Estão a zombar com quem?

Com o desenvolvimento da pandemia, o capital e os governos que o servem lançaram-se na destruição massiva da força de trabalho, das relações laborais e dos direitos do Trabalho, numa tentativa de alcançarem, finalmente, o que não conseguiram fazer desde há décadas: realizar uma viragem completa da sociedade, destruindo todas as conquistas dos trabalhadores e dos povos.

Em muitos países, estão a ser implementadas medidas liberticidas em nome do “estado de emergência sanitária”, conjugadas com propaganda para aterrorizar a população. Estas medidas contam com o acompanhamento cúmplice dos líderes “oficiais” do movimento operário, de modo a puderem ser aplicadas. E, ao mesmo tempo, todos estes governos estão alarmados com a cólera das populações que está a crescer em todos os países.

É nestas condições que o Director da Organização Mundial de Saúde (OMS) e vinte e quatro chefes de Estado e de Governo (incluindo Macron, Merkel, o Primeiro-ministro de Portugal, Boris Johnson, o Presidente do Conselho Europeu, o primeiro-Ministro de Espanha e outros…) apelaram à necessidade de um novo Tratado internacional.

Eles escrevem: “A imunização é um bem público global e nós devemos ser capazes de desenvolver, fabricar e ampliar vacinas o mais cedo possível.” Alguns – ingenuamente – ficarão contentes com esta declaração de Macron, Merkel e companhia, identificando vacinas a bens públicos. Não terão razões para isso. Porque, por detrás desta cortina de fumo, há uma operação política.

Neste apelo, eles escrevem: “A pandemia representa o maior desafio com que a comunidade mundial foi confrontada desde a década de 1940.” No texto, eles recordam a criação de todas as instituições internacionais e, em seguida, apelam à criação de um novo Tratado, porque “a preparação para as pandemias precisa de uma liderança global para construir um Sistema de Saúde mundial, à altura deste milénio.”

Um novo Tratado para um novo milénio

Eles escrevem: “Com este objectivo, iremos trabalhar com chefes de Estado e de Governo de todo o mundo e com todas as partes envolvidas, incluindo a sociedade civil e os sectores privados.” Assim, o Director da OMS e os vinte e quatro Chefes de Estado e de Governo estão a propor – em nome da luta contra a pandemia, mas também contra as novas pandemias que anunciam como inevitáveis – a realização da unidade de todos à volta de um novo Tratado internacional.

Quem é que eles estão a querer enganar, o Director da OMS os chefes de Estado e de Governo que fazem discursos em plena pandemia, quando as suas consequências desastrosas realçam, mais do que nunca, a responsabilidade das políticas criminosas desses governos ao serviço do capital? Com quem é que Macron está a zombar, quando se compromete a produzir vacinas e, ao mesmo tempo, a anarquia gerada pelo seu Governo impede a vacinação daqueles que desejam ser vacinados? Com quem é que estão a zombar, ao anunciarem novas pandemias para assustar e desviar a atenção dos povos, fazendo-os depositar esperança neste novo Tratado?

Com quem é que estão a zombar, os signatários deste apelo – os mesmos que, no seu próprio país, estão a destruir hospitais públicos, escolas e tudo o que foi adquirido através da luta de classes, a fim de financiarem, com centenas de milhares de milhões o capital a que estão sujeitos?

Como bons samaritanos, eles irão pedir autorização à OMS, às instituições internacionais e a outros governos, como se nada mais pudessem fazer…

A realidade é que estes governos respeitam o sacrossanto regime da propriedade privada dos grandes meios de produção.

É por isso que não é possível dar qualquer confiança, qualquer apoio, sob que forma for, a Macron e ao seu Governo; pelo contrário, é mais necessário do que nunca lutar contra o seu estado de emergência e as suas leis liberticidas. Mais do que nunca, é preciso recusar qualquer união sagrada, preservar a independência da classe operária.

Nota de Lucien Gauthier, publicada em Informations Ouvrières – nº 649, de 8 de Abril de 2021 – jornal semanal do Partido Operário Independente (França).

