A guerra e a crise do Sistema imperialista

A guerra da Ucrânia põe de novo sobre a mesa muitos elementos que têm estado em discussão entre os militantes operários. A este respeito, no debate da direcção da Quarta Internacional, um camarada assinalava o seguinte: “O 10º Congresso Mundial da Quarta Internacional terá de ter em conta todos estes elementos, avaliando-os tendo como único critério os interesses de classe do proletariado mundial. Este não é, de forma alguma, um exercício académico desejado pelos professores de «geopolítica» que tagarelam todos os dias em frente às câmaras de televisão”. Este camarada tem razão. E para lhe fazer justiça, é essencial situar esta guerra no seu lugar na história da crise de todo o Sistema imperialista. Antes de mais, é necessário constatar um facto: a presente crise não é a causa da guerra, muito pelo contrário.

Recapitulemos: esta guerra não é a continuação das duas primeiras guerras mundiais. As duas primeiras grandes guerras imperialistas (1914/1918 e 1939/1945) foram guerras pelo domínio do mundo. No entanto, a ruptura em curso na ordem mundial estabelecida em 1945 e de todas as instituições que resultaram dessa “ordem” (desde o FMI à ONU), “não se devem à contestação da hegemonia dos EUA por parte de outra potência, mas sim ao esgotamento das condições em que essa ordem foi fundada (…). Ao assumir a liderança da economia mundial no seu estádio imperialista, os EUA estão a assumir todas as suas contradições” (citado do livro “Capitalismo e economia mundial”, de Xabier Arrizabalo). Em suma, não se trata, de forma alguma, de uma questão de “revezamento”, de substituir a posição hegemónica do imperialismo norte-americano pela de uma potência competidora.

Esta guerra não faz parte do desenho de uma nova “ordem mundial” (como pretendia George Bush, em 2001, após o atentado às Torres Gémeas). É a expressão da desintegração convulsiva do mercado mundial. Acrescentemos um esclarecimento: não foi a guerra que causou o tsunami inflacionário. As “fortes pressões inflacionistas” são anteriores à guerra, reconhecem todos os especialistas. A guerra, incluindo as sanções da União Europeia – sanções, na realidade, contra o povo russo, o que tem repercussões em todos os povos europeus e anuncia uma fome generalizada em mais de 40 países de África e do Médio-Oriente – agravou sem dúvida essas “pressões inflacionistas”, provocando este grito de angústia do jornal francês Le Monde (de 15 de Abril): “Como um incêndio florestal, a inflação não conhece fronteiras nem áreas protegidas. Uma vez alcançada a temperatura necessária, nada pode parar as chamas”.

De onde vem esta inflação?

Mas, de onde vem esta inflação? Ela é o produto dos milhões de milhões de dólares injectados pelos bancos centrais nos mercados, com o objectivo de sair da crise financeira de 2007-2008, “para garantir a liquidez do mercado e manter artificialmente baixas as taxas de juro de longo prazo, para impulsionar a economia, uma política que tem levado o Banco central dos EUA (a Reserva Federal) a comprar mais de 9 milhões de milhões de dólares em títulos, o equivalente a 40% do PIB dos EUA”. (Le Monde, 6 de Maio de 2022). Esta injecção de dinheiro procurava, entre outras coisas, prevenir ou impedir uma explosão social generalizada após a onda mundial de revoltas e insurreições de 2019.

A desintegração do mercado mundial, denunciada pela OMC, é uma consequência inevitável da luta empreendida pelo capital financeiro para fazer face à baixa tendencial da taxa de lucro, uma luta para fazer descer, de forma drástica, o custo da mão-de-obra através da desregulamentação e da precarização do trabalho.

A desintegração do mercado mundial é uma consequência das tentativas do capital financeiro para abrir, à força, espaços de valorização do capital capazes de restaurar o processo num mercado sobre-saturado. Uma contradição que o colunista económico do jornal Le Monde resume nesta fórmula: “O mundo está a encolher a olhos vistos. Ainda há dias estava amplo e cheio de possibilidades. Agora está saturado e cheio de armadilhas”.

