Março, realizar-se-á também em Berlim uma conferência, com a participação de militantes operários e de sindicalistas, combinando a luta contra a guerra militar com a luta contra a guerra social.

“Manifesto pela paz”

Hoje é o 352º dia de guerra na Ucrânia. Mais de 200.000 soldados e 50.000 civis foram mortos até agora. Mulheres têm sido violadas, crianças têm sido amedrontadas, um povo inteiro foi traumatizado. Se a luta continuar assim, a Ucrânia será em breve um país despovoado e destruído. E muitas pessoas, em toda a Europa, também têm medo de uma extensão da guerra. Elas temem pelo seu futuro e pelo dos seus filhos.

O povo ucraniano, brutalmente invadido pela Rússia, precisa da nossa solidariedade. Mas, o que é ser solidário agora? Por quanto tempo mais teremos de lutar e morrer no campo de batalha ucraniano? E qual é hoje, um ano mais tarde, o objectivo desta guerra? O ministro dos Negócios Estrangeiros alemão falou, recentemente, do facto de “nós” estarmos a travar uma “guerra contra a Rússia”. Está a brincar?

O presidente Zelensky não faz segredo do seu objectivo. Depois dos tanques prometidos, ele exige agora aviões de combate, mísseis de longo alcance e navios de guerra – para derrotar a Rússia em toda a linha. Pelo seu lado, o Chanceler alemão continua a insistir que não vai enviar aviões de combate ou “tropas terrestres”. Mas quantas “linhas vermelhas” já foram cruzadas nos últimos meses?

É de temer que Putin lance um contra-ataque máximo, o mais tardar aquando de um ataque à Crimeia. Estaremos então, inexoravelmente, a ser arrastados por um declive escorregadio para a guerra mundial e a guerra nuclear? Não seria a primeira grande guerra a ter começado desta forma. Mas seria, talvez, a última.

A Ucrânia, apoiada pelo Ocidente, poderá certamente ganhar algumas batalhas. Mas não pode ganhar uma guerra contra a maior potência nuclear do mundo. Isto é também o que diz o mais graduado oficial militar dos EUA, o general Milley. Ele declarou existir um impasse, em que nenhum dos lados pode ganhar militarmente e onde a guerra só poderá terminar na mesa das negociações. Então, porque não agora? De imediato!

Negociar não significa render-se. Negociar significa fazer cedências, de ambos os lados. Com o objectivo de evitar centenas de milhares de mortes suplementares e pior ainda. É isto que nós pensamos e pensa também metade da população alemã. Chegou o momento de nos ouvirem!

Nós, cidadãos alemães, não podemos agir directamente sobre os EUA e a Rússia, ou sobre os nossos vizinhos europeus. Mas podemos e devemos colocar o nosso Governo e o Chanceler que o lidera perante as suas responsabilidades e lembrá-los do seu juramento: “Evitar danos ao povo alemão”.

Pedimos ao Chanceler que pare a escalada do envio de armas. De imediato! Ele deve assumir a liderança de uma aliança forte, a nível alemão e europeu, para um cessar-fogo e negociações de paz. De imediato! Porque cada dia perdido custa cerca de 1.000 vidas – e  aproxima-nos mais de uma terceira guerra mundial.

Alice Schwarzer e Sahra Wagenknecht