81 anos depois do assassinato de Trotsky

81 anos depois, a 4ª Internacional prossegue o seu combate para ajudar a classe operária a colocar a questão do poder e pôr fim ao sistema da propriedade privada dos grandes meios de produção.

Winston Churchill, primeiro-ministro da Inglaterra pertencente ao Partido Conservador, escreveu mais do que uma vez sobre Leon Trotsky e desejou que ele e as suas ideias morressem e fossem esquecidos pela História. Mas ele foi obrigado a reconhecer que talvez apenas Trotsky e Lenine sobrevivessem, na História, como os mais conhecidos personagens e líderes da Revolução russa de Outubro de 1917. O ódio brutal do principal líder da burguesia inglesa ao líder bolchevique era, na verdade, direccionado contra a Revolução russa, contra a classe operária que ousara tomar o poder, isto é, contra a revolução socialista mundial que assombrava os capitalistas.

Esse mesmo Churchill – como a maior parte das burguesias de todo o mundo – elogiou Hitler e os nazis, na década de 1930, pela capacidade que tiveram de reprimir e esmagar a mais poderosa classe operária de então, a alemã.

Estaline foi para além do ódio e ordenou a execução de Trotsky. Todo o enorme aparelho político da Internacional Comunista (3ª Internacional), os seus partidos, jornais e lideranças, mas também a Polícia estalinista dentro e fora da URSS – (a NKVD e, depois, a GPU) – perseguiram, de maneira implacável, Trotsky e todos aqueles que ousassem discordar da tirania estalinista que se afirmava.

Na Alemanha, Estaline também ajudou a abrir caminho a Hitler, dividindo a classe operária alemã, em 1933, impedindo a sua unidade para derrotar o nazismo. O ódio da burocracia estalinista contra o revolucionário russo – antigo presidente do Soviete de Petrogrado, em 1917, e criador do Exército Vermelho – tinha como alvo a democracia socialista e a possibilidade de concretização da revolução mundial.

Aferrada a crescentes privilégios e a uma ditadura cada vez mais brutal contra a classe operária e o povo soviéticos, a burocracia estalinista temia a revolução tanto quanto os capitalistas.

Para o grande acordo em defesa da convivência e estabilidade com os capitalistas, Estaline ofereceria o assassinato de Trotsky em 1940, mas antes procurou – em plena década de 1930, quando o mundo capitalista mergulhava em profunda crise – novos acordos com as burguesias dos principais Estados capitalistas.

Tratava-se das políticas de colaboração de classes ou Frentes Populares (como ficaram conhecidas) e que, de facto, colocavam as organizações operárias em frentes controladas por partidos das respectivas burguesias. Essa política teve o efeito desastroso, por exemplo, de bloquear a Revolução espanhola (1936-1939) ou de criar uma Frente com a burguesia francesa, no momento de ascensão da luta de classes na França.

A 3ª Internacional, depois de capitular e não combater o nazismo, submeteu-se completamente ao controlo dos chefes – nomeados de cima para baixo, por Estaline – e tornou-se num apêndice das manobras diplomáticas da política externa da URSS.

A Oposição de Esquerda e a 4ª Internacional

Após a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, em Janeiro de 1933, a Oposição Internacional de Esquerda passou a defender a proposta de se construir uma 4ª Internacional, a partir de uma orientação de Frente única, apelando à mais ampla unidade das organizações operárias para lutar contra o fascismo.

As organizações dirigidas pelo estalinismo defendiam, nesse momento, as Frentes amplas com as burguesias, as quais na prática – em nome da “unidade” ou da “democracia” – obrigavam e pressionavam os sindicatos, por exemplo, a abrir mão de salários, direitos e greves.

No Brasil, essa política traduziu-se na criação da ANL (Aliança Nacional Libertadora) – impulsionada pelo Partido Comunista (PCB) – que, ao contrário do que dizia o seu nome, procurava aprisionar a classe operária brasileira aos objectivos da burguesia.

Em 1936, Trotsky está empenhado também em impulsionar o “Movimento pela 4ª Internacional”, após a completa falência e burocratização da 3ª Internacional, que não esboçara nenhuma reacção face à derrota do movimento operário alemão ao nazismo. Depois de ser expulso da França e de, na Noruega, ser ameaçado de deportação para a URSS (onde seria fuzilado por Estaline), o governo de Lázaro Cárdenas (1), no México, ofereceu asilo ao velho revolucionário russo. A herança da revolução mexicana (1910-1917), de Pancho Villa e Emiliano Zapata, tornou-se presente nesse gesto.

“A crise da humanidade resume-se à crise da Direcção revolucionária”

Nos meses que antecederam a sua morte, Trotsky procurava fortalecer a recém-fundada 4ª Internacional, que se formara em 1938 e dava os seus primeiros passos. Como afirma o seu texto fundador – o Programa de Transição – “a crise da humanidade resume-se à crise da Direcção revolucionária”.

