França: “Uma sociedade inflamável”

(L’Opinion, 20 de Dezembro 2022)

No cartaz pode ler-se: “Tu vais poder continuar ao jogar até aos 65 anos”, numa alusão à subida da idade de aposentação para os 65 anos.

No dia seguinte à Final do Campeonato do Mundo de futebol em Doha, no Qatar, à qual ele assistiu (o que não terá escapado a ninguém), Emmanuel Macron voou para o Egipto para se dirigir ao porta-aviões Charles-de-Gaulle, estacionado algures no Mar Vermelho. Ele recordou o compromisso da França com a Ucrânia e o seu plano de guerra. “Foi esta a escolha que fiz há cinco anos, reinvestindo massivamente nas nossas Forças Armadas, através de uma Lei de Programação militar. Estamos a preparar uma nova Lei, onde teremos de ir ainda mais longe.”

O Chefe de Estado quer “preparar as Forças Armadas num modelo completo”, para que possam “obter informações, agir de forma autónoma, escolher os seus parceiros, para nos proteger, tanto no nosso solo, como na Europa e no Mediterrâneo”.

Em termos concretos, milhares de milhões para a guerra, quase 10.000 soldados em manobras activas em território nacional a partir de 2023, tropas francesas destacadas na Roménia.

Uns dias antes, a Primeira-ministra Elisabeth Borne tinha recorrido, pela décima vez, ao artigo 49.3 (da Constituição bonapartista) para viabilizar o Orçamento do Estado, homologando em particular 2.000 cortes em postos de Ensino para o início do ano lectivo de 2023, incluindo 1.117 em escolas pré-primárias e primárias!

A UNIÃO NACIONAL ESTÁ A PASSAR UM MAU BOCADO

O desempenho ridículo e grotesco de Macron – manifestado numa tentativa de recuperar a popularidade dos Blues (1) na noite da Final, e da aplicação de dez 49.3 em relação ao Orçamento em dois meses: decididamente, este Regime vai nu. “Cada artigo da Lei de Finanças (Orçamento) exigiu do Governo uma energia excepcional”, analisa o jornal Le Figaro (20 de Dezembro), “Elisabeth Borne utiliza o 49.3 mais frequentemente e as moções de censura estão também em voga.”

Para levar por diante os seus planos, Macron está constantemente a procurar a união nacional: em torno da guerra e dos Blues. Mas, o mínimo que podemos dizer é que a operação está a enfrentar dificuldades.

A inflação está em máximos históricos, a subida vertiginosa dos preços não só não abranda, mas é provável que acelere brutalmente em Janeiro, enquanto os lucros do capital financeiro crescem em flecha. A ameaça de cortes de electricidade – resultado da abertura à concorrência feita por Macron e os seus antecessores – causa angústia em milhões de lares,.

Nesta situação, Emmanuel Macron – confrontado com a resistência tenaz da população e, em particular, da classe operária – está a enfrentar as piores dificuldades para fazer passar as suas políticas reaccionárias, a começar pelo seu projecto de “reforma” das pensões de aposentação, que visa fazer com que todos os trabalhadores assalariados deste país trabalhem durante mais tempo.

Ele está perante uma frente sindical que resiste, unida em torno das reivindicações: recusa de qualquer recuo na idade legal para a aposentação e qualquer aumento do período de contribuição. A nível político, Macron tem dificuldade em encontrar os apoios de que necessita. Daí o adiamento do anúncio da “reforma” para 10 de Janeiro, quando esta deveria ter tido lugar a 15 de Dezembro. Há alguma excitação no ar, bem como manobras em marcha. Uma coisa é certa: Macron quer ir até ao fim no ataque às pensões de aposentação. Mas o caminho a seguir permanece de momento incerto, devido ao isolamento do Presidente. Alguns, no seu próprio campo político, até questionam o facto de ele querer avançar de imediato, como é o caso do macronista Gilles Savary, ex-deputado do PS da Gironda, que declarou ao jornal Les Echos: “O conforto pessoal do Presidente da República ficaria melhor assegurado se ele transferisse, calmamente, para os seus sucessores o desaparecimento gradual do nosso Sistema (de Segurança Social) por repartição (…). “

O que os aterroriza: o espectro de um cenário que nenhum deles controla. É o mesmo Savary que alerta: “Na sociedade inflamável em que vivemos, ninguém pode pretender controlar o curso das crises sociais, e a possibilidade de provocar uma grande crise política não pode ser eludida pelo Executivo.”

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(1) Termo por que é conhecida a equipa de futebol da França.

Crónica política da autoria de Rosalie Albani, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” Informações operárias – nº 737, de 21 de Dezembro de 2022, do Partido Operário Independente (POI) de França.

França: Democracia versus Quinta República

Rachel Kéké, a camareira (mulher das limpezas) e líder de 22 meses do movimento das camareiras no hotel Ibis des Batignolles (Paris), ganhou a 7ª circunscrição eleitoral do Val-de-Marne para a Nupes (Nova União Popular Ecológica e Social), contra a ex-ministra dos Desporto de Macron, Roxana Maracineanu.

