Plano de recuperação e Brexit: dois acordos europeus “Biden-compatíveis”

Esta Nota referente à União Europeia foi escrita antes da invasão do Capitólio por adeptos de Trump – esse “aprendiz de feiticeiro”, desencadeador de “fenómenos” que, depois, é incapaz de controlar…  

Há apenas algumas semanas, a União Europeia (UE) estava à beira do desmembramento total. O Plano de recuperação de 750 mil milhões de euros estava bloqueado por causa do veto da Hungria e da Polónia. E nas negociações que têm estado em curso nos últimos dez meses sobre um Acordo Comercial do Reino Unido com a UE para “organizar” o Brexit, estávamos à beira de um “no deal”, ou seja, a falta de qualquer acordo, com o restabelecimento dos direitos alfandegários no comércio de mercadorias.

E depois, de repente, tudo foi desbloqueado. O Plano para a recuperação foi validado na Cimeira da UE, realizada em Bruxelas, a 10 e 11 de Dezembro, tendo a Polónia e a Hungria levantado o seu veto, e foi assinado um Acordo comercial entre o Reino Unido e a UE na véspera de Natal, evitando o não acordo.

O que aconteceu?

Existem, evidentemente, em primeiro lugar, razões internas para estes dois compromissos de última hora.

A Polónia e a Hungria expressaram a sua satisfação com a “declaração interpretativa” elaborada pela Alemanha (que foi Presidente da UE até 31 de Dezembro de 2020), que efectivamente refere 2022 como ano da possibilidade de bloquear o pagamento de Fundos por casos de violação do Estado de direito. Deve-se dizer que a Polónia vai receber da UE 23 mil milhões de euros e a Hungria 6 mil milhões, ou seja, em ambos os casos, mais de 4% do seu PIB.

E, no que diz respeito ao Brexit, o Patronato britânico exerceu pressão sobre Boris Johnson para que fossem feitas concessões nas negociações finais, com o objectivo de evitar direitos aduaneiros que seriam mais prejudiciais relativamente ao Reino Unido.

É que, no caso de um “não acordo”, o comércio entre a UE e o Reino Unido teria ficado sujeito às taxas da Organização Mundial do Comércio (OMC), que podem ser muito elevadas para certos produtos agro-alimentares, da indústria automóvel ou os fármacos. A partir de 9 de Dezembro, a empresa japonesa Honda anunciou que iria suspender a produção na sua fábrica de carros de Swindon (Sudoeste de Inglaterra) por falta de componentes, e, nessa mesma semana de meados de Dezembro, John Allan, o dono da cadeia de supermercados Tesco, tinha anunciado que os preços nas suas lojas poderiam sofrer um aumento médio de 5% (os Britânicos produzem apenas 57% dos legumes e 16% da fruta que consomem). Os meios empresariais do Reino Unido tinham avaliado em 2% a descida do PIB como custo de um “no deal”.

Também do lado europeu, a assinatura do Acordo comercial foi recebida com satisfação, como é evidenciado por esta reacção da Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis: “Este Acordo é um grande alívio.”

É assim compreensível o que pesou na assinatura deste Acordo comercial.

Mas essa não é a principal razão para estes dois acordos.

Estes dois compromissos foram alcançados uma vez confirmada a eleição de Biden como Presidente dos Estados Unidos da América (EUA).

Durante quatro anos, Trump pressionou no sentido de pôr em causa todas as instituições internacionais (Organização das Nações Unidas, NATO, Acordo Climático de Paris,…), e, em particular, no sentido do desmembramento da UE. Sabemos que a Polónia representa, abertamente, essa pressão do imperialismo norte-americano na Europa. Daí o veto exercido durante algum tempo, enquanto Boris Johnson esperava a conclusão de um Acordo comercial directo entre o Reino Unido e os EUA.