As condições objectivas para a Revolução socialista estavam maduras e era necessário construir uma nova Direcção revolucionária. Sem o socialismo, a humanidade estaria ameaçada de ser arrastada para a barbárie pela permanência do capitalismo.

A barbárie estava mesmo próxima. A Segunda Guerra mundial (1939-1945) – que mataria dezenas de milhões se seres humanos nos anos seguintes – apenas tinha começado. Trotsky assinalou nas suas últimas notas, escritas pouco antes do seu assassinato: “A Segunda Guerra Mundial coloca a questão da mudança de Regime, de maneira mais imperiosa e urgente do que a Primeira. É sobretudo uma questão de Regime político. Os operários sabem que a democracia naufragou, em toda a parte, e que o fascismo os ameaça mesmo onde ainda não existe. A burguesia dos países democráticos vai, naturalmente, utilizar este medo do fascismo por parte dos operários; mas, por outro lado, a falência das democracias, o seu desmoronamento e a sua dolorosa transformação em ditaduras reaccionárias obrigam os operários a colocar a questão do poder e torna-os responsáveis por a colocarem.”

Churchill e Estaline temiam os abalos que a conjuntura internacional provocaria na estabilidade política. Temiam que se repetisse o que ocorrera no final da Primeira Guerra mundial (1914-1918): a explosão das massas populares e as revoluções. Era essa a aposta de Trotsky e da 4ª Internacional. O estalinismo tornara-se a linha auxiliar da estabilidade internacional, apesar de todas as aparências em contrário. E o final da Guerra, em 1945, trouxe de facto milhões de pessoas para as ruas, numa onda revolucionária anticapitalista, que varreu todo o planeta. Nem Getúlio Vargas (2), no Brasil, escapou. Depois, teve lugar a destruição final da Internacional Comunista, em 1943, bem como os acordos de Yalta e de Postdam, no final da Segunda Guerra.

A vitória contra o fascismo de Hitler e de Mussolini só foi possível porque houve a Revolução de Outubro de 1917, que pôde transformar a Rússia rural e atrasada numa potência industrial, através da planificação económica socialista, com a eliminação da propriedade privada dos meios de produção. O objectivo do aparelho estalinista, ao eliminar Trotsky, era o de liquidar o fio de continuidade da Revolução de Outubro de 1917, a sua herança e o seu exemplo.

Trotsky sofreu um atentado em sua casa (às mãos de Mercader, agente de Estaline), no dia 20 de Agosto de 1940, mas só morreu no dia seguinte, num hospital da cidade do México.

81 anos depois, a 4ª Internacional prossegue o seu combate para ajudar a classe operária a colocar a questão do poder e pôr fim ao sistema da propriedade privada dos grandes meios de produção.

—————————————–

(1) Membro do Partido Revolucionário Institucional, foi Presidente da República do México, entre 1 de Dezembro de 1934 e 30 de Novembro de 1940.

(2) Membro do Partido Trabalhista Brasileiro, foi Presidente da República do Brasil, entre 20 de Julho de 1934 e 29 de Outubro de 1945 e, de novo, entre 31 de Janeiro de 1951 e 24 de Agosto de 1954 (data da sua morte).

Adaptação do artigo da autoria de Everaldo Andrade, editado no jornal “O Trabalho” – cuja publicação é da responsabilidade da Secção brasileira da 4ª Internacional (corrente do Partido dos Trabalhadores do Brasil) – na sua edição nº 888, de 12 de Agosto de 2021.

Retrato do meu assassino

Trata-se de uma biografia de Estaline, em grande parte inédita, que estava a ser escrita por Trotsky quando foi assassinado a mando do biografado. A notícia saiu no jornal espanhol El País, a 29 de Outubro de 2017, aquando do centenário da Revolução Russa, e é da autoria dos jornalistas Bernard Marín e Jorge F. Hernandéz.

Estaline divertia-se, na sua casa de campo, degolando ovelhas ou lançando querosene (petróleo) nos formigueiros e ateando fogo. Kamenev disse-me que, nas suas visitas de lazer aos sábados a Zubalovka, Estaline caminhava pelo bosque e divertia-se, continuamente, alvejando animais selvagens e assustando a população local. Tais histórias sobre ele, procedentes de observadores independentes, são numerosas. E, no entanto, não faltam pessoas com esse tipo de tendências sádicas no mundo. Foram necessárias condições históricas especiais antes que esses instintos obscuros encontrassem uma expressão tão monstruosa.”