Ainda a contagem dos votos da segunda volta das Legislativas não estava completa e já os lacaios do Palácio do Eliseu (1) começavam a falar sobre a dissolução da Assembleia Nacional; Macron colocou peritos jurídicos a trabalhar para este fim (2).

Qual a razão para esta raiva contra a democracia? A Quinta República, para impor a vontade da minoria capitalista, deve garantir os plenos poderes do “monarca”, protegendo-o durante cinco anos de qualquer sanção popular.

Isto só pode ser feito com uma Assembleia sob a sua bota, um Parlamento de “bananas”, de robôs.

Os burgueses sabem que, quando a democracia no topo abre brechas, a democracia em baixo aproveita, como Karl Marx mostrou no precedente bonapartista de 1851: “O regime parlamentar vive da discussão, como poderia proibi-la? (…) Os representantes que apelam constantemente à opinião pública dão-lhe o direito de se expressar por meio de petições. O sistema parlamentar coloca tudo nas mãos de maiorias; como poderia haver grandes maiorias fora do parlamento que não quisessem também decidir? Quando, na cúpula do Estado, se toca violino, como podemos esperar que os que estão em baixo não comecem a dançar (3)?”

A vitória – sobre uma ex-ministra do presidente-dos-ricos – da sindicalista lutadora Rachel Kéké simboliza a entrada no Parlamento do sofrimento, dos direitos, das reivindicações, da raiva e da tenacidade do povo trabalhador.

A democracia está deste lado. A arbitrariedade monárquica, a reacção patronal, a estigmatização racista – numa palavra, a Quinta República – estão do outro lado; o Regime inimigo dos trabalhadores tem um joelho no solo.

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(1) A Sede da Presidência da República francesa.

(2) Informação dada à rádio Franceinfo, a 20 de Junho. “Esta assembleia não vai durar” (Jérôme Jaffré, consultor do canal de televisão LCI). Muitos comentadores habituais dos “palcos” da Comunicação estão a especular sobre as possíveis datas e pretextos para uma dissolução.

(3) K. Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte.

Crónica de Michel Sérac publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” Informações operárias – nº 711, de 22 de Junho de 2022, do Partido Operário Independente de França.

França: Legislativas depois das Presidenciais

Multidão de jovens, em frente do Cirque d’Hiver, em Paris, onde se desenrolava a noite eleitoral da União Popular, a 10 de Abril.

Eleições legislativas (1): juntos, unidos, pelos candidatos da União Popular, avancemos em força!

Apesar da desenfreada propaganda mediática, dos discursos ameaçadores e de culpabilização que, logo a seguir à primeira volta, se abateram sobre os eleitores; apesar das intimações dos principais representantes dos partidos, tanto de esquerda como de direita, que tinham acabado de ser esmagados – 28% dos eleitores não compareceram às urnas para votar em Macron. Além disso, 8,5% dos eleitores optaram pelo voto branco ou nulo. Se somarmos as abstenções com os votos brancos e nulos, constata-se que cerca de 17 milhões de eleitores – mais de um terço do eleitorado – se recusou a aceitar a lógica infernal em que os quiseram entalar.

Este facto crucial vem no seguimento da raiva que foi expressa – na primeira volta das eleições presidenciais – contra Macron, contra o Regime e as instituições existentes, para as varrer de cena, para as eliminar.

Na primeira volta, cerca de 8 milhões de trabalhadores apoiaram a orientação de ruptura com o passado, incarnada na campanha do candidato da União Popular, Jean-Luc Mélenchon.

De acordo com as sondagens, nesta segunda volta 40% dos eleitores votaram em Macron por falta de escolha. Macron, aliás, perdeu 2 milhões de votos em relação a 2017.

Le Pen, por outro lado, atingiu a sua votação mais alta. E não nos queiram convencer que a maioria dos eleitores de Marine Le Pen são todos “de extrema-direita”, ou mesmo “fascistas”, como o ouvimos repetir em muitos debates televisivos.

Todos sabem quem é responsável por esta situação. Ela é o resultado directo da política de Macron que, como todos os seus predecessores, de direita e de esquerda, nunca deixou de a alimentar para assegurar a sua reeleição.

Macron acaba de ser reeleito como Chefe de Estado de um país profundamente fracturado, com instituições que se estão a degradar a olhos vistos. O seu programa é conhecido.

Ao longo do período de cinco anos que acaba de terminar, ele nunca deixou de atacar todas as conquistas sociais e democráticas da classe operária: portarias que organizam o desmantelamento do Código do Trabalho e de todas as conquistas colectivas; tal como a privatização da Sociedade Nacional dos Caminhos-de-Ferro (SNCF) e de todos os serviços públicos… Desde há mais de dois anos que as decisões têm sido tomadas no segredo do Conselho de Defesa; o país encontra-se em permanente estado de emergência, levando a uma acumulação de medidas liberticidas sem precedentes na história das instituições antidemocráticas da Quinta República.

