Governação global para “o bem comum”?

A Conferência Internacional da Organização Internacional do Trabalho (OIT) adoptou, a 17 de Junho, uma “Resolução relativa a um apelo mundial à acção em prol de uma recuperação que seja inclusiva, sustentável e resiliente para sair da crise do Covid-19”.

A Resolução pretende ser uma “agenda abrangente” consensual, reunindo empresas, governos e sindicatos para definir o mundo pós-Covid-19, e para fornecer a base para um novo modelo económico global, aplicável por todos e em todo o lado. Uma tal iniciativa merece reflexão e discussão. Com a pandemia, estaríamos todos no mesmo barco?

Por Jacques Diriclet

“A paz social é uma tarefa difícil”. Foi isto que declarou Guy Ryder (Director-Geral da OIT e antigo Secretário-Geral da Confederação Sindical Internacional), enquanto o Banco Mundial e o FMI expressaram, pelo seu lado, os mais profundos receios sobre o risco de explosões sociais.

Isto lança luz sobre o contexto e o objectivo da Resolução adoptada pela Conferência Internacional do Trabalho (CIT). Esta Conferência não tem nada a ver com o estabelecimento ou monitorização das normas internacionais do Trabalho consignadas nas legislações dos diferentes Estados.

A Resolução explica: “Comprometemo-nos a abordar as dimensões globais da crise, reforçando a cooperação internacional e regional, a solidariedade mundial e a coerência de políticas desenvolvidas nos domínios económico, social, ambiental, humanitário e sanitário, a fim de dar a todos os países os meios para sair da crise e acelerar a implementação da Agenda 2030, do Acordo de Paris no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas e do Programa de Acção de Adis Abeba adoptado na 3ª Conferência Internacional sobre o Financiamento do Desenvolvimento.”

É especificado que “a OIT cooperará com outras instituições multilaterais para organizar um fórum político de grande amplitude”, cujas modalidades ainda não estão especificadas, mas onde as organizações dos trabalhadores, juntamente com as ONGs, poderiam estar amplamente envolvidas visando a consolidação do consenso.

As recomendações da Resolução incluem “aproveitar ao máximo as oportunidades oferecidas pelas transições digitais e ambientais justas”, o desenvolvimento “do teletrabalho e de outras novas modalidades de trabalho”, a implementação de “limiares de protecção social” mínimos… O que está muito longe da ratificação e implementação da Convenção n.º 102 (da OIT) sobre Segurança Social!

A Resolução apela, igualmente, a uma implementação acelerada da Declaração do centenário da OIT, adoptada em 2019.

Deve ser recordado que a Comissão Mundial sobre o Futuro do Trabalho preconizava, em particular – para permitir que “as pessoas prosperem numa era digital, neutra em carbono” e nomeadamente os “trabalhadores mais velhos que permanecem economicamente activos” – “um limiar de protecção social complementado por regimes de seguro”…

O PAPA COMO GUIA?

A intervenção do Papa na tribuna da OIT é no mínimo inédita.

O seu discurso teve como finalidade apoiar “um programa de trabalho internacional para o pós-Covid”: “A pandemia ensinou-nos que estamos todos no mesmo barco e que só juntos podemos sair da crise.”

A doutrina social da Igreja entra aqui para defender a associação do capital e do trabalho, à escala global: “É uma missão que deve ser levada a cabo por todos. É uma missão essencial da Igreja apelar a todos para trabalharem em conjunto com governos, organizações multilaterais e sociedade civil para servir o bem comum e assegurar a participação de todos neste esforço.”

Guy Ryder sublinhou: “Estou confiante que o Papa Francisco nos irá inspirar e guiar na nossa missão que consiste em construir um mundo do trabalho inclusivo, justo e sustentável.”

O APOIO DA BIDEN

Esta é apenas a terceira vez na História que um presidente dos EUA discursou na OIT. Os EUA ratificaram apenas um número ridículo de Convenções (da OIT), e não as relativas à liberdade de associação e de negociação. Trata-se, portanto, de circunstâncias e de desafios excepcionais. “Os EUA estão de volta”, segundo Joe Biden: trata-se de tomar a liderança de um pretenso “pólo progressista” para a governação global.

É por esta razão que Biden deu o apoio aos trabalhos da Resolução da OIT, a qual se inscreve neste quadro. “Precisamos de construir economias que reúnam todos”, disse ele.

A CSI NO CENTRO DA OPERAÇÃO

A Confederação Sindical Internacional (CSI) foi fundada em 2006, pela fusão da Confederação Internacional dos Sindicatos Livres (CISL) – da qual a CGT-FO foi membro fundador em França –, da Confederação Mundial do Trabalho (CMT) – ligada à Igreja Católica – e de sindicatos da Federação Mundial dos Sindicatos (FSM), como é o caso da CGT francesa.

A ambição da CSI era trabalhar para o estabelecimento de uma governação global da mundialização, envolvendo instituições internacionais, governos, sociedade civil (ONGs), o patronato e sindicatos: uma forma de associação capital-trabalho, à escala mundial.

