
Annie Ernaux, de braço dado com Jean-Luc Mélenchon, a 16 de Outubro, em Paris.
A romancista Annie Ernaux acaba de receber o Prémio Nobel da Literatura. As suas obras literárias descrevem, de uma forma muito pessoal, a condição feminina nos meios populares.
A livraria Sélio, que gentilmente envia notas de leitura regulares para Informations ouvrières, convida-nos a publicar esta semana a apresentação de alguns dos livros de madame Ernaux (ver abaixo).
Annie Ernaux manifestou-se, no passado dia 16 de Outubro, ao lado de Jean-Luc Mélenchon, durante a marcha contra o elevado custo de vida. Este gesto, após o frenesim político-mediático ao qual Mélenchon e a France Insoumise (França Insubmissa) têm sido objecto nas últimas semanas, vale muito mais que grandes discursos.
Através da sua presença, ela confirmou o compromisso para com a União Popular, a cujo parlamento aderiu em Dezembro passado.
Recordamos também as posições corajosas tomadas por Annie Ernaux de apoiar – desde as primeiras manifestações, no Outono de 2018 – os “Gilets jaunes” (“Coletes amarelos”, que algumas boas almas não paravam de caluniar), ou a sua carta aberta ao presidente Macron, logo no início do primeiro confinamento, em Março de 2020.
À maneira da famosa canção Le Déserteur (O Desertor), de Boris Vian, ela denunciou a destruição dos hospitais e concluiu: “Saiba, Sr. Presidente, que não permitiremos mais que as nossas vidas sejam roubadas, que sejam permanentemente amordaçadas as nossas liberdades democráticas, agora restringidas.”
Bravo, Madame!
O Acontecimento
O início do primeiro livro de Annie Ernaux, Les Armoires vides (Os Armários vazios, 1974), evoca a violência de um aborto clandestino feito por uma estudante, Denise Lesur.
Muito tempo depois, em L’Evénement (O Acontecimento), obra de 1999, Annie Ernaux escreveu: “Eu era essa rapariga – a tremer de medo, cheia de angústia e de culpa – que decide abortar.”
Isto passou-se em 1963. O aborto era ilegal, punido ao abrigo da Lei de 1920.
Mulheres que não podiam dar-se ao luxo de ir ao estrangeiro para fazer um aborto, recorriam a “criadoras de anjos” que operavam clandestinamente, muitas vezes em condições degradantes. Algumas mulheres morriam, outras ficavam mutiladas, todas sofriam. Um longo e massivo combate para conseguir o aborto livre e gratuito levou, em 1975, à sua legalização (Lei Veil).
A autora descreve uma terrível descida aos infernos: a dificuldade de falar da sua gravidez a qualquer pessoa, a necessidade de a esconder dos seus pais, a procura de uma solução que seria forçosamente ilegal e dispendiosa. Ela é confrontada com as recusas, mais ou menos piedosas, dos médicos consultados, a ameaça do passar do tempo e a indiferença do seu companheiro. Durante semanas, o seu corpo ficou “cheio de náuseas” e ela é incapaz de levar a cabo a sua investigação académica, padecendo de “uma dor indescritível” e sentindo-se que “se tornou numa delinquente por dentro”.
Ela acabou por encontrar uma “abortadora”: “Milhares de raparigas subiram uma escadaria, bateram numa porta por trás da qual havia uma mulher de quem nada sabiam, a quem iriam entregar o seu sexo e o seu ventre.”
Ela recorda cruamente e com uma dolorosa precisão o que se seguiu, o intenso sofrimento físico, a angústia, a humilhação e a solidão. No entanto, não se sente nada culpada.
Annie Ernaux pontua o seu relato com reflexões sobre o que está a escrever e termina do seguinte modo: “Acabou de pôr em palavras o que me parece ser uma experiência humana total da vida e da morte, do tempo, da moralidade e do que é proibido, da lei – uma experiência vivida, de uma ponta à outra, através do corpo.
Numa altura em que o direito ao aborto está a ser gravemente contestado ou negado em vários países, a leitura de L’Evénement é ainda mais actual e salutar.
L’Evénement foi adaptado para o cinema, por Audrey Diwan, em 2021, e foi-lhe atribuído o Leão de Ouro, em Veneza.
Notícia publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 728, de 19 de Outubro de 2022, do Partido Operário Independente de França.