Mas a eleição de Biden alterou a situação. Ele representa a fracção do capital norte-americano favorável à manutenção das instituições internacionais existentes. Daí o levantamento do veto da Polónia. E daí também o acordo sobre o Brexit. A partir de 13 de Novembro, Boris Johnson tinha-se distanciado dos seus conselheiros mais favoráveis a um Brexit duro, incluindo o seu Conselheiro especial, Dominic Cummings.

Como o indicava já em meados de Novembro o economista britânico Meredith Crowley: “Com a eleição de Joe Biden, de origens irlandesas, o Primeiro-ministro (inglês) enfrenta um adversário do Brexit. Biden recusa estabelecer um Acordo com os Britânicos se eles não respeitarem o Protocolo irlandês – mecanismo concebido com os Europeus para evitar o regresso de uma fronteira física entre as duas Irlandas, depois do Brexit.”

Contudo, mesmo com estes dois compromissos as relações entre os EUA e a UE continuarão a ser marcadas por uma feroz guerra comercial. Foi assim que, a 30 de Dezembro, foi divulgado que Washington tinha decidido impor direitos aduaneiros adicionais sobre alguns produtos europeus (peças sobressalentes aeronáuticas, vinhos não espumantes e conhaques). Tudo isto no contexto da disputa que tem existido, desde 2004, entre a Boeing e a Airbus.

O capital continua a ser o capital.

Análise de Daniel Shapira publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 636, de 6 de Janeiro de 2021, do Partido Operário Independente de França.

Os EUA a manobrar, de Marrocos ao Médio-Oriente

Nas últimas semanas, atrás do burburinho das recriminações e queixas legais de Trump, este não ficou inactivo a nível internacional. Foi assim que obteve, de vários países do Médio-Oriente, o reconhecimento do Estado de Israel.

É nomeadamente o caso da Arábia Saudita, dos Emirados do Golfo e do Sudão (em troca, os EUA removeram o Sudão da lista negra dos países antidemocráticos). Tanto a Arábia Saudita como estes outros Estados árabes não tinham, até agora, reconhecido o Estado de Israel, nunca referindo sequer o seu nome, mas designando-o como sendo uma “entidade sionista”.

Trata-se de uma reviravolta importante, que os Palestinianos denunciam como constituindo uma facada nas costas.

Para além do apoio ao Estado de Israel, por parte dos EUA, trata-se antes de mais da constituição – sob a égide do imperialismo norte-americano – de um “pilar da ordem”. De facto, essa estratégia visa juntar, no mesmo quadro, todos aqueles que eram pró-EUA, mas que não se reconheciam entre si, a fim isolar o Irão. Porque é precisamente esse o objectivo destes acordos: para conter o Irão, para exercer pressão sobre ele com sanções e até atacá-lo, como o demonstra o assassinato de vários funcionários do Programa de Armas nucleares iranianas pela Mossad israelita (Serviços Secretos de Isreal).

É também uma tentativa de esmagar a reivindicação do povo palestiniano de um único Estado em todos os territórios da Palestina histórica.

O último acto, sempre sob a égide dos EUA, foi um Acordo de reconhecimento estabelecido entre Marrocos e Israel. De facto, foi um representante da Administração norte-americana que o anunciou, só depois tendo sido confirmado por Marrocos e por Israel. Note-se que este reconhecimento está a provocar uma grande indignação na população marroquina, muito arreigada à defesa do povo palestiniano.

Em troca do reconhecimento de Israel por Marrocos – o que este país sempre se tinha recusado a fazer até agora –, Israel e, acima de tudo, os EUA reconhecem o Sahara Ocidental como parte integrante de Marrocos. Em desafio frontal aos tratados internacionais, sob a égide das Nações Unidas, os EUA acabam de publicar um novo mapa de Marrocos que inclui o Sahara Ocidental.

