China: Manifestações contra o Regime atingem as principais cidades

Trabalhadores da maior fábrica de iPhones do mundo (Foxconn) participaram nos protestos.

Logo após o congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) ter reeleito Xi Jinping para governar do país, e ele parecia intocável, uma onda de mobilizações espalhou-se pelas principais cidades da China. Não se trata apenas da questão do confinamento em virtude da Covid, mas de uma revolta política e social contra o Regime.

As potências ocidentais têm os olhos cravados sobre a China, temendo que essas mobilizações desestabilizem o mercado mundial, do qual a China é um dos principais actores.

A mobilização na fábrica que produz os iPhones, no dia 23 de Novembro, sublinha o lugar da classe operária chinesa.

Em Wuhan, centenas de pessoas manifestaram-se, no centro do país, contra a draconiana política de “Covid zero” posta em prática pelo Governo chinês. Segundo vídeos transmitidos ao vivo nas redes sociais, uma multidão de habitantes irados reuniu-se nessa cidade, onde foi detectado o primeiro caso de Covid, em Dezembro de 2019. Manifestações similares registaram-se em várias cidades.

Crítica ao Regime

Em Xangai, outro vídeo mostra manifestantes gritando “Xi Jinping, demissão!” e culpando o PCC. Trata-se de uma muito rara demonstração de hostilidade contra o Presidente e o Regime, na capital económica do país, submetida no início deste ano a um extenuante confinamento de dois meses.

Em Pequim, várias centenas de estudantes da prestigiosa Universidade Tsinghua tomaram parte numa manifestação contra a política para a Covid-19. Vídeos nas redes sociais mostraram também uma importante vigília no Instituto de Comunicações de Nanquim, onde os participantes agitavam folhas de papel branco.

Esta é a mais importante mobilização desde o Movimento pela democracia, na Praça da Paz Celestial (Tiananmen), em Maio-Junho de 1989.

A 23 de Novembro, a maior fábrica de iPhones do mundo (Foxconn) revoltou-se

Cronologia dos acontecimentos

13 de Outubro: a empresa taiwanesa Foxconn (que tem 200.000 assalariados), localizada em Zhengzhou (província de Henan), que fabrica iPhones Apple, decide, após casos de Covid em Zhengzhou, manter a produção. Como resultado, os trabalhadores não estão autorizados a sair da fábrica e devem dormir lá e realizar repetidamente testes de Covid.

24-27 de Outubro: devido à falta de espaço, os trabalhadores que testaram positivos e negativos permanecem juntos, fechados na fábrica.

28-31 de Outubro: os trabalhadores que desejem abandonar este sistema fechado não estão autorizados a sair. No entanto, milhares conseguem evadir-se e são ajudados por habitantes de Zhengzhou.

1 de Novembro: a Foxconn publica uma Nota anunciando um bónus de 400 yuan (cerca de 56 euros) por dia e um bónus de 15.000 yuan para os trabalhadores presentes durante todo o mês de Novembro.

7 de Novembro: a Apple promete, numa Declaração, “assegurar ao conjunto dos funcionários uma produção sem perigos”.

17 de Novembro: O governo regional de Henan organiza o recrutamento de pessoal para a fábrica de Foxconn. A fábrica recebe cem mil candidaturas de emprego. No entanto, os novos recrutados acabam no mesmo sistema fechado, onde os trabalhadores detectados como positivos e negativos ficam misturados. E o montante do bónus não corresponde à promessa feita aquando do recrutamento.

23 de Novembro: manifestação de trabalhadores na fábrica Foxconn (foto acima). Imagens de vídeo mostram trabalhadores em confronto com forças da Polícia. Estas utilizam gás lacrimogéneo e canhões de água contra os trabalhadores, alguns dos quais são espancados e presos.

24 de Novembro: “As autoridades ordenaram aos habitantes de oito distritos de Zhengzhou, no centro da província de Henan, que não abandonassem a área durante os próximos cinco dias, construindo barreiras em torno de edifícios de apartamentos «de alto risco» e criando pontos de controlo para restringir a circulação” (Hong Kong Free Press).

Crónica da autoria de Albert Tarp, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” Informações operárias – nº 734, de 30 de Novembro de 2022, do Partido Operário Independente de França.

SRI LANKA: “Sair de 74 anos de mentalidade de escravo!”

