Plano de Biden: É uma ruptura com o ajustamento estrutural assimétrico?

Impressionante?

Ao ler os jornais franceses, fica-se com a impressão de que ocorreu um milagre: Joe Biden – tocado pela graça como Paul de Tharse no caminho para Damasco – rompeu com a política seguida desde 1980 nos EUA.

E citam-se números que causam impressão! Mas vejamo-los mais de perto.

Foi votado um primeiro Plano de ajuda pública no valor de 1900 mil milhões de dólares: para além da ajuda às empresas, é dado um cheque de 1.400 dólares a todos os norte-americanos que têm menos de 75.000 dólares de rendimentos anuais, e uma ajuda que aumenta de 200 para 300 dólares por mês para as crianças, incluindo as mais pobres que não tinham direito a nada (27 milhões de crianças).

O nível de pobreza infantil nos EUA tinha-se tornado tal que esta medida parecia ser uma simples necessidade para evitar a subnutrição em massa que a pandemia era susceptível de causar. Parece ser uma ruptura com a decisão de 1996 do Presidente democrata Bill Clinton, com o forte apoio na altura do senador democrata Joe Biden, que tinha cortado em grande parte a ajuda às famílias que era encarada como encorajadoras da preguiça.

Nem por isso!

Mas o que aconteceu na Primavera de 2020? A mobilização contra o racismo sistémico e os assassinatos de Negros por polícias, mobilização a que se juntaram os jovens e os trabalhadores de todo o país, tinham posto a nu a gravidade da situação – subida do desemprego, aumento da miséria das crianças, das afro-americanas em particular, fruto dos despedimentos devidos ao encerramento de certas indústrias.

A grande censura feita pelos Negros a Barack Obama foi não ter feito nada por eles, ao mesmo tempo que tinha dado enormes somas de dinheiro aos banqueiros em falência em 2008. Biden, a fim de obter apoio eleitoral, teve que mudar de estratégia: nas Primárias do Partido Democrata, em que estava em má posição, teve de procurar o apoio do voto dos Negros. Eleito numa situação caótica, Biden teve de pelo menos publicar um Plano rápido para apoiar a economia, após as enormes doações de Trump aos multimilionários.

Contudo, notemos que a ajuda para as crianças, por exemplo, é limitada a um ano; e o cheque de 1400 dólares para cada norte-americano irá servir para pagar na sua maioria a educação, habitação, seguro de saúde, e assim por diante. Assim, de certa forma, também ajuda os bancos a ultrapassar esta má situação, mas mantém a especulação (daí a subida em flecha dos mercados bolsistas, tranquilizados por verem os presentes de Trump implicitamente confirmados).

Por outro lado, os créditos para a vacinação são canalizados para os grandes laboratórios farmacêuticos. Quanto ao saque organizado do Sistema de saúde em benefício desses laboratórios e das companhias de seguros, nada mudou.

Quanto ao prometido salário mínimo federal de 15 dólares, bastou apenas um senador do Partido Democrata se ter oposto para que ele tivesse sido retirado do Projecto-lei.

O Plano apresentado por Biden é, portanto, um reflexo da gravidade da situação: face à raiva expressa nos protestos massivos, Biden tem de fazer o papel de bombeiro para não deixar cair o essencial.

A distribuição da ajuda é temporária e permite que a pessoa afogada mantenha a cabeça fora de água durante algum tempo. E, quanto os mecanismos fiscais que têm produzido desigualdades impressionantes? Não se trata de os alterar.

E o Plano de 3 milhões de milhões de dólares para infraestruturas?

Trata-se apenas de um projecto, neste momento, e planeado para oito anos. Por isso, não é assim tão considerável em cada ano. Podemos ter a certeza de que a discussão no Senado tornará possível definir os contornos do projecto de uma forma muito vantajosa para o sector privado.

