Qatargate ou UEgate? Advinhai…

A Vice-presidente grega do Parlamento Europeu, Eva Kaili, foi encarcerada na Bélgica por suspeita de corrupção.

Durante os últimos dias, todos os meios de Comunicação social, grandes e pequenos, canais de TV em contínuo e redes sociais apenas têm tido os olhos virados para o escândalo que acaba de eclodir no Parlamento Europeu (PE).

Há que dizer que há razão para isso!

De facto, a sua Vice-presidente grega, Eva Kaili, foi presa na Bélgica juntamente com três outras pessoas. São suspeitas de fazer parte de um esquema de corrupção em benefício de um Estado do Golfo, de acordo com diversas fontes.

Obviamente, a revelação da investigação e das detenções subsequentes causou uma onda de choque em Bruxelas, Estrasburgo… e provavelmente – como veremos – muito além. Eva Kaili é, de momento, a figura de proa deste caso. Eleita em 2014 para o Parlamento Europeu no Grupo dos Socialistas e Democratas (S&D), ela foi eleita Vice-presidente do Parlamento em Janeiro de 2022.

Actualmente detida, os investigadores terão encontrado centenas de milhares de euros em sacos na sua casa.

De facto, Eva Kaili fez parte da delegação para desenvolver as relações da UE com a Península Arábica. Neste contexto, ela visitou o Qatar pouco antes do início do Campeonato do Mundo de futebol. Ser-nos-á dito: talvez… nada de especial até aqui; não há centenas de membros de todos os grupos parlamentares do PE a receber salários enormes para manter e fazer frutificar as relações entre a UE e outras partes do mundo?

Isto é verdade, mas é claro que nem todos eles fizeram declarações como esta Vice-Presidente fez no passado dia 22 de Novembro: “Actualmente, o Campeonato do Mundo de futebol no Qatar é uma prova concreta de como a diplomacia desportiva pode levar à transformação histórica de um país cujas reformas têm inspirado o mundo árabe.” É preciso ter ousadia para dizê-lo, mas, como se costuma dizer nos círculos populares, qualquer dor merece um salário.

“Os subsídios são para os mandriões.” (Eva Kaili)

As centenas de milhares de trabalhadores filipinos, paquistaneses,… os 6.500 mortos nos estaleiros de construção do Qatar e as suas famílias podem cerrar os punhos ao ouvir tais palavras. Cerrar os punhos enquanto esperam por algo melhor! Mas esta Vice-Presidente é algo como um infractor reincidente, em termos de ignomínia. Não foi ela que declarou, em 2019, dirigindo-se aos seus concidadãos gregos a receberem magras ajudas sociais: “Os subsídios são para os mandriões.”? Decididamente, estamos a ficar passados. Trata-se de uma socialista, ao que parece.

Mas vamos deixar Eva Kaili – e os seus verdadeiros ou supostos actuais comparsas – e viremos a nossa atenção para a instituição em si. Pois, no fundo, o que está em causa não é o Parlamento Europeu, a União Europeia e tudo o que lhes está associado?

Naturalmente, não temos dúvidas que – quaisquer que sejam os desacordos que possamos ter com alguns dos seus membros – algumas pessoas estejam sinceramente chocadas, indignadas e mesmo transtornadas com esta revelação. Mas, o que pensar de alguém do partido do presidente Macron a falar sobre a necessidade de “incutir mais ética”?

E há vários outros que se pronunciam no mesmo sentido. Como dizia um velho revolucionário que tive a honra de conhecer na minha juventude: “Quando alguém te falar sobre ética, com a mão no coração, certifica-te de que a tua carteira continua a estar no teu bolso.”

Alguns, mais subtis, chamam a nossa atenção para o facto de que o Qatar é um país totalitário, ou autoritário – dependendo de a causa principal desta corrupção ser devida à natureza consubstancial deste tipo de Estado.

Grande novidade! No maior templo da democracia, os EUA, e noutro templo da democracia, o Reino Unido – para já não falar da França – os lobistas têm vindo a corromper senadores, deputados, lordes, etc., durante décadas. E não se trata apenas de comerciantes de armas e outros traficantes que são bem conhecidos de todos. De certa forma, Stéphane Sejourné, de Renew (Renovação, o grupo do PE ao qual pertence o partido da extrema-direita francesa Renaissance), levanta uma ponta do véu. Não entremos em pânico, apenas uma ponta. “Há uma diferença entre não votar a favor de uma Resolução e ser corrupto”, diz ele, em relação ao Qatar. O que é verdade. Mas ele prossegue: “Os governos não quiseram criar um problema diplomático ou misturar política com desporto, no momento errado.” O que já é muito mais claro.

AS MULTINACIONAIS FAZEM A CHUVA E O BOM TEMPO

Não há necessidade de cair na armadilha “tudo está podre” – deixamos isso a pessoas de outros quadrantes políticos – para constatar que este caso ilustra, de uma forma particularmente marcante, a corrupção que grassa nas instituições europeias, e não apenas no seu parlamento: é o próprio Sistema que é a principal força motriz dessa corrupção.

O Banco Central Europeu – que utiliza a fabricação de dinheiro quando decide fazê-lo, de acordo com os desejos do Banco Federal dos EUA – não é responsável perante os Estados que compõem a União Europeia. A quem é que ele presta contas? Às multinacionais, que fazem a chuva e o bom tempo em Bruxelas, em Estrasburgo, em Doha, mas também em Paris, Londres e Washington.

Existem, portanto, todo o tipo de lobistas acreditados. Alguns estão devidamente registados e listados, outros agem nos bastidores, outros – em simultâneo, muitas das vezes – subcontratam frequentemente os seus serviços.

