Lula: “Parar a guerra”

Brasília (DF), 03/04/2023 – O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ministros fazem reunião de balanço de 100 dias de governo, no Palácio do Planalto.

O Presidente da República do Brasil vem a Portugal e foi convidado para tomar a palavra no quadro das comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República, o que tem levantado uma polémica interminável.

Sobre o posicionamento de Lula em relação à guerra na Ucrânia apresentamos um depoimento de Markus Sokol, dirigente da Secção da 4ª Internacional no Brasil e membro da Executiva Nacional do PT (o partido de Lula).

Quando Lula se afasta da política externa dos EUA sobre a guerra na Ucrânia, ele expressa o sentimento popular profundo de soberania nacional face à opressão, mais que centenária, do imperialismo estadunidense (e europeu), que concorreu para derrotar Bolsonaro e conquistar o seu terceiro mandato. No começo do conflito ele já havia dito “Não à guerra”.

Mas logo após a sua posse, Lula foi confrontado ao pedido – de Macron, por telefone, e de Scholz, em visita oficial – de ajuda militar a Zelensky. Ele respondeu ao social-democrata Scholz que “Se der ajuda a uma parte, entro na guerra; eu quero parar a guerra”. Repetiu isso ao sair de uma visita a Biden.

Registe-se que, no continente americano, os governos chamados “progressistas” da Argentina, Chile, Colômbia e México também negaram esse apoio militar a Zelensky (Venezuela, Cuba e Nicarágua apoiam Putin). Na ONU, o governo de Lula votou pela “retirada imediata e incondicional das forças militares (russas) do território da Ucrânia”, sem citar o papel da NATO.

Na verdade, Lula tem a ambição de pôr de pé um “grupo de paz” para negociar um cessar-fogo imediato. Na recente viagem à China (que não sinalizou adesão a esse “grupo”) e, depois, aos Emirados Árabes, Lula apontou o dedo: “É preciso que os EUA parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz, para a gente poder convencer Putin e Zelensky que a paz interessa a todo mundo e que a guerra, por enquanto, só está interessando aos dois.”

A reacção foi imediata: “Acreditamos que é profundamente problemático como o Brasil abordou de forma retórica a questão, sugerindo que os EUA e a Europa, de alguma forma, não estão interessados na paz ou que compartilhamos a responsabilidade pela guerra”, disse John Kirby, porta-voz de Segurança Nacional da Presidência dos EUA, já falando também em nome da UE (!), cujo porta-voz correu a secundá-lo.

A imprensa brasileira lacaia relinchou contra o “destempero” do presidente Lula e o isolamento do Brasil do “Ocidente”, figura mitológica invocada pelos EUA quando precisa. Embora o agronegócio brasileiro nunca tenha deixado de exportar para a China e de importar fertilizantes da Rússia, assim como de exportar para os EUA e a UE, e nesse caso receber “investimentos”, é possível que na actual situação mundial de disputa feroz por mercados – razão última da guerra – o mau-humor dos capitalistas se venha a reflectir na política interna.

Lula tem razão neste ponto. O fim da guerra não está na mão dos contendores, interessados na sua continuação, mas na mão da mobilização dos povos (e lideranças) que não querem a guerra.

Brasil: É urgente levar a contra-ofensiva até ao fim!

Uma semana após a tentativa abortada de golpe de Estado no Brasil, qual é a situação política no país e quais são os desafios a enfrentar?

As intenções golpistas de Bolsonaro estavam anunciadas há muito tempo, pelo menos desde as manifestações de massa promovidas pelo então Presidente a 7 de Setembro de 2021.

A iminência de um golpe tornou-se ainda mais evidente durante os dois meses em que os bolonistas acamparam em frente a quartéis do Exército, pedindo uma intervenção militar que anulasse a vitória eleitoral de Lula de 30 de Outubro.

UM GOLPE ANUNCIADO E ESPERADO

Era um golpe anunciado e esperado, mas que ainda assim apanhou o governo de Lula – uma semana após a sua posse triunfal, perante mais de 200 mil manifestantes em Brasília – desprevenido e desguarnecido.

Entre 4 a 5 mil pessoas foram trazidas, à luz do dia, até à capital federal (Brasília) com o objectivo de invadir o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso, com golpistas e fascistas que pediam uma intervenção militar. Para que esta máfia pudesse atingir os seus alvos houve uma clara conivência de autoridades do Governo do Distrito Federal (GDF) e do Comando do Exército, como foi amplamente noticiado.   