É por isso que o imperialismo norte-americano, aproveitando-se da guerra desencadeada por Putin, utiliza todas as suas forças para abrir um novo espaço para a valorização do capital, obrigando os seus “aliados” a um investimento massivo na economia de armamento, recurso múltiplas vezes utilizado mas que agrava o caos crescente do mercado mundial.

Biden age tal como Putin…

Biden, como representante dos interesses dos monopólios imperialistas dos EUA, e Putin, como representante da oligarquia mafiosa que governa o Kremlin, procuram garantir o acesso às matérias-primas defendendo os interesses daqueles a quem servem (ou seja, o controlo do mercado das matérias-primas, da energia aos alimentos), que é sentido como uma necessidade no contexto da transformação económica causada pela “transição energética”.

Não há dois campos. Há um confronto – o qual não exclui a possibilidade de uma derrapagem –, golpe a golpe e de uma forma anárquica, entre os gangsters que estão à cabeça dos monopólios imperialistas e os oligarcas. Neste sentido, podemos dizer que entrámos numa guerra sem fim, que é uma expressão do desmantelamento do mercado mundial, uma consequência da crise de todo o Sistema capitalista.

Não há dois campos

Não há dois campos. Não há um campo progressista contra o campo reacionário, nem sequer dois campos a lutar pela hegemonia mundial. Existe apenas um campo: o dos monopólios imperialistas e dos oligarcas empenhados no desmantelamento do mercado mundial, com tudo o que isto implica em termos de brutalidade e de desordem, à imagem e semelhança da anarquia que preside ao funcionamento do Sistema capitalista.

A referência a uma guerra entre democracia e ditadura é uma trapaça destinada a ocultar a crise social sem precedentes em que a inflação, sintoma da crise, está a afundar o mundo.

Está a ser organizada, em todos os continentes, uma gigantesca ofensiva para a “desvalorização da força-de-trabalho”, a que é previsível que os trabalhadores e as populações respondam. Amedrontados pela ameaça que esta resposta representa para todos os governos – tanto os das potências imperialistas, como os dos países dominados de África, América Latina e Ásia – os representantes do capital financeiro decidiram aproveitar a questão da guerra para avançar, em marcha forçada, para o estabelecimento de uma “união nacional”, ou seja, a exigência de que os partidos e sindicatos renunciem à luta pelas reivindicações e direitos, em nome de um interesse supostamente superior.

É uma evidência que os confrontos previsíveis estão a ser preparados sob novas condições políticas. Numa situação marcada pelo colapso de todos os poderes e pela crise mortal de todas as representações políticas que se inscreveram no âmbito da defesa das instituições da ordem burguesa, novas forças surgem – e, entre elas, uma grande fracção da juventude – que procuram incarnar a “ruptura” com a velha ordem, e que se envolvem num processo complexo e aparentemente contraditório de reconstrução de uma autêntica representação política da classe operária.

É isto que testemunha o surgimento da “União Popular” em França, cujas manifestações não se limitam à França, nem sequer à Europa. Há uma necessidade urgente em estabelecer contacto entre todos esses grupos que, na Europa e à escala internacional, entraram num processo de ruptura interligando a exigência de um aumento geral dos salários, ao congelamento dos preços, à defesa das pensões de aposentação, ao restabelecimento dos sistemas de Saúde e de Educação – fazendo ressurgir, em toda a sua actualidade, o sistema de “reivindicações transitórias” (tais como a escala móvel de salários), a rejeição dos orçamentos orientados para o armamento, que constitui a incarnação da política destrutiva de todos os governos subjugados ao imperialismo.

Logicamente, a organização em Madrid, nos dias 29 e 30 de Junho, da Cimeira da NATO – que irá juntar a vanguarda e a retaguarda dos promotores das guerras – deveria proporcionar o eixo de um grande agrupamento de todos aqueles que estejam decididos a comprometer-se, de forma concreta, na luta contra a guerra.

Diversas forças – que incluem os sindicatos – já decidiram convocar uma manifestação contra a Cimeira, a 26 de Junho, em Madrid. Estamos a preparar um comício internacional para o dia 25, também em Madrid, contra a Cimeira, que se inscreve nas múltiplas mobilizações em curso e vem na continuidade da Conferência Operária Europeia de urgência, do passado dia 9 de Abril.