Militantes manifestam-se em Colombo, a 16 de Julho, para exigir a libertação dos prisioneiros políticos recentemente detidos recentemente.

Damos a palavra a Marisa de Silva, coordenadora da Aliança Popular pelo Direito à terra (Parl)

O que aconteceu a 9 de Julho?

O 9 de Julho (ver o nosso post de 14 de Julho – NdR) não pode ser visto sem ter em conta a situação anterior. O 9 de Julho é o ponto culminante. Se olharmos para ele a partir do início da luta, vêem-se meses de frustração; mas, se olharmos para ele de uma forma mais ampla, está a sair-se de setenta e quatro anos de mentalidade de escravo. Setenta e quatro anos de insatisfação, traição e raiva contra os políticos que falharam, que os oprimiram, que não os conseguiram proteger.

O 9 de Julho deve ser visto como um ponto culminante, porque a jornada foi conduzida pela juventude. O povo do Sri Lanka só quer que a sua voz seja ouvida. Houve um apelo feito da Galle Face (a praça central em Colombo) para que o país saia para a rua, venha para Colombo, de todas as formas possíveis. O objectivo era acabar com a situação actual, provocar um confronto, tendo como resultado político acabar com este Governo, expulsar do poder este Presidente e este Primeiro-Ministro.

O Governo está a tentar limitar o número de manifestantes. Para o fazer, instituiu um recolher obrigatório policial, o que é ilegal, porque a Polícia não autorizada a fazê-lo. Depois também utilizou os sindicatos governamentais para impedir que os comboios entrassem em Colombo. Mas, teve de recuar perante a massa de pessoas que queria apanhar o comboio. E assim os comboios estavam a circular na manhã seguinte. Para o recolher obrigatório ilegal, havia advogados no processo de luta, pessoas e influenciadores das redes sociais de todo o país que – meia hora após o Governo ter anunciado essa decisão – utilizaram as redes de comunicação social e disseram às pessoas para virem, explicando porque é que o recolher obrigatório era ilegal. Isso espalhou-se como um rastilho de pólvora e, claro, vieram muitas pessoas. Havia uma enorme lacuna entre o que o Governo dizia e a realidade.

De manhã até à noite, as pessoas afluíram a Colombo. Vinham em camiões, vinham em “tuktuks”, vieram em qualquer meio de transporte possível. Estávamos determinados a vir-nos manifestar, qualquer que fosse o oque o governo nos pôs à frente. De facto, havia milhões de pessoas a querer invadir os palácios do Governo e o palácio presidencial.

O que é que os manifestantes exigem? Estão os sindicatos representados? E os partidos políticos?

A ocupação dos palácios aconteceu em seguida. Principalmente porque o Presidente e o Primeiro-ministro não as reivindicações, mas sobretudo porque eles já não tinham o mandato do povo. Rajapaksa (o Presidente) procurou, até ao último momento, um acordo que lhe permitisse sobreviver. A ocupação da Presidência, do palácio presidencial e da residência oficial do Primeiro-ministro pôs fim a essa ilusão. O povo ocupou os palácios governamentais não para que cada indivíduo utilizasse essas residências, mas sim como um meio de pressão. Neste sentido, o 9 de Julho foi o culminar de vários meses de luta económica, de uma crise humanitária onde não houve combustíveis (nomeadamente gasolina) nem medicamentos adequados. As pessoas têm dificuldade em sobreviver. As pessoas estão a morrer. As famílias estão a desmantelar-se. Há pessoas a suicidar-se. É uma época horrível, mas ela é o resultado de décadas de dirigentes que têm oprimido sistematicamente as pessoas.

Os manifestantes são um reflexo da sociedade: em grande parte, o cidadão médio, os jovens, os anciãos. Todos liderados pelos jovens. Há, evidentemente, as organizações de massa, os sindicatos, a sociedade civil, os partidos políticos (os pequenos e grandes partidos). Dentro da luta, eles foram identificados através dos seus grupos de jovens, dos seus estudantes. A classe operária estava representada em todos os seus componentes: grupos de mulheres, Tâmiles (1), Muçulmanos, trabalhadores das plantações. Inicialmente, houve uma relutância das populações do Norte e do Leste em participarem, porque estiveram sujeitos a muitos problemas, durante inúmeras décadas, e o Sul ignorou-os em grande parte ou não os apoiou.