Naturalmente, os EUA não estão preocupados com o Sahara Ocidental. Este território tem sido o cerne de uma disputa, que dura há décadas, entre a Argélia e Marrocos. Nas últimas semanas, até tinham aumentado as tensões e tiveram lugar alguns combates. A tomada de posição norte-americana é uma pressão directa e uma ameaça contra a Argélia, para que esta satisfaça ainda mais as exigências do imperialismo, nomeadamente ocupando o seu lugar na luta contra o “terrorismo” e deixando os militares argelinos intervir fora das fronteiras do seu país.

Ao fazer isto, a decisão dos EUA sobre o Sahara Ocidental visa dividir os povos do Magrebe e colocá-los uns contra os outros.

Esta estratégia também é uma resposta ao processo revolucionário iniciado na Argélia em 2019 e às insurreições das populações em Marrocos.

Esta acção ultrapassa Trump, mas corresponde às exigências do imperialismo norte-americano, de que o Biden vai assumir a liderança.

Análise de Lucien Gauthier publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 635, de 16 de Dezembro de 2020, do Partido Operário Independente de França.

Trump: “Até à morte”

“Donald Trump irá lutar até à morte”, declarou o seu filho numa conferência de imprensa. O próprio Trump anunciou que rejeitava a transição, dado que tinha alcançado a vitória eleitoral. Mobilizou os seus advogados. Ele apela aos seus apoiantes para que resistam. E a 9 de Novembro, demitiu o seu Secretário de Estado para a Defesa. Um dirigente da campanha de Joe Biden replicou que, se Trump não deixasse a Casa Branca até 20 de Janeiro de 2021 – data da investidura de Biden – os Serviços secretos obrigá-lo-iam a sair pela força.

Esta situação expressa a grande crise que está a dilacerar todas as instituições dos EUA, o sistema bipartidário e a classe dominante. O patronato – e, por outro lado, a Direcção da AFL-CIO (a principal Confederação sindical dos EUA) – mas também alguns responsáveis do Partido Republicano apelam ao respeito pela transição (ver no final).

Biden lançou um apelo à unidade. E declarou: “O povo norte-americano quer que cooperemos. E essa vai ser a minha opção. Apelo aos membros Democratas e Republicanos no Congresso para o fazerem comigo”.

Biden está consciente dos riscos que correm as instituições americanas e os próprios Estados Unidos da América. E quer aparecer como seu defensor. Um dos impulsionadores desta crise, e em consequência da eleição de Biden, é a irrupção na cena política de centenas de milhares de Negros, de jovens, de Latinos e de sindicalistas. Não se trata aqui apenas da luta contra o racismo sistémico. Foi uma verdadeira explosão social provocada pela crise que deixou dezenas de milhões de desempregados e lançou nas ruas milhões e milhões de precários, principalmente jovens e Negros. A fim de conquistar os seus votos, e sob a pressão do que é conhecido como a ala esquerda do Partido Democrata, Biden teve de “esquerdizar” o seu discurso prometendo medidas económicas e sociais, bem como um sistema de saúde para todos.

Mas agora que ele foi eleito as coisas mudam.

Um dos grandes patrões norte-americanos, Robert Rosenberg, declarou: “A principal tarefa do novo Presidente será mudar o clima do país – marcado, na minha opinião, pelo medo, a ansiedade e a discórdia, por um clima de esperança e de inclusão.”

O grande patronato norte-americano está preocupado com esta situação. Outro grande patrão explicou que o mandato de Joe Biden poderia ser positivo, “a médio e longo prazo, se ajudasse a aliviar as tensões sociais nos EUA”. E as declarações do Presidente da AFL-CIO indicam que ele está disposto a contribuir para isso.

Mas os patrões, evidentemente, querem defender-se. Nicole Wolter, Director de uma empresa metalúrgica, declarou: “Queremos que as coisas permaneçam na mesma, inclusive a nível da regulamentação. Não quero que me agravem os impostos”.