Carta Semanal do Comité Central do Partido Operário Socialista Internacionalista (POSI) – Secção da 4ª Internacional em Espanha – nº 888, de 23 a 29 de Maio de 2022

A guerra na Ucrânia tem um âmbito internacional

Putin presidiu, como faz todos os anos, ao desfile militar na Praça Vermelha, a 9 de Maio, celebrando a vitória contra o Nazismo. No seu discurso, reafirmou que a “operação militar especial na Ucrânia” continuaria.

Esta guerra – que não confessa o seu nome – produz, como todas as guerras, destruição, mortos, feridos e refugiados. Esta guerra, como todas as guerras, é a barbárie.

No dia anterior, a 8 de Maio, realizou-se uma Cimeira do G7, que impôs sanções adicionais contra a Rússia e decidiu enviar meios militares adicionais para a Ucrânia.

Em seguida, também a 9 de Maio, Biden assinou uma Lei do tipo “Lend-Lease Act” para acelerar o envio de armas para a Ucrânia. Trata-se de uma disposição que os EUA criaram durante a Segunda Guerra Mundial (1) e que nunca mais foi utilizada desde 1945.

O povo ucraniano está a ser mantido como refém entre Putin e Biden.

Mas o povo russo é também refém das consequências da guerra e das sanções.

Estamos com os povos ucraniano e russo que querem a paz e não têm nenhuma responsabilidade nesta guerra.

Não estamos ao lado de Putin e o seu clã de oligarcas mafiosos, que estão a pilhar as riquezas da Rússia e a desencadear uma guerra bárbara.

Mas também não estamos ao lado de Zelinsky – que, não esqueçamos, foi instalado como presidente com a ajuda dos dois oligarcas mais ricos da Ucrânia – porque as oligarquias dominam tanto na Rússia como na Ucrânia. Estas oligarquias são o produto do colapso da URSS, da qual partilharam os melhores bocados do desmantelamento assumindo o controlo das grandes empresas que eram públicas.

Estes manobras são comandadas por Biden e os EUA. Não esqueçamos que – após a derrota ucraniana em 2014, no seguimento da intervenção russa no Donbass – os EUA reorganizaram o Exército ucraniano com três mil milhões de dólares de armamento, entre 2014 e 2021, conjugado com o envio de peritos e instrutores.

Actualmente, para esta guerra, os EUA já entregaram trinta mil milhões de dólares em armas à Ucrânia, além de enviaram instrutores e combatentes (O Orçamento militar anual da França é de 40 mil milhões de euros). Os EUA são uma parte beligerante neste conflito, para combater a Rússia “até ao último ucraniano vivo”.

Biden não está a fazer isto para ajudar o povo ucraniano.

Para os EUA, esta guerra deve durar e eles estão a fazer tudo para garantir que assim seja.

O seu objectivo é claro: transformar a Ucrânia, vizinha da Rússia, num protectorado; destruir a Rússia como potência (2); e, para além disto, fazer um aviso directo à China.

Recordemos que Biden, aquando da sua eleição, estabeleceu o objectivo de “reequilibrar” as relações com a China e, há alguns meses, assinou um Acordo estratégico com a Austrália e o Reino Unido para o Pacífico, um Acordo dirigido directamente contra a China.

Finalmente, Biden realinhou a União Europeia sob a sua égide, exigindo-lhe em particular um rearmamento massivo, o que significa a concretização de mercados altamente lucrativos para a indústria norte-americana.

Mas não se trata apenas da “normalização” da Europa – há uma dimensão mundial em toda esta estratégia.

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(1) Lei aprovada pelo Congresso dos EUA, em Março de 1941, e aplicada até Agosto de 1945, que autorizava o Presidente a vender, transferir, trocar e emprestar material de guerra e todo o tipo de mercadorias a Estados cuja “defesa fosse considerada vital para a defesa dos EUA”.

(2) O jornal Le Monde, de 10 de Maio, fala da “inconfessável euforia de Washington contra Moscovo”.