Mas a crise económica está também a afectá-los, e se as coisas mudarem no Sul são geralmente as minorias que suportarão as consequências. Eles apoiaram o apelo amplo para avançarem para os centros de poder, não apenas por razões económicas, mas também por outras razões tais como crimes de guerra, raptos e desaparecimentos que os Tâmiles e os Muçulmanos têm enfrentado ao longo das décadas. Havia uma ampla representação deles nesta luta.

E que se passa com o Governo? O que é que fazem a Polícia e o Exército?

Obviamente que o actual Governo não é estável. Há um Primeiro-ministro sem mandato, que foi agora nomeado Presidente. Tudo repousa sobre o Parlamento, com um anúncio de eleições a realizar muito em breve, uma vez que é esta a principal exigência dos manifestantes.

Este é o primeiro passo para a estabilidade política de que necessitamos para resolver a crise económica e humanitária que estamos a enfrentar. Portanto, eu diria que o Governo deve demitir-se, porque não tem mandato do povo, não tem mandato político. Isto tem de ser feito. O actual Regime presidencial deve ser abolido. Muitas medidas devem ser tomadas, entretanto, por um Governo provisório e, claro, medidas urgentes para lidar com a crise económica.

No que diz respeito à Polícia e ao Exército, das suas prioridades anunciadas parece ser a formação de um “Comité composto por oficiais militares e policiais para manter a ordem pública”. Nós sabemos como isto pode ser interpretado e, obviamente, utilizado para reprimir os manifestantes, que continuam a protestar. A Polícia está a reforçar a segurança dos membros do Parlamento que possam apoiar o seu Comité, se isso for necessário. Percebe-se que este tipo de Comité militarizado sirva para intimidar e suprimir qualquer dissidência.

A 16 de Julho, os militares continuavam estacionados nas ruas. Não sabemos se isso vai durar.

E agora, em que fase está a mobilização?

Os manifestantes pedem a demissão imediata dos governantes e o anúncio de eleições num futuro muito próximo. Acabam de ser formados Conselhos populares, com representantes de todo o país, que será um órgão de poder, de contrapeso, que validará as leis aprovadas pelo Parlamento. Deste modo, isto dará essencialmente poder ao povo e indicará onde o Parlamento não poderá agir. Está a começar a ser elaborado um novo documento, baseado nas reivindicações, que servirá de suporte para a acção destes Conselhos.

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(1) Trata-se de um grupo étnico nativo de Tâmil Nadu (um Estado da Índia) e da região nordeste do Sri Lanka.

Entrevista concedida ao semanário francês “Informations Ouvrières” Informações operárias – nº 715, de 20 de Julho de 2022, do Partido Operário Independente de França.

Cazaquistão: Levantamento popular e intervenção russa

A revolta no Cazaquistão, na sequência de outras mobilizações populares nas Repúblicas da Ásia Central, como o Quirguizistão, ameaçam o equilíbrio nesta região. A Ásia Central é rica em matérias-primas e fica próxima da Rússia, mas também do Irão e do Afeganistão. A chegada dos Talibãs ao poder no Afeganistão tem causado grande preocupação entre os governos da Ásia Central, mas também da Rússia e do Irão. Foi perante esta situação e as suas repercussões na região e na própria Rússia que Putin decidiu enviar tropas para restabelecer a ordem no Cazaquistão. A União Europeia e os EUA estão a manifestar preocupação com esse país, mas na realidade eles estão preocupados com as repercussões regionais e globais desta situação. Sobre este assunto, publicamos um artigo de Anton Poustovoy, o nosso correspondente na Rússia.

Desde a independência do Cazaquistão, há trinta anos, a economia desta República tem sido uma das mais bem-sucedidas na Ásia Central. É verdade que tudo isto foi conseguido graças à venda de minerais: cerca de 40% das reservas mundiais de urânio estão no Cazaquistão e a principal razão para o crescimento económico é a venda de petróleo.

No entanto, apesar desta entrada de dinheiro fácil no país, ele é desigualmente distribuído pela sociedade, onde a maioria da população é pobre. Para além das desigualdades sociais, a corrupção e o nepotismo florescem na República.