E, é claro, as ONGs não são, de forma alguma poupadas – e como poderiam sê-lo? – e tudo isto não é novidade.

O Qatargate parece ser o início de um novelo que não pode terminar de se desembrulhar. Um dia de cada vez.

Tudo isto deve ser seguido. Entretanto, ética ou não ética: produtores, salvemo-nos a nós próprios!

Crónica da autoria de Gérard Bauvert, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” Informações operárias – nº 736, de 14 de Dezembro de 2022, do Partido Operário Independente de França.

Qatar: uma média de mais de 800 imigrantes mortos por cada estádio

Transcrevemos uma parte da crónica do jornalista Pedro Sousa Carvalho, publicada no Expresso online, de 23 de Novembro de 2022.

“No relatório World Cup 2022 Sustainability Strategy, a FIFA (1) comprometeu-se a defender, com unhas e dentes, os princípios de ESG (2) e fixou cinco pilares de sustentabilidade sobre os quais deveria assentar a organização do Mundial de Futebol no Qatar. 1) Humano, 2) Social, 3) Económico, 4) Ambiental e 5) Governance (Governabilidade). Vamos ao balanço.

1) Humano: Nas obras dos estádios e das infraestruturas, segundo o jornal The Guardian, terão morrido 6.500 trabalhadores imigrantes por falta de condições de trabalho. Isto num país que partilha, com os restantes do Golfo Pérsico, o Kafala, um sistema de escravatura disfarçado de controlo de migração.

2) Social: Khalid Salman, embaixador do Mundial do Qatar, disse numa entrevista à televisão alemã ZDF que “a homossexualidade é uma doença mental”.

3) Económico: Os 4,5 mil milhões de euros arrecadados com as transmissões televisivas, bilheteiras e patrocinadores vão todos para os bolsos da FIFA.

4) Ambiental: O Qatar prometeu realizar o primeiro Mundial «neutro em carbono». Afinal, as previsões mais simpáticas apontam para a emissão de 3,6 milhões de toneladas de CO2.

5) Governance: O Qatar é um regime autocrático, suspeito de apoiar grupos extremistas e de ter comprado votos de outros países para poder realizar este mundial.

Se isto fosse um jogo de futebol, coisa que não é, era caso para dizer FIFA 5 – ESG 0.”

A parte mais gritante do balanço: cada um dos 8 estádios (reconstruído ou construído de raiz) e as suas infraestruturas “custou”, em média, a morte de mais de 800 trabalhadores imigrantes…

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(1) A sigla significa Fédération Internationale de Football Association (Federação Internacional de Futebol).

(2) Governabilidade ambiental e social.

A neve do deserto

Dentro de alguns dias, será realizado no Qatar o Campeonato do mundo de futebol.

Estádios com ar condicionado, é bom para o planeta.

Seis mil e quinhentos trabalhadores asiáticos, verdadeiros escravos, morreram para os construir, e muitos comentadores sugerem que o Qatar fez subornos para conseguir acolher o Campeonato do mundo de futebol (1).

No último momento, algumas almas – tais como a Sra. Hidalgo (2) – mostraram-se perturbadas por este evento se realizar no Qatar, apesar de não terem dito nada sobre o assunto durante anos, e anunciam que não haverá ecrã gigante em Paris para transmitir o Campeonato do mundo. Mas o facto de o Emirado do Qatar ser o proprietário do clube de futebol PSG não incomoda a Sra. Hidalgo.

O Conselho Olímpico da Ásia anunciou, a 4 de Outubro, que o reino do deserto da Arábia Saudita irá acolher os Jogos Asiáticos de Inverno, em 2029. É de facto sabido que, tal como nos Alpes, a neve cai lá em abundância e que é o reino dos esquiadores.

O projecto para acolher estes Jogos ascende a quase 500 mil milhões de dólares. Eles irão, nas montanhas em torno do Neom – como diz o gestor do projecto – construir “infra-estruturas adequadas para criar uma atmosfera de Inverno no coração do deserto”.

Uma aparelhagem técnica gigantesca criará um frio invernal, neve artificial, gelo para o hóquei e a patinagem artística; tudo isto, é claro – tal como foi indicado pelas autoridades sauditas – em conformidade com as normas ambientais.

Um esquiador alpino saudita, Fayik Abdile, um pouco surpreendido, disse: “Nunca pensei poder alguma vez esquiar no meu país.”

Um pouco ingénuo, ele não pensou que muito dinheiro pode fazer acontecer um monte de coisas.

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(1) Centenas de milhares de trabalhadores, especialmente indianos e nepaleses, foram cruelmente sobre-explorados – como se fossem forçados das galés – por salários de 200 euros, muitas vezes não pagos; os seus documentos administrativos foram-lhes retirados, foram proibidos de se deslocar e de rescindir os seus contratos. Sem pausas nem protecção, com temperaturas de 50°C, morreram milhares de entre eles, desde há dez anos, por esgotamento, hipertermia ou desidratação, frequentemente com vinte e poucos anos de idade. As causas da sua morte por sobre-exploração foram falsificadas. O repatriamento dos caixões teve de ser pago pelas famílias. A Amnistia Internacional tem denunciado as responsabilidades das autoridades do Qatar e da FIFA, dando ênfase ao silêncio dos dirigentes do futebol francês.

(2) Anne Hidalgo, do PS, é presidente da Câmara Municipal de Paris desde 2014.

Crónica da autoria de Lucien Gauthier, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” Informações operárias – nº 729, de 26 de Outubro de 2022, do Partido Operário Independente de França.