O jornal financeiro francês L’Opinion escreve: “Os Directores das grandes empresas poderão expressar o seu desacordo com a Administração do Sr. Biden, de forma mais enérgica, após ele tomar posse (…); porém, os chefes de empresa que trabalharam com o Sr. Biden declaram considerar o antigo vice-presidente (de Obama) como mais favorável aos negócios do que outros membros do seu Partido”. O Director de uma companhia petrolífera, Lee Tillman, preocupado com a dificuldade crescente na obtenção de direitos de prospecção, declarou, no entanto: “Não há dúvida: se a Lei sobre as infra-estruturas for aprovada, ficaremos numa posição muito melhor no decurso dos próximos dois ou três anos”. Mesmo antes da investidura de Biden, o patronato estabelece as suas condições.

O apelo de Biden aos Republicanos e o facto de estes manterem muito provavelmente uma maioria no Senado deverão levar a uma “coabitação”. Biden tinha-se comprometido com um plano de relançamento da economia, cujo financiamento implicava o restabelecimento de taxas sobre os lucros que Trump tinha suprimido. Mas tudo isso terá de ser negociado com o Senado de maioria Republicana.

Alexandria Ocasio-Cortez é apresentada como uma das líderes da ala “esquerda” do Partido Democrata. Ela tinha apoiado a candidatura de Bernie Sanders, contra Biden, antes de finalmente apelar a votar a favor deste último. Ela declarou: “A história do nosso Partido tende a demonstrar que a base está galvanizada pela perspectiva das eleições, mas que essas comunidades são rapidamente abandonadas após as eleições. Penso que o período de transição vai indicar se a nova Administração vai adoptar uma abordagem mais aberta e colaborativa ou uma abordagem de fecho”.

Mas a ala “esquerda” do Partido Democrata continua a pertencer ao Partido Democrata, mesmo que sofra a pressão da rua. Porque a mobilização independente dos Negros, dos jovens, dos Latinos e de muitos sindicalistas – que se uniram para expulsar Trump – vai agora ver-se confrontada com a política da nova Administração.

De facto, serão Biden e o Partido Democrata que irão liderar o país. Para serem eleitos, eles aproveitaram-se destas mobilizações. As exigências nelas feitas contra o racismo, por um Sistema de saúde para todos, contra a precariedade e o desemprego continuam a existir. Os numerosos responsáveis e militantes sindicais que participaram nessas mobilizações – independentemente da posição da AFL-CIO nacional – serão confrontados com a política da Direcção nacional da AFL-CIO de apoio a Biden. E estas exigências levantam a questão da independência em relação a todos aqueles – e especialmente a Biden – que querem manter o Sistema.

Preocupações nas altas instâncias

A decisão de Trump de recusar reconhecer a vitória de Biden e de apelar aos seus apoiantes para que resistam está a causar preocupação no seio da classe dominante dos EUA. O Director do Banco JP Morgan, uma das vozes mais influentes do mundo financeiro, declarou: “Chegou a hora da unidade. Devemos respeitar os resultados das eleições presidenciais norte-americanas e, como temos feito em todas as eleições, honrar a decisão dos eleitores e apoiar uma transição de poder.”

O antigo Presidente republicano, George W. Bush, telefonou a Biden para o felicitar pela sua vitória. Num comunicado declarou: “Apesar das nossas diferenças políticas, sei que Joe Biden é um homem bom que ganhou a oportunidade para liderar e unificar o nosso país. O presidente eleito repetiu que era o candidato democrata, mas que irá dirigir o país para todos os norte-americanos”.

E o Presidente da AFL-CIO, Richard Trumka, declarou: “Prevaleceu a democracia. A vitória de Joe Biden e Kamala Harris, numas eleições livres e justas, é uma vitória para o movimento operário americano (…). Agora, a AFL.CIO está pronta para ajudar o Presidente eleito, e a sua Vice-Presidente, a elaborar um primeiro plano de acção favorável aos trabalhadores”.

Análise publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 630, de 11 de Novembro de 2020, do Partido Operário Independente de França.