Estas palavras fazem parte de uma biografia singular. Pela relevância dos seus protagonistas, duas das figuras proeminentes da Revolução Russa, divididas por uma das rivalidades mais marcantes do século XX. E porque o perfil ficou incompleto depois do retratado ter ordenado a morte do seu biógrafo. Estaline, a obra que Leon Trotsky escrevia quando foi assassinado por Ramón Mercader, no México, em Agosto de 1940, permaneceu adormecida durante mais de sete décadas. E, depois de muitas peripécias, mutilações e acréscimos, volta a ver a luz num volume de quase mil páginas, em grande parte inédito, coincidindo com o centenário da chegada dos Bolcheviques ao poder.

A história deste livro merecia a publicação de outro que a contasse. Trotsky, exilado no México após ter o asilo rejeitado em vários países, sabia que estava condenado pelo líder da União Soviética, Josef Estaline. Mas não tinha interesse particular em escrever sobre a vida do seu antigo camarada. “Não foi uma vingança. Escrever essa biografia não estava nos planos do meu avô. Estava concentrado em acabar outra, sobre Lenine”, afirma Esteban Volkov, neto do revolucionário, em conversa por telefone da Cidade do México, onde mora. “Mas precisava de dinheiro e a editora Harper & Brothers, de Nova York, fez uma oferta generosa”.

Volkov, prestes a completar 92 anos, tem sido durante décadas o guardião da memória do seu avô. Também é o director da Casa Museu Leon Trotsky, entre cujos muros o revolucionário foi assassinado, em Agosto de 1940, por um golpe de uma picareta de alpinismo do agente estalinista Ramón Mercader. O mesmo cenário onde será apresentada a versão em espanhol do livro, publicada pela editora mexicana Fontamara, no dia 11 de Novembro, coincidindo com o aniversário da chamada “Revolução de Outubro” que, por diferenças entre os calendários gregoriano e juliano, ocorreu em Novembro para o resto do mundo. A obra foi publicada há um ano em Inglês, por uma editora marxista de Londres, e depois foi traduzida para o Italiano e o Português, mas a notícia não teve repercussão nos grandes meios da Comunicação Social.

SANGUE SOBRE PAPEL

A biografia mais transcendental de Joseph Vissarionovich – tristemente ainda celebrado por alguns pelo seu apelido: Estaline – é um retrato minucioso do diabólico ditador russo, em 890 páginas, escrito nada menos que por Leon Davidovich Bronstein, que conhecemos como Trotsky. Parece incrível que, ao ser publicado em Inglês, há um ano, não tenha sido manchete ou tido repercussão nas redes sociais nem nas mais diversas resenhas literárias. Vivemos em amnésias funcionais que creem saciar-se com 140 caracteres e onde, pelo menos, as duas últimas gerações só sabem algo de Leon Trotsky pelos filmes, postais, canecas e demais produtos que circulam desde que Frida Kahlo se transformou em marca registada.

A imensa biografia assinada por um dos principais líderes da Revolução Russa esmiúça, detalhadamente, a demência incrível de um sanguinário traidor dessa mesma Revolução: um comportamento que pareceria indescritível se não existissem milhares de documentos, fotografias (inclusive as alteradas “pelo bem da História”), depoimentos, sobreviventes das purgas, náufragos do Gulag, proscritos redimidos e seguidores arrependidos que, inclusive desde a primeira vitória bolchevique, deixaram registo do seu manancial de desgraças e um vasto rol dos seus crimes. Entre os parágrafos que Trotsky escrevia, de forma incansável, durante o seu exílio na sua frágil fortaleza de Coyoacán, estavam sobre a mesa os papéis que seriam a sua lápide, cuja redação se interrompeu quando Ramón Mercader cravou uma picareta de alpinismo no seu crânio.

Trotsky lutou com o enviado, sabendo que o seu mandante se encontrava sorridente no Kremlin, e talvez durante a sua agonia pensou que ao menos grande parte da escrupulosa biografia do seu executor e de quase toda a sua família, de milhões de seres humanos e de não poucas ilusões utópicas estava praticamente terminada. Tinha aceitado escrevê-la pelo atraente pagamento prometido por uma editora norte-americana, cujo tradutor a traduziu e editou mal, além de fazer emendas e acrescentar parágrafos da sua própria cabeça. Isso foi corrigido, e agora contamos com a publicação de um retrato do Diabo feito em prosa sobre papéis manchados de sangue.

A Harper & Brothers publicou uma versão incompleta do livro, em Inglês, em 1946. Antes não era possível, porque os EUA e a União Soviética eram aliados contra a Alemanha. Mas a viúva de Trotsky, Natalia Sedova, recorreu aos tribunais, sem êxito, para que fosse retirada. As suas objecções dirigiam-se, principalmente, contra o editor e tradutor da obra. “Fez uma edição deficiente do livro, com mutilações e vários acréscimos da sua cabeça, muito distantes do pensamento político do meu avô”, afirma Volkov. O próprio Trotsky nunca teve muita confiança no seu tradutor, e tinha-se indignado quando soube que ele entregara alguns originais a terceiros. “Parece ter ao menos três qualidades: não sabe Russo, não sabe Inglês e é tremendamente pretensioso”, escreveu numa carta ao jornalista norte-americano Joseph Hansen.