A intervenção federal decretada por Lula para a Segurança da capital federal, horas depois do início das acções golpistas, seguida pelo afastamento do governador do GDF Ibaneis (do Movimento Democrático Brasileiro – MDB) pelo juiz do STF Alexandre Moraes, permitiram o restabelecimento da ordem, desalojando os bolsonaristas dos edifícios ocupados e vandalizados, com a detenção de muitos deles. Empresários que financiaram os autocarros e a estadia dos golpistas em Brasília, muitos ligados ao agro-negócio (indústria agro-alimentar), também estão na mira da Justiça e os seus bens foram sequestrados.

O PRÓPRIO BOLONARO ESTÁ INCLUÍDO NA INVESTIGAÇÃO

Ao longo da semana, o ex-ministro da Justiça e secretário para a Segurança Pública do Distrito Federal (DF), Anderson Torres, que tinha viajado para Orlando (EUA) para se encontrar com Bolsonaro, teve a sua prisão preventiva decretada por Moraes e o próprio Bolsonaro – a pedido da Procuradoria Geral da República (PGR) – foi incluído na investigação que visa apurar responsabilidades sobre a tentativa de golpe.

Mas faltam ainda – entre os “peixes grandes” comprometidos com a acção golpista – chefes das Forças Armadas, em particular do Exército, que até este momento não foram incomodados, apesar de terem claramente faltado às suas obrigações. É certo que Lula declarou aos jornalistas que as Forças Armadas, “ao contrário do que pensam”, não são um “poder moderador” e que deveriam ater-se às suas funções constitucionais. Mas, ao mesmo tempo, José Múcio – após ter afirmado que os acampamentos golpistas eram uma “manifestação democrática” – foi agraciado com a pasta de ministro da Defesa.  

As manifestações de 9 de Janeiro, nas ruas de capitais estaduais em defesa do governo de Lula e contra o golpe, marcadas pelos gritos de “Não à amnistia” e “Bolsonaro na cadeia”,  com as sondagens a revelarem 93% de desaprovação da acção golpista, a raríssima unidade na sua condenação por parte de partidos e de governadores (inclusive os eleitos com o apoio de Bolsonaro), indicam que agora é o momento de levar a contra-ofensiva até ao fim, o que implica a “desbolsonarização” do aparelho de Estado, claro, mas também a limpeza no Comando das Forças Armadas, o qual, se não ocorrer, manterá a ameaça de golpe pairando no ar, prolongando a tutela militar sobre os poderes do Estado.

O PRINCIPAL APOIANTE DE LULA: A MAIORIA OPRIMIDA DO POVO

Num cenário de crise económica mundial e perante os estragos, a todos os níveis, herdados do governo de Bolsonaro, o principal apoio que Lula terá para governar será a maioria explorada e oprimida do povo, a qual espera medidas concretas que melhorem as suas condições de vida e de trabalho. O apoio de tipo “união nacional” contra os golpistas, alimentado pela grande Imprensa – que fala em isolar “terroristas” e “bolsonaristas radicais” (como se houvesse os “moderados”!) – pode evaporar-se perante a primeira medida do governo de Lula que desagrade ao “mercado”.

Neste momento, levar até o fim a investigação e condenação de todos os envolvidos no intento golpista de 8 de Janeiro é a questão mais urgente. Se isso for feito, será um passo em frente firme para, mais adiante, abordar as profundas reformas nas instituições políticas de que a nação brasileira tem necessidade no sentido de alcançar a plena democracia e a soberania popular e nacional.

14 de Janeiro de 2023

Julio Turra (Assessor da Direcção da Central Única dos Trabalhadores – CUT do Brasil e membro da Direcção de “O Trabalho” – Secção brasileira da 4ª Internacional)

Após a tomada de posse de Lula

Divulgamos uma entrevista de Markus Sokol (1), dada ao jornalista Renato Dias, de Goiânia, e que foi publicada a 5 de Janeiro de 2023 (antes da invasão do edifício dos “Três poderes” pelos fãs de Bolsonaro).

Renato Dias (RD): Quais são – traduzidos em indicadores, estatísticas e números – os legados negativos da era de Jair Bolsonaro?

Markus Sokol (MS): Posso resumi-los com base na condição das famílias trabalhadoras: pelo 4º ano consecutivo, sem qualquer reajustamento real do salário mínimo, os salários têm estado sob pressão de descida; temos quase 10 milhões de desempregados de um exército de 23,5 milhões de pessoas sub-empregadas (juntando desincentivados e sub-ocupados); 79% das famílias estão em sobreendividamento, o que constitui um máximo em 12 anos, de acordo com os dados do mês de Setembro.

RD: Alguma vez foi pior durante o governo de Bolsonaro?