É assim, com toda a coerência, que a Secretária-Geral da CSI, Sharran Burrow, é membro do Conselho para o Capitalismo Inclusivo – ao lado de patrões que, em conjunto, valem 10500 mil milhões de dólares – que o Vaticano criou com esse objectivo. Portanto, é lógico que a CSI celebre o “novo contrato social” adoptado na Conferência da OIT, afirmando que isto assegurará que os direitos dos trabalhadores serão respeitados É neste contexto que o L20 (Labour 20) – que reúne os sindicatos dos países do G20 (o Grupo dos 20 países mais ricos do mundo), filiados na CSI – deu o seu apoio a esta Declaração (ver artigo abaixo).

Já houve 255 milhões de empregos destruídos desde o início da crise, de acordo com os números da OIT. O que leva alguns a afirmarem – como é o caso de Klaus Schwab, fundador do Fórum Económico Mundial de Davos: “A pandemia representa uma rara, mas estreita, janela de oportunidade para reflectir, re-imaginar e reinicializar o nosso mundo.”

Em nome da catástrofe climática que se avizinha, milhões e milhões de empregos deverão desaparecer: é esta a lógica que está por detrás da Declaração da OIT sobre “transições ambientais justas”, apoiada pela CSI. Isto seria inevitável… em nome do bem comum que é o planeta. Os selos de “sustentável”, “inclusivo”, “justo” e “humano” – e outros similares – deveriam, de acordo com os seus inventores, algemar as organizações operárias e silenciar as reivindicações dos trabalhadores.

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A CSI “felicita” os ministros do Trabalho do G20

O G20 representa os 20 países mais ricos do mundo. Alguns dias após a Conferência anual da OIT (ver acima), os ministros do Trabalho dos países do G20 reuniram-se em Itália e adoptaram uma Declaração que foi imediatamente saudada pela Confederação Sindical Internacional (CSI), a qual reúne o grosso das confederações sindicais de todo o mundo.

Por Daniel Shapira

No comunicado da CSI pode ler-se: “O grupo sindical L20, composto pelos sindicatos dos países do G20, congratula-se com a Declaração adoptada pelos ministros do Trabalho e do Emprego do G20, respeitante às bases da recuperação para fazer face aos impactos sanitários, económicos e sociais da Covid-19 sobre a saúde, a economia e o emprego.” E, referindo-se a essa Declaração, a CSI acrescenta: “A Declaração apela a que seja adoptada uma abordagem política centrada nas pessoas, avançando para uma maior justiça social e trabalho decente para todos.”

Em todas estas declarações, tanto dos ministros do Trabalho do G20 como da CSI, tal como na Conferência da OIT realizada alguns dias antes, uma palavra surge repetidamente: “o humano”. “Humano”?

Humanas, as reformas do seguro de desemprego que, em França, por exemplo, têm como objectivo poupar mais de mil milhões de euros de poupanças à custa dos direitos dos desempregados? Humanas, as medidas tomadas pelos governos capitalistas, em quase toda a parte, para prolongar o horário de trabalho e atacar as férias dos assalariados?

Humanos, o desenvolvimento de empregos precários e da flexibilidade, a onda de cortes de empregos que os ministros do Trabalho permitem, ou mesmo incentivam e organizam directamente?

LEALDADE… E PREOCUPAÇÕES

A palavra “humano” pinga, com todos os molhos, da Declaração dos ministros do Trabalho dos países do G20. E os líderes do movimento sindical internacional congratulam-se com isso! Que acto de lealdade para com os representantes do capital!

Seria errado subestimar o significado destas declarações dos líderes do movimento sindical internacional, no qual a maioria das Centrais sindicais nacionais estão filiadas. Todos estão preocupados com o que está a amadurecer, em profundidade, na classe operária, sendo sinais anunciadores as primeiras e múltiplas greves realizadas em diversos países.

Por mais que se adaptem aos governos dos seus próprios países, os líderes sindicais das Centrais sindicais nacionais permanecem sob pressão das bases das suas organizações. Em França, por exemplo, os líderes das confederações sindicais, e mesmo a CFDT, opuseram-se à reforma do seguro de desemprego da ministra do Trabalho, Elisabeth Borne.

É, portanto, fácil compreender o significado dos elogios dados aos ministros do Trabalho do G20 pelas cúpulas da CSI: é uma questão de exercer maior pressão sobre as cúpulas das confederações sindicais nacionais para as obrigar a aceitar as exigências da governação global e as consequências de todos os chamados planos de “recuperação”.

Qualquer militante sindical comprometido com a independência sindical terá todo o interesse em chamar a atenção para os perigos destas declarações das cúpulas do movimento sindical internacional.

Crónicas de Jacques Diriclet e de Daniel Shapira, publicadas no semanário francês “Informations Ouvrières”Informações operárias – nº 661, de 8 de Julho de 2021, do Partido Operário Independente de França.