A propósito dos louvores a Giscard d’Estaing. E 2005?

A morte de Giscard deu origem a um concerto de louvores, em todos os meios de Comunicação social. Macron fez um discurso de homenagem e declarou um dia nacional de luto em sua honra. Mas um facto é obscurecido ou quase não mencionado no “pedigree” de Giscard.

Ele foi o presidente da Convenção responsável pela elaboração do projecto de Constituição Europeia, submetido a referendo em França, em 2005. O seu projecto era apoiado pelos principais partidos institucionais – tanto de esquerda, bem como de direita – e pelos meios de Comunicação social, todos fazendo campanha pelo “sim” à Constituição.

E no Congresso da CES (Confederação Europeia dos Sindicatos) – realizado em 2003, em Praga – Giscard tinha sido recebido como convidado-vedeta para fazer a promoção do seu projecto. Mas o facto de Bernard Thibault (1) ter ficado em minoria no Conselho Confederal Nacional da CGT, em Fevereiro de 2005, foi um elemento crucial no movimento de rejeição da Constituição Europeia. Porque, apesar de todo o apoio dado nessa altura a Giscard, a 29 de Maio de 2005, 55% dos Franceses votou “não” no referendo, com uma taxa de participação muito elevada (seguido, a 1 de Junho de 2005, de um resultado análogo na Holanda).

O que fizeram eles desse voto “não”? Assim que foi eleito, em 2007, Sarkozy comprometeu-se com a Chanceler alemã Merkel a voltar a pôr na ordem do dia esse projecto de Constituição Europeia. E, a 13 de Dezembro de 2007, todos os Chefes de Estado e de Governo dos países-membros da União Europeia adoptaram o “Tratado de Lisboa”, desprezando o voto soberano do povo.

No Journal du Dimanche, de 6 de Dezembro, Alain Lamassoure – antigo ministro-delegado para os Assuntos Europeus, de França – confessa que “o Tratado de Lisboa, assinado em 2007, retomou 95% do projecto da Convenção”.

O cinismo de Giscard, nessa fase de elaboração do Tratado de Lisboa, é demonstrado por duas declarações sucessivas. Em 26 de Junho de 2006, na London School of Economics, Giscard declarou: “A rejeição da Constituição foi um erro, que deve ser corrigido.” E, um ano depois (a 1 de Julho de 2007), declarou ao Sunday Telegraph: “Todas as nossas propostas estarão no novo texto, mas escondidas ou disfarçadas.”

Que duplicidade da parte de Giscard, exaltado hoje por Macron!

No entanto, foram eles bem-sucedidos, na sua negação da democracia, com este Tratado de Lisboa?

Não, porque o resultado do referendo de 2005 foi um poderoso acelerador da crise de desmoronamento da União Europeia, que continua a amplificar-se. Isto porque o voto “não” à “Constituição europeia” enfraqueceu, consideravelmente, o poder das instituições da União Europeia, como pode ser visto com o bloqueio actual do “Plano de retoma”.

Tal como deu um grande impulso ao fenómeno da abstenção – que, desde então, se tem desenvolvido em todas as eleições – e reforçou o movimento de rejeição das instituições, de que o movimento dos Coletes Amarelos foi uma expressão espectacular.

Macron pode bem reivindicar-se de Giscard, mas o voto “não” à sua Constituição Europeia – mesmo que traído – verifica esta passagem de Marx, no seu livro O 18 de Brumário de Louis Bonaparte: “A Revolução vai até ao fundo das coisas (…). Aperfeiçoa o poder executivo, redu-lo à sua expressão mais simples, isola-o, dirige contra ele todas as culpas, para que possa concentrar todas as suas forças de destruição sobre ele. E, quando tiver completado a segunda metade do seu trabalho de preparação, a Europa vai saltar do seu lugar e regozijar-se: «Bem escavado, velha toupeira!».”

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(1) Thibault foi Secretário-geral da Confederação Geral do Trabalho (CGT) de França, entre 1999 e 2013.

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Nota de Daniel Shapira, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 634, de 9 de Dezembro de 2020, do Partido Operário Independente de França.