MS: Sim, já tinha sido um pouco pior. Mas isto são dados de Setembro, em vésperas da eleição. São o produto de manobras político-eleitorais feitas no decurso de um ano, com o apoio do grande Patronato – e inclusive com a complacência dos apoiantes da “3ª via” – para tentar reeleger Bolsonaro, no âmbito de uma operação estatal real, mas que não funcionou.

De facto, a economia – anteriormente em recessão – foi, até certo ponto, impulsionada pelos créditos, os subsídios e as isenções. Surgiram algumas “generosidades” eleitorais e outras medidas que se traduzem agora no buraco deixado no complicado Orçamento de 2023. Sabemos que este Orçamento, votado “ao apagar das luzes, em Dezembro”, tem um défice de 220 mil milhões de reais (2). Não faz sentido que seja o povo a pagar esta conta!

Neste sentido, a PEC de emergência (3) foi um penso rápido, necessário, mas apenas um penso rápido. É isso que torna o legado negativo numa questão muito sensível, resultante das reivindicações sociais que foram reprimidas desde o golpe de 2016 (4), do défice de habitações, passando pelos programas sociais desmantelados, pelo corte nos recursos do Serviço Único de Saúde (SUS) e da Educação, pelo aumento do imposto sobre o rendimento dos assalariados, pelas empresas públicas desmanteladas e os serviços públicos delapidados. Tudo isto para preservar o famoso Serviço da Dívida interna (pública) que engole 30% do Orçamento nacional. É isto que tem de mudar.

RD: Qual é a sua análise sobre os nomes e quadrantes políticos que ocuparão os cargos ministeriais e o qual o significado do discurso “à esquerda”, na rampa do Palácio do Planalto, feito por Luiz Inacio Lula da Silva, em conjunto com o simbolismo da entrega da faixa presidencial (5)?

MS: O discurso de Lula reafirmou os compromissos da sua campanha eleitoral e indicou algumas das suas primeiras medidas positivas. Mas, neste contexto, o que foi verdadeiramente “de esquerda” foi a erupção espontânea das massas gritando o slogan: “Não à amnistia! Não à amnistia”. A Rede Globo, a Folha de São Paulo e outros órgãos de imprensa tiveram de o difundir. Nós, do Diálogo e Acção Petista (6) – que viemos à investidura em caravanas com bandeirolas e reivindicações populares, tendo à cabeça “Os golpistas para a prisão!” – regozijamo-nos com o amadurecimento da consciência do povo, parcial mas muito real.

A partir de agora, a muito ampla composição política do novo Governo será testada na prática. Não acredito que seja possível uma união, por exemplo com os 2500 patrões formalmente acusados de assédio eleitoral, nem com os políticos (nomeadamente os congressistas) envolvidos na compra de votos, nem com os generais que tenham exorbitado das suas funções, e assim por diante…

Em relação aos ministérios – através de um cálculo rápido baseado em informações da imprensa – dos 37 ministros nomeados apenas 11 são do PT, 13 vêm do Centro-direita e da Direita. Destes últimos, 11 apoiaram o golpe para retirar Dilma do cargo e meia dúzia foram bolsoniarstas, alguns até há bem pouco tempo. Curiosamente, entre todos estes 13, existe apenas um grande chefe de empresa (rural), o que sugere uma maior desconfiança deste sector em relação a anteriores governos do PT (por exemplo, havia 3 grandes chefes de empresa no Governo em 2002).

Mas, como eu disse, veremos como se irão comportar os novos ministros, especialmente face à tarefa de “desbolsonarizar” o Estado e ao “Não à amnistia”, ontem exigido pela multidão.

Entrevista publicada em 5 de Janeiro de 2023

(antes da invasão do edifício dos “Três poderes” pelos fãs de Bolsonaro)

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(1) Markus Sokol é dirigente da Corrente “O Trabalho” (Secção brasileira da 4ª Internacional) do PT e, ao mesmo tempo, foi eleito como membro do Secretariado nacional deste Partido, de acordo com o método de Hondt.

(2) Ou seja, cerca de 39,5 mil milhões de euros.

(3) PEC: Proposta de Emenda Constitucional.

(4) Golpe que derrubou Dilma Rousseff.

(5) Bolsonaro recusou-se a entregar a faixa presidencial ao seu sucessor. Foi uma mulher, trabalhadora da recolha do lixo – rodeada por pessoas de meios modestos – que entregou a faixa a Lula.

(6) Ver o nosso post anterior. O “Diálogo e Acção Petista” (DAP) é um movimento de base do Partido dos Trabalhadores (PT), que combate para que o PT retome o caminho das suas origens. Os militantes da Corrente “O Trabalho” (Secção brasileira da 4ª Internacional) do PT participam no DAP.