A degradação das infraestruturas é um problema grave. Os incêndios na Califórnia foram iniciados por postes eléctricos degradados e pela empresa – que tinha engordado os seus accionistas durante anos – declarou falência para evitar ter de pagar as reparações, melhorar a sua rede e indemnizar as vítimas. Alguns condados nem sequer têm água potável. Ao longo do seu mandato, Trump todas as semanas prometia grandes planos de reconstrução das infraestruturas. Portanto, isto não é nada de novo. As despesas militares de 780 mil milhões de dólares foram votadas em perfeito acordo pelos Democratas e Republicanos e nunca foi sujeita a qualquer tipo de austeridade. Assim, haverá gastos em infraestruturas com uma parceria público-privada que irá organizar os custos para o Estado e os lucros para os multimilionários. Mas, numa tentativa de suavizar o golpe, Biden anunciou que haverá um pequeno aumento do imposto sobre os lucros das empresas para o financiar. Mas Trump baixou esse imposto de 35% para 21%, e Biden sugere aumentá-lo de 21% para 25%. Que audácia!

Tensões extremas

Como sempre, os jornalistas invertem as causas e as consequências. Biden está a tentar conter a luta de classes para, a seguir, não ter de recuar.

A aprovação pelo Senado da Geórgia de novas leis Jim Crow (1) para limitar o voto dos Negros mostra que a reacção continuará a sua ofensiva, enquanto Biden procura evitar provocações que possam reavivar as mobilizações contra o capitalismo.

Os trabalhadores e os jovens não irão trocar o certo pelo incerto. As questões-chave – o salário mínimo federal a 15 dólares e Medicare para todos – permanecem tão relevantes como sempre.

O veredicto que declara culpado o agente da polícia Derek Chauvin no assassinato de George Floyd foi recebido por Biden com alívio, porque se tivesse acontecido uma absolvição, desta vez teria provocado motins por todo o país.

Mas a situação permanece tensa: as mortes de Negros por agentes da Polícia continuam, com a legislação do Supremo Tribunal a assegurar a imunidade para a polícia não foi alterada. O Senado da Geórgia acaba de aprovar uma lei Jim Crow, para limitar o direito de voto, e projectos de lei semelhantes estão em curso noutros Estados.

Tudo está preso por fios e Biden sabe disso.

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(1) As leis de Jim Crow foram leis estaduais e locais que impunham a segregação racial no sul dos EUA. Todas essas leis foram revogadas no final do século XIX e início do século XX pelas legislaturas estaduais dominadas pelos Democratas, após o período da Reconstrução iniciado em 1867.

Esta Nota, da responsabilidade da Secção francesa da 4ª Internacional, foi publicada na Carta de “A Verdade”, nº 1026, de 28 de Abril de 2021.

EUA: Foi adoptado o Plano de Biden, mas ele nada resolve


Manifestantes do movimento Black Lives Matters, em Minneapolis, a 7 de Março de 2021, na véspera da abertura do processo sobre a morte de George Floyd.

O Plano de Biden – oficialmente chamado “plano de resgate americano” – foi aprovado pelo Congresso (1) dos EUA, com o voto favorável dos Democratas e a oposição dos Republicanos. Este Plano disponibiliza 1900 mil milhões de dólares para gerir a crise da Covid e as suas consequências económicas. Ele inclui o envio de um cheque de 1400 dólares a todos os norte-americanos, bem como cheques adicionais para as famílias. Ele também prolonga uma série de medidas anteriores – como a extensão do seguro de desemprego, o pagamento do seguro de saúde para os trabalhadores despedidos e a cobertura de certos custos de saúde relacionados com a Covid – mas não põe em causa o Sistema privado de seguros de saúde.

APOIO DA AFL-CIO

O objectivo de Biden era conseguir a unidade nacional em torno do seu Plano. Embora não tenha conseguido ganhar o apoio – ainda que limitado – dos Republicanos, foi largamente bem-sucedido em conseguir que as organizações sindicais dos trabalhadores dos EUA aderissem, apesar das cedências que teve de fazer para tentar obter o voto favorável dos Republicanos e para garantir o voto de todos os Democratas.

Em particular, o seu Plano visava, inicialmente, de incluir uma duplicação do salário mínimo por hora, actualmente de $7,25, para o aumentar gradualmente para $15. Esta medida não foi incluída no Plano adoptado. Biden também recuou sobre o montante dos subsídios de desemprego (300 dólares por semana, em oposição aos 400 anunciados), pagamento da baixa por doença (que era suposto ser obrigatório, mas contempla apenas um incentivo fiscal para os empresários).