Foi esta política que provocou a revolta dos Coletes Amarelos e, depois, a poderosa greve contra a reforma das pensões de aposentação, forçando Macron a recuar nesta reforma emblemática do seu primeiro mandato de cinco anos.

Agora, Macron gostaria de continuar e agravar a sua política destrutiva à conta do capital financeiro, cujas cúpulas e representantes aplaudiram imediatamente a sua reeleição. O Medef (Confederação do Patronato francês – NdT) congratulou-se com a sua vitória. Usando a guerra na Ucrânia, ele programou um aumento das despesas militares sem precedentes desde 1945. Ao mesmo tempo, enquanto milhões de Franceses já estão a ser sufocados pela inflação e a subida de preços, ele promete sacrifícios e decisões difíceis. Em particular, ele anunciou que será necessário trabalhar mais, aumentar a idade da aposentação para os 65 anos e liquidar os regimes especiais de aposentação. Ele tenciona organizar uma Conferência social sobre este tema, no Verão, com o conjunto dos sindicatos e organizações patronais.

Mas, a partir de agora, ele não pode contar com nenhum estado de graça. O seu ministro da Economia e das Finanças sabe disso, pois acaba de declarar que o Governo não exclui a utilização do Artigo 49.3 (1) para impor a reforma das pensões de aposentação.

Os últimos anos têm sido marcados por movimentos profundos de rejeição e de recusa. O poderoso movimento que foi expresso na primeira volta a favor da  orientação de ruptura da União do Popular é o seu prolongamento.

A enorme raiva e a vontade de resistir que se apoderaram da população e da juventude só poderão chocar-se com a política destrutiva que Macron tentará impor por todos os meios. Haverá confrontação, é inevitável.

Então, o que irá acontecer agora?

Sem perder um minuto, vamos continuar a juntar forças, continuar a agir em conjunto para fortalecer o poderoso “pólo popular” que foi formado na campanha presidencial.

O Congresso do POI, realizado a 12 de Dezembro de 2021, adoptou uma “Carta aos abstencionistas, a todos aqueles que resistem, que estão fartos e que querem mudança “. Ela terminava assim:

“Temos uma certeza. Temos uma oportunidade, mesmo através das eleições, de nos unirmos, de nos reagruparmos, de dizer: estamos aqui, estamos a resistir, estamos a recusar, estamos a procurar reagrupar as nossas forças com toda a consciência, com toda a liberdade de crítica, para os eliminar a eles e às suas instituições, para resistir, para viver. E assim mostrar a força e o poder desta rejeição, com que todos terão de contar. Do outro lado, eles também se irão reagrupar. É nessa fase que estamos!

Dentro de algumas semanas, terão lugar as eleições legislativas.

Macron e Le Pen têm interesse em reproduzir o cenário infernal da segunda volta das eleições presidenciais.

Pela nossa parte, retomamos a fórmula de Mélenchon: “Macron é o programa económico de Le Pen mais o desprezo de classe; Le Pen é o programa económico de Macron mais o desprezo de raça”.

É claro que sabemos qual a natureza das instituições da Quinta República. Não temos ilusões sobre o lugar que estas instituições antidemocráticas – confiando ao Chefe do Estado poderes exorbitantes – deixam à Assembleia Nacional, reduzindo-a a um mero parlamento raquítico.

Para abrir uma saída em conformidade com a democracia, com os interesses da grande maioria, é necessário que as instituições criadas após o golpe de Estado de 1958 sejam desmanteladas.

Mas também sabemos que um grande número de representantes eleitos, de deputados eleitos pelo pólo popular – sobre a base da orientação de ruptura que é a da União Popular –  abriria uma crise formidável, uma brecha escancarada no coração destas instituições. Uma brecha na qual as massas poderiam inserir-se para impor a convocação de uma Assembleia Constituinte e soberana, onde o próprio povo definiria a forma e o conteúdo da democracia. Isso seria uma poderosa alavanca para a luta de classe.

A partir de hoje, o POI apela ao trabalho em conjunto com os milhares que já se estão a reunir na União Popular, para a amplificação “desta força imensa que construímos” (Mélenchon, 10 de Abril), para o reforço deste pólo popular.

E nas eleições legislativas, como nas eleições presidenciais, todos juntos, avancemos em força!

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(1 )Em França, as eleições legislativas irão ter lugar no próximo mês de Junho, dias 12 e 19.

(2) Trata-se de um Artigo da Constituição gaullista (bonapartista) que permite ao Presidente da República promulgar despachos sem passarem pela Assembleia Nacional.

Comunicado do Secretariado Nacional do Partido Operário Independente (POI) de França, de 25 de Abril de 2022 (dia a seguir à segunda volta das eleições presidenciais)