
Divulgamos uma entrevista de Markus Sokol (1), dada ao jornalista Renato Dias, de Goiânia, e que foi publicada a 5 de Janeiro de 2023 (antes da invasão do edifício dos “Três poderes” pelos fãs de Bolsonaro).
Renato Dias (RD): Quais são – traduzidos em indicadores, estatísticas e números – os legados negativos da era de Jair Bolsonaro?
Markus Sokol (MS): Posso resumi-los com base na condição das famílias trabalhadoras: pelo 4º ano consecutivo, sem qualquer reajustamento real do salário mínimo, os salários têm estado sob pressão de descida; temos quase 10 milhões de desempregados de um exército de 23,5 milhões de pessoas sub-empregadas (juntando desincentivados e sub-ocupados); 79% das famílias estão em sobreendividamento, o que constitui um máximo em 12 anos, de acordo com os dados do mês de Setembro.
RD: Alguma vez foi pior durante o governo de Bolsonaro?
MS: Sim, já tinha sido um pouco pior. Mas isto são dados de Setembro, em vésperas da eleição. São o produto de manobras político-eleitorais feitas no decurso de um ano, com o apoio do grande Patronato – e inclusive com a complacência dos apoiantes da “3ª via” – para tentar reeleger Bolsonaro, no âmbito de uma operação estatal real, mas que não funcionou.
De facto, a economia – anteriormente em recessão – foi, até certo ponto, impulsionada pelos créditos, os subsídios e as isenções. Surgiram algumas “generosidades” eleitorais e outras medidas que se traduzem agora no buraco deixado no complicado Orçamento de 2023. Sabemos que este Orçamento, votado “ao apagar das luzes, em Dezembro”, tem um défice de 220 mil milhões de reais (2). Não faz sentido que seja o povo a pagar esta conta!
Neste sentido, a PEC de emergência (3) foi um penso rápido, necessário, mas apenas um penso rápido. É isso que torna o legado negativo numa questão muito sensível, resultante das reivindicações sociais que foram reprimidas desde o golpe de 2016 (4), do défice de habitações, passando pelos programas sociais desmantelados, pelo corte nos recursos do Serviço Único de Saúde (SUS) e da Educação, pelo aumento do imposto sobre o rendimento dos assalariados, pelas empresas públicas desmanteladas e os serviços públicos delapidados. Tudo isto para preservar o famoso Serviço da Dívida interna (pública) que engole 30% do Orçamento nacional. É isto que tem de mudar.
RD: Qual é a sua análise sobre os nomes e quadrantes políticos que ocuparão os cargos ministeriais e o qual o significado do discurso “à esquerda”, na rampa do Palácio do Planalto, feito por Luiz Inacio Lula da Silva, em conjunto com o simbolismo da entrega da faixa presidencial (5)?
MS: O discurso de Lula reafirmou os compromissos da sua campanha eleitoral e indicou algumas das suas primeiras medidas positivas. Mas, neste contexto, o que foi verdadeiramente “de esquerda” foi a erupção espontânea das massas gritando o slogan: “Não à amnistia! Não à amnistia”. A Rede Globo, a Folha de São Paulo e outros órgãos de imprensa tiveram de o difundir. Nós, do Diálogo e Acção Petista (6) – que viemos à investidura em caravanas com bandeirolas e reivindicações populares, tendo à cabeça “Os golpistas para a prisão!” – regozijamo-nos com o amadurecimento da consciência do povo, parcial mas muito real.
A partir de agora, a muito ampla composição política do novo Governo será testada na prática. Não acredito que seja possível uma união, por exemplo com os 2500 patrões formalmente acusados de assédio eleitoral, nem com os políticos (nomeadamente os congressistas) envolvidos na compra de votos, nem com os generais que tenham exorbitado das suas funções, e assim por diante…
Em relação aos ministérios – através de um cálculo rápido baseado em informações da imprensa – dos 37 ministros nomeados apenas 11 são do PT, 13 vêm do Centro-direita e da Direita. Destes últimos, 11 apoiaram o golpe para retirar Dilma do cargo e meia dúzia foram bolsoniarstas, alguns até há bem pouco tempo. Curiosamente, entre todos estes 13, existe apenas um grande chefe de empresa (rural), o que sugere uma maior desconfiança deste sector em relação a anteriores governos do PT (por exemplo, havia 3 grandes chefes de empresa no Governo em 2002).
Mas, como eu disse, veremos como se irão comportar os novos ministros, especialmente face à tarefa de “desbolsonarizar” o Estado e ao “Não à amnistia”, ontem exigido pela multidão.
Entrevista publicada em 5 de Janeiro de 2023
(antes da invasão do edifício dos “Três poderes” pelos fãs de Bolsonaro)
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(1) Markus Sokol é dirigente da Corrente “O Trabalho” (Secção brasileira da 4ª Internacional) do PT e, ao mesmo tempo, foi eleito como membro do Secretariado nacional deste Partido, de acordo com o método de Hondt.
(2) Ou seja, cerca de 39,5 mil milhões de euros.
(3) PEC: Proposta de Emenda Constitucional.
(4) Golpe que derrubou Dilma Rousseff.
(5) Bolsonaro recusou-se a entregar a faixa presidencial ao seu sucessor. Foi uma mulher, trabalhadora da recolha do lixo – rodeada por pessoas de meios modestos – que entregou a faixa a Lula.
(6) Ver o nosso post anterior. O “Diálogo e Acção Petista” (DAP) é um movimento de base do Partido dos Trabalhadores (PT), que combate para que o PT retome o caminho das suas origens. Os militantes da Corrente “O Trabalho” (Secção brasileira da 4ª Internacional) do PT participam no DAP.