Hoje, os 162 Cazaques mais ricos já se apoderaram de mais de 55% da riqueza nacional. E isto passa-se no contexto de um regime político cujos rostos não mudaram desde a ditadura da nomenclatura dos partidos soviéticos.

Os protestos começaram a 2 de Janeiro na aldeia operária de Zhanaozen, no oeste da República. Os trabalhadores foram para as ruas contra a subida para o dobro do preço do gás, que é utilizado pela maioria dos automóveis na Ásia Central. Estas manifestações pacíficas espalharam-se rapidamente a todas as regiões do país.

Após a violenta repressão feita pela Polícia, os manifestantes também começaram a reagir. O número de manifestantes aumentou bastante mais do que o número de polícias, os manifestantes desarmaram a Polícia e levaram com eles as suas munições.

O saque de edifícios de escritórios e de lojas de venda de armas começou. Os manifestantes agora têm armas. Oficiais da Polícia e do Exército ter-se-ão colocado ao lado dos manifestantes.

As autoridades máximas da República, longe de compreender a gravidade da revolta, agiram com desprezo. A sua primeira reacção foi responder às exigências do povo, que, após as exigências económicas, se voltou fortemente para exigências políticas – em particular a demissão do Governo, a 5 de Janeiro, assegurado pelo partido Nur Otan (Luz da Pátria). Mas a mobilização continuou, e a segunda acção das autoridades foi apelar a uma intervenção militar externa, da Rússia e dos países da Organização do Tratado de Segurança Colectiva (CSTO), apelo ao qual o Kremlin reagiu rapidamente, concordando em enviar as suas tropas para reprimir os protestos no país.

O bloco militar da Organização do Tratado de Segurança Colectiva (assinado pela Federação Russa, a Bielorrússia, a Arménia, o Tajiquistão, o Quirguizistão e o Cazaquistão) nunca tinha funcionado até agora.

Apenas uma vez, em 2010, o presidente deposto do Quirguizistão, Kurmanbek Bakiyev, tinha feito apelo ao bloco militar para reprimir a agitação étnica no sul da República, mas sem sucesso. Depois das tropas do bloco militar terem começado a chegar, o presidente do Cazaquistão (Tokaev) mudou radicalmente a sua retórica e chamou aos manifestantes “terroristas”, com os quais não havia espaço para discussão, apenas a necessidade de “atirar a matar”.

A 5 de Janeiro, as tropas do bloco militar da CSTO começaram a entrar no país. No entanto, pelo menos até hoje, 8 de Janeiro, os combates continuam entre o Exército e os rebeldes.

E aqui é importante dizer que, ao longo da existência do Cazaquistão como nação independente, toda a oposição e livre expressão de opinião têm sido duramente reprimidas. O antigo Partido Comunista, por muito desmoronado que esteja, é proibido no Cazaquistão.

Como resultado, hoje em dia, no Cazaquistão, não há uma única força legal que possa representar pelo menos uma parte das grandes multidões em protesto. Em vez disso, temos um forte protesto amplo – correspondente à mentalidade calorosa do povo cazaque – mas com um carácter completamente selvagem. Os manifestantes tiveram força suficiente para invadir edifícios administrativos, bem como estações de televisão e de rádio, mas falta-lhes a força proveniente da unidade e da disciplina. Se a tivessem, então o poder estaria nas mãos desta força unificadora.

O que une todos os países do bloco militar da CSTO? Todos eles têm regimes políticos com as mesmas características: corrupção, nepotismo, monarquia, restrição da actividade das associações da sociedade civil (incluindo os sindicatos dos trabalhadores).

Qualquer manifestação lá é ilegal, mas por outro lado é contagiosa. Uma sociedade que não tem a possibilidade de protestar recorre, rapidamente, a métodos agressivos, porque não sabe outro modo de agir. Com a manutenção dos regimes nas antigas repúblicas soviéticas, a perseguição dos militantes irá agravar-se em todas elas, após a repressão da revolta do Cazaquistão, e a reacção czarista reinará durante muitos anos.

Assim, levanta-se uma questão importante: a que custo é que o presidente Tokaev manteve o seu poder e que preço é que o povo cazaque irá pagar ao Kremlin?

Crónica do russo Anton Poustovoy, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières”Informações operárias – nº 688, de 12 de Janeiro de 2022, do Partido Operário Independente de França.