
A derrota da proposta de Orçamento do Estado para 2022 (apresentada pelo governo do PS à Assembleia da República – AR) – um Orçamento destinado a pôr em prática os denominados “Fundos de recuperação”, definidos pelas instituições da União Europeia – encerra uma determinada forma de pôr em prática os compromissos e a colaboração entre os partidos tradicionais das classes trabalhadoras portuguesas (o PS e o PCP), em conjunto com o Bloco de Esquerda – BE, que estão actualmente em maioria na AR, abrindo caminho a uma situação de vazio político que poderá gerar “sucessivas crises políticas”.
Durante seis anos, o governo do PS conseguiu aplicar a política decorrente das necessidades e imposições do capital financeiro, através de uma “governação de geometria variável”. Uma governação em que os sucessivos Orçamentos do Estado foram sendo viabilizados pelo PCP e/ou pelo BE, em troca de algumas concessões às classes trabalhadoras, acordadas com estes partidos políticos, revertendo algumas medidas contidas no chamado Memorando da Troika, executadas pelo governo de coligação da burguesia PSD/CDS, no período de 2011 a 2015.
Nestas concessões contam-se, nomeadamente, o fim dos cortes nos salários e nas pensões de aposentação, bem como o travão no processo de privatização dos transportes públicos.
Mas tais medidas positivas não mudaram qualitativamente, de modo algum, as condições de vida e de trabalho da generalidade da população trabalhadora, que não pararam de se agravar com o crescimento da precariedade, dos despedimentos colectivos, da especulação imobiliária, do desmantelamento dos serviços públicos, onde o colapso de vários hospitais públicos é apresentado como iminente pelas organizações sindicais dos médicos e dos enfermeiros.
A destruição de milhares de empregos feita pelas multinacionais que controlam o sector da energia (em nome da descarbonização / “transição energética”), feita pelos bancos (em nome da “transição digital”), ou no transporte aéreo (onde a crise foi acentuada pela pandemia) deu lugar a processos de resistência e de mobilização, onde vários sectores das classes trabalhadoras procuraram apoiar-se nas suas organizações sindicais para se defender. Ao mesmo tempo, as Direcções destas organizações têm conseguido controlar estes processos, continuando a sua prática de fragmentação das lutas e de “concertação social”, cujas consequências se têm traduzido no enfraquecimento dos próprios sindicatos.
O resultado das eleições autárquicas foi o detonador de um processo de viragem nesta forma de governação – sustentada, na prática, pelo PCP, pelo BE e pelos aparelhos sindicais.
Uma forma de governação mantida durante seis anos, no quadro da “unidade nacional”, tutelado pelo Presidente da República (PR), uma “governação à esquerda” a partir da AR, inédita nos 46 anos desde a Revolução de Abril de 1974.
Na Nota que a POUS (Secção portuguesa da 4ª Internacional) publicou sobre o resultado das eleições autárquicas procurámos mostrar como a forma de votação nas autárquicas pôs a nu o descontentamento das classes trabalhadoras, traduzido na perda de votos dos partidos do chamado “arco da governação”, bem como num nível de abstenção recorde em zonas operárias e, em alguns casos, na capacidade do Partido da chamada extrema-direita (o Chega) em atrair para si camadas da população revoltadas com a situação económica e social em que vivem.
A derrota do PCP em autarquias que nunca tinham deixado de ser dirigidas por este Partido depois do 25 de Abril, as chamadas autarquias históricas, bem como a abstenção massiva, constituíram um sinal de alarme para o PCP.
A imprensa burguesa relatou o mal-estar de militantes e quadros do PCP, que exigem a ruptura com as concessões e compromissos com o Governo, bem como a ruptura com o quadro de “unidade nacional”.
Apesar do mal-estar vivido dentro do PCP, a sua Direcção tentou ir até onde lhe foi possível para manter a coesão do seu Partido e, em simultâneo, preservar a política de “unidade nacional”. Política que exige que este Partido possa controlar a luta das massas, através do aparelho sindical da CGTP, impedindo-as de poder desempenhar o papel histórico que é o seu.
Nas condições impostas pelo PCP para viabilizar a proposta de Orçamento do Governo, este colocava a necessidade de um sinal de mudança nas leis laborais, nomeadamente a revogação da caducidade da contratação colectiva. Colocava também a necessidade de um sinal de mudança na política de Saúde e nos salários e pensões de aposentação, entre outras exigências.
O Governo de António Costa, pelo seu lado, dispôs-se e fazer as concessões possíveis, para poder aplicar um Orçamento com base no Programa de Recuperação e Resiliência (PRP), assinado com a União Europeia, de acordo com os interesses do capital financeiro e das grandes multinacionais.
Mas Costa afirmou sempre: «Temos que fazer um Orçamento do Estado que preserve as contas certas» – leia-se, as condições acordadas em Bruxelas; «Não podemos fazer acordos a qualquer preço».
Mesmo quando se «atreveu» a fazer um passo na modificação de algumas leis laborais, como foi o caso do aumento da compensação monetária por cessação do contrato de trabalho e do número de horas extraordinárias anuais a serem pagas pelos patrões, os representantes das Associações patronais abandonaram de imediato as reuniões do Conselho Económico e Social (a cúpula da “concertação social”), clamando: «Alto aí, aqui não se mexe!». Costa recuou e pediu-lhes desculpa publicamente.
Pelo seu lado, o BE não podia senão tomar a mesma atitude que o PCP, no quadro da sua estratégia de defesa de um Governo que ponha em prática “políticas à esquerda”, no quadro da União Europeia.
Todo este jogo de aparelhos políticos – feito sob a chantagem ultimatista do PR: “Se esta Proposta de OE não for aprovada na generalidade, dissolvo a AR e convoco novas eleições legislativas” – foi efectuado com a preocupação de manter as classes trabalhadoras à margem da cena política e impedi-las de realizarem a frente única de classe, diante da sede da soberania do povo português, para aí imporem uma Lei orçamental capaz de responder às suas legítimas reivindicações, decorrentes dos problemas com que estão confrontadas.
Obviamente, o apelo a uma mobilização neste sentido seria um passo dos aparelhos na via da ruptura com a política do Sistema assente na propriedade privada dos meios de produção, um passo que todos vêem como um pesadelo a afastar.
Daí a pressa do PR em querer dissolver a AR.
As Direcções do PCP, do BE e da CGTP, bem como sectores minoritários do PS, criticam a chamada “precipitação do PR”, afirmando a possibilidade de ser apresentada uma nova proposta de Orçamento do Estado, mas sem jamais abrirem uma saída que as classes trabalhadoras pudessem agarrar – a mobilização conjunta e a centralização do seu movimento diante da AR.
Bem pelo contrário, os aparelhos sindicais suspenderam “sine die” as greves anunciadas, em diversos sectores, nomeadamente nos professores, nos enfermeiros e nos médicos.
CONCLUSÕES
1 – Ao contrário do que queriam o Governo e o Presidente da República, a Proposta de OE para 2022 acordada com a Comissão Europeia foi chumbada pela Assembleia da República, rompendo assim momentaneamente a “unidade nacional” que manteve, durante 6 anos, o Governo do PS.
2 – Apesar dos golpes que a Revolução já sofreu, ainda continua a haver restos de democracia parlamentar que foram impostos após o 25 de Abril de 1974.
3 – Todos os “actores” políticos (a começar pelo Presidente da República), partidários e sindicais procuram impedir que os trabalhadores e as populações utilizem esta crise para entrar em movimento em defesa das suas reivindicações, concentrando-se diante da Assembleia da República.