Da pandemia aos despedimentos: todos no mesmo barco?

Em França, pelo menos um milhão de empregos foram destruídos em 2020… Em todo o mundo foram 255 milhões, de acordo com os números da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Os planos de reestruturação mais violentos do capital – para os quais milhões de milhões de trabalhadores estão a ser atirados através dos chamados “pacotes de relançamento” – estão em curso nos mais diversos sectores (aeroespacial, automóvel, vestuário, turismo, comércio, etc.)

E ainda não vimos tudo. Para tomar apenas o exemplo alemão, de acordo com Manfred Schoch, presidente do Conselho de Administração da empresa BMW, com a implementação das novas normas europeias para 2025 “haverá desemprego no sector automóvel e nos seus subcontratantes, como nunca vimos antes; na Alemanha será da ordem dos 5 milhões de empregos” (Frankfurter Allgemeine Zeitung, 26 de Fevereiro).

Por um lado, com os chamados estados de emergência os governos de dezenas de países têm atacado as liberdades democráticas e os direitos sindicais, levando a uma rejeição crescente; por outro lado, várias iniciativas estão a ser tomadas para construir um consenso que leve à aceitação da reestruturação do capital… Dizem-nos que não teríamos outra escolha, para salvar o planeta.

UM CAPITALISMO INCLUSIVO?

O Papa instituiu um “Conselho para um capitalismo inclusivo”. A riqueza do conjunto dos seus membros, dirigentes das maiores corporações do mundo, vale 10500 mil milhões de dólares… Eles devem “servir o bem comum”, “para que a economia e as finanças regressem a uma abordagem ética”… “Os membros do Conselho assumem compromissos concretos, compromissos alinhados com os pilares do Conselho Empresarial Internacional do Fórum Económico Mundial para a criação de valor sustentável – pessoas, planeta, princípios de governação e prosperidade – e que fazem progredir os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.” (Site do Conselho). Não lhes deve custar muito… e se for para o bem do planeta… O “bem comum”, a nova palavra de ordem para acompanhar os planos do capital: vacina “bem comum”, planeta e transição ecológica “bem comum”, “diálogo social, bem comum”, etc.

É compreensível que a Secretária-Geral da Confederação Sindical Internacional (CSI), Sharan Burrow, tenha sido convidada a participar no Conselho não devido à sua fortuna, mas a fim de partilhar a mensagem com as organizações sindicais filiadas, o que ela fez: “O Conselho para um capitalismo inclusivo com o Vaticano (é) uma nova parceria histórica entre alguns dos maiores líderes mundiais do investimento e do comércio e o Vaticano. ” (Março 2020, website da CSI).

Mesmo acompanhados pela Secretária-Geral da CSI, eles terão dificuldade em fazer alinhar todas as organizações filiadas. O facto é que a CSI criou um Centro para uma Transição Justa que “juntará e apoiará sindicatos, empregadores, empresas, comunidades e investidores no quadro do diálogo social, com vista a desenvolver planos, acordos, investimentos e políticas para uma transição rápida e justa para um mundo sem carbono e sem pobreza” (website da CSI).

ZERO-CARBONO, ZERO-INDEPENDÊNCIA DE CLASSE?

Liaisons sociales (1) informa-nos: “A Primavera Ecológica, «o primeiro eco-sindicato da história», realizou o seu congresso fundador a 7 de Março, com a ambição de romper com o «produtivismo» que, segundo ele, continua a atravessar o mundo sindical (…). O eco-sindicato também quer falar de «decrescimento selectivo», quando «muitos trabalhadores terão de mudar de emprego», e quer sair do confronto entre trabalhadores e patrões, e convidar a sociedade civil para a mesa das negociações nas empresas.”

Um vasto programa corporativista, mas eles não inventaram nada. A fundação deste sindicato grupuscular poderia ser considerada anedótica; mas, não sem razão, Liaisons sociales insiste na “revolução verde” em curso nos sindicatos e naquilo que está em jogo. Que Laurent Berger (2) sublinhe as suas convergências com o eco-sindicato, propondo que se juntar a eles, está no genoma da CFDT.

Mas a reacção de um membro do Comité Executivo Confederal da CGT, citado por Liaisons sociales, é questionável: “É mais interessante fazer um trabalho nas organizações existentes, numa paisagem que já está bastante fragmentada em França. A CGT criou, recentemente, com o Greenpeace e outros o colectivo «Nunca mais isto».”

É bom reflectir a partir dos factos: a destruição de milhões de empregos, e as suas consequências, os ataques contra os direitos dos trabalhadores, não podem ser apagados com uma camada de tinta verde. A luta de classes é uma realidade e a independência das organizações continua a ser indispensável, tanto hoje como no futuro.

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(1) Ligações sociais: trata-se de um Grupo de imprensa francês.

(2) É o Secretário-geral da Confederação sindical CFDT.

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Análise de Jacques Diriclet publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 646, de 17 de Março de 2021, do Partido Operário Independente de França.