No entanto, a principal Confederação sindical norte-americana – a AFL-CIO – deu o seu total apoio ao Plano, assim como o fizeram muitos sindicatos, tanto dentro como fora da Confederação. Eles organizaram, inclusive, uma campanha de assinaturas dirigida aos senadores republicanos para que eles votassem a favor do Plano de Biden, numa situação em que os Democratas têm a maioria tanto na Câmara dos Representantes como no Senado. Sanders e outros eleitos da esquerda do Partido Democrata deram o seu apoio total ao Plano, apesar de nas suas declarações iniciais terem explicado que, havendo uma maioria democrata no Congresso, era possível aumentar o salário mínimo e equacionar a instituição de um Sistema público de seguros de saúde.

REESTRUTURAÇÃO

É inquestionável que o Plano de Biden inclui disposições que permitirão a milhões de norte-americanos sobreviver durante algum tempo. Mas todas as suas medidas estão limitadas à pandemia de Covid. Ora o imperialismo norte-americano está a usar esta pandemia para se reestruturar, de forma duradoura: o fabricante de automóveis General Motors acaba de anunciar a sua decisão de chegar à “emissão zero” (de carbono) até 2035, preparando uma série de encerramentos de fábricas; a pandemia tem sido também uma oportunidade extraordinária para empresas como a Amazon e toda uma série de serviços “uberizados”, com trabalhadores sobre-explorados e mal remunerados.

Face ao desenvolvimento da precariedade, um grande movimento de sindicalização está a ter lugar, particularmente no sul dos EUA, como é ilustrado pela tentativa dos trabalhadores do entreposto Bessener da Amazon, no Alabama, de construir um sindicato (nos EUA, um sindicato só tem o direito de negociar com um patrão se a maioria dos assalariados da empresa estiverem nele sindicalizados).

DETERMINAÇÃO

Este movimento junta-se ao do Verão do ano passado, Black Lives Matter (as vidas dos Negros contam): as camadas mais exploradas da classe operária norte-americana estão a procurar organizar-se e, ao fazê-lo, colocam no centro da situação política a satisfação das suas mais urgentes reivindicações, sobre salários, sobre cuidados de saúde e sobre o direito ao subsídio de desemprego.

As Direcções da AFL-CIO e do Partido Democrata estão a tentar transformar este movimento de sindicalização num movimento de apoio às suas políticas, mas ele mostra acima de tudo a determinação crescente da franja mais explorada da classe operária dos EUA para se defender colectivamente.

O jornal New York Times, de 9 de Março, sublinha como a questão dos cuidados de saúde estará no centro das eleições intercalares nos EUA, que se irão realizar em 2022. O fracasso da política de unidade nacional de Biden permitirá aos Republicanos atacar o seu Plano; mas, por outro lado, a melhoria real das condições de acesso a cuidados de saúde nele prevista terminará em 2023, abrindo a via à discussão sobre os limites deste Plano, tanto em termos da sua duração como do facto de manter o Sistema privado de seguros de saúde.

UM GOVERNO FRÁGIL

O fracasso da política de unidade nacional de Biden aprofunda a crise política: trata-se de um Governo frágil, apoiado por uma maioria fraca (cinco membros a mais na Câmara dos Representantes e o voto decisivo da Vice-Presidente no Senado), dividida entre os moderados (que são a favor de uma aliança com os Republicanos) e os “progressistas” (defendendo, pelo menos em palavras, o aumento do salário mínimo e a construção de um Sistema público de saúde). O único ponto de apoio do Governo é a Direcção das organizações sindicais. E, de facto, tudo deixa antever que a classe operária dos EUA não irá esperar até 2022 para resistir ao ataque que está a enfrentar.

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(1) O Congresso dos EUA é o conjunto de duas instituições: a Câmara dos Representantes (Parlamento) e o Senado.

Crónica de Devan Sohier publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 647, de 24 de Março de 2021, do Partido Operário Independente de França.