Crónica de Lucien GAUTHIER publicada no semanário francês “Informations Ouvrières”Informações operárias – nº 705, de 11 de Maio de 2022, do Partido Operário Independente.

Os oligarcas

O Castelo de Beaumanoir, em Le Leslay (Departamento 22), perto de Quintin, em França, é propriedade de um casal de oligarcas russos desde 2012.

Após a queda da URSS, os indivíduos saídos da nomenklatura soviética apoderaram-se da riqueza das várias repúblicas da ex-URSS. Os oligarcas russos são frequentemente referidos como os pilhantes da Rússia, nomeadamente do seu petróleo e gás, mas também ouro e minerais. Mas há igualmente oligarcas em todas as antigas repúblicas.

É o caso da Ucrânia. Por exemplo, o actor de cinema Zelensky candidatou-se à Presidência com o forte apoio do oligarca Rinat Akhmetov, o homem mais rico da Ucrânia, e de Igor Kolomoysky, proprietário do canal de televisão em que foi transmitida a série que tornou Zelensky famoso. Este canal foi um apoiante activo da sua campanha.

Os “presentes” de Biden aos Europeus

Biden garantiu – nas cimeiras da NATO, do G7 e da União Europeia, do passado fim-de-semana – o que ele queria. Os líderes europeus decidiram aceitar o gás natural liquefeito (GNL) dos EUA. Os EUA prometeram fornecer 70% de gás suplementar à Europa.

O diário financeiro francês Les Echos escreveu, a 28 de Março: “O presidente Biden é conhecido pelo seu oportunismo comercial. Prometendo fornecer, no futuro, 50 mil milhões de m3 de gás por ano aos Europeus – ou seja, duas vezes mais do que agora – ele garantiu aos produtores de GNL norte-americanos um futuro sumptuoso. Exortando a França, a Alemanha e os outros países europeus a construir novos terminais de GNL, ele promete-lhes mercados sustentáveis. Por outro lado, os EUA não estão a excluir a possibilidade de arrebatar à Rússia e à Ucrânia o seu título de «celeiro de trigo». Cerca de 11 mil milhões de dólares estão planeados para reanimar a agricultura doméstica (dos EUA). Uma pechincha para os agricultores do Midwestern. Quanto aos industriais do armamento, eles aplaudem, com ambas as mãos, o desejo dos Europeus de fortalecerem os seus equipamentos; a venda de aviões de caça F-35 aos Alemães já soa como uma vitória decisiva.”

A exigência dos EUA, desde a Presidência de Obama, de que os Estados europeus da NATO aumentem o seu orçamento de armamento para 2% do PIB está agora em vias de concretização, aproveitando a guerra na Ucrânia:

“A Alemanha irá aumentar o seu esforço de Defesa de 1,3% para 2% da sua riqueza nacional. A França está a seguir a sua Lei de programação militar para 2019-2025, que prevê aumentar o Orçamento das Forças Armadas de 40,9 mil milhões de euros, em 2022, para 50 mil milhões em 2025 (2,5% do PIB). (…) Foi na Europa que mais aumentou a compra de armas entre 2017 e 2021 (+19% em comparação com os cinco anos anteriores), enquanto essas compras caíram 4,6% a nível mundial.

(…) Uma guerra de contratos, dentro da guerra real, está a ser travada entre fabricantes de armas norte-americanos e europeus. A UE está a mostrar desejo de ganhar «soberania», mesmo que muitos países-membros queiram permanecer sob o guarda-chuva de Washington e favorecer o «made in USA».

Com a Lockheed Martin, a Northrop Grumman e a General Dynamics, os EUA detêm as cinco maiores empresas do mundo, com quase 180 mil milhões de dólares em volume de negócios, 54% da venda de armas e 39% das exportações. (…) Conta muito a dimensão e o efeito de arrastamento. Se os aviões de caça F-35 vendem tão bem na Europa, em comparação com os Rafales franceses, é menos por causa da sua tecnologia do que pela vontade dos países se atracarem à NATO, cujo alargamento beneficiará principalmente a indústria norte-americana.” (Le Monde, 29 de Março de 2022).