Mas uma parte da obra nunca chegou às mãos da Editora. Quando soube estar condenado, Trotsky enviou à Universidade de Harvard, nos EUA, muitos dos seus documentos para serem guardados. “Os arquivos saem esta manhã de trem”, escreveu o revolucionário, a 17 de Julho de 1940, um mês e três dias antes do seu assassinato. E lá se acumularam 20.000 documentos que ocupavam 172 caixas de artigos, fotografias e papeis manuscritos, dactilografados, traduzidos e originais, com uma grande quantidade de correcções que demonstravam como o seu trabalho era extraordinariamente meticuloso.

Capítulos inteiros do livro sobre Estaline permaneceram assim adormecidos até que, em 2003, o historiador galês Alan Woods começou a pesquisar a montanha de documentos para resgatar a versão mais ampla e íntegra possível do livro. E, depois de mais de 10 anos de trabalho, o resultado foi uma obra um terço mais longa do que o livro publicado na década de 1940, sem os acréscimos do primeiro tradutor e, agora sim, com a bênção da família de Trotsky.

Woods concorda com Volkov que Trotsky não queria escrever esse livro. “Mas, uma vez que se dedicou a isso, fê-lo conscienciosamente, com muita documentação e detalhes, inclusive do período mais desconhecido da vida de Estaline – a sua infância. Para qualquer leitor é um estudo psicológico fascinante”, diz de Londres, onde mora. O historiador é um membro activo da Corrente Marxista Internacional. Participou na luta contra o Franquismo, em Espanha, e foi um firme defensor da Revolução bolivariana e amigo pessoal de Hugo Chávez, ainda que nos últimos tempos tenha se distanciado da deriva do Governo venezuelano.

Os dirigentes do Partido Bolchevique eram, em geral, gente muito capacitada, e entre eles brilhava Trotsky, que dominava cinco idiomas e escrevia vários livros ao mesmo tempo. Estaline aparece, por outro lado, retratado pelo seu grande rival político como um homem de horizontes limitados. Esse perfil medíocre coincide com o feito por outros observadores, como o jornalista norte-americano John Reed, que na sua crónica “Os Dez Dias que Abalaram o Mundo” menciona o “Homem de Aço”, apelido de Estaline, apenas duas vezes, e Trotsky nada menos do que 67.

Mas, pelo que se conta no livro que agora será lançado, as qualidades de Estaline eram outras: a astúcia e a arte da manipulação. “A técnica de Estaline consistiu em avançar gradualmente, passo a passo, até à posição de ditador, enquanto representava o papel de um defensor modesto do Comité Central e da Direcção colectiva. Utilizou a fundo o período de enfermidade de Lenine para colocar indivíduos que lhe eram fiéis. Aproveitou-se de cada situação, de cada circunstância política, de qualquer combinação de pessoas para promover o seu próprio avanço na luta pelo poder e para alcançar o seu desejo de dominar os outros. Se não podia elevar-se a sua altura intelectual, podia provocar um conflito entre dois competidores mais fortes. Elevou a arte de manipular os antagonismos pessoais ou de grupo a novos níveis. Nesse campo desenvolveu um instinto quase infalível.”

No entanto, Woods não atribui ao carácter de Estaline a sua ascensão ao poder. “Tinha sido um menino maltratado pelo pai, rancoroso e com tendências sádicas. Mas nem todos os que são maltratados se tornam monstros. Como nem todos os artistas fracassados se tornam Hitler”. E propõe um argumento marxista para explicar a sua ascensão. “Em todas as revoluções há um período em que são necessários heróis, gigantes. Quando se chega a um período de declínio, são necessários medíocres. A degenerescência burocrática teria ocorrido com ou sem Estaline, porque a Rússia era um país isolado e atrasado. Mas, neste caso, a burocracia incarnou-se num personagem sanguinário.”

O livro pode ter acelerado o assassinato? Estaline estava muito bem informado sobre o que o seu rival fazia. A cada manhã tinha os últimos artigos de Trotsky sobre a sua mesa. E Volkov relembra como Robert Sheldon Harte – guarda-costas do seu avô a quem se atribui a traição que facilitou um primeiro atentado contra ele, em Maio de 1940 – lhe perguntava sempre sobre o andamento da obra. “Como qualquer criminoso tinha que eliminar as testemunhas”, diz Woods.

ESTEBAN VOLKOV: “UM DOS GRANDES CRIMES DE ESTALINE FOI MUTILAR A MEMÓRIA HISTÓRICA”

Esteban Volkov (nascido em Ialta, então União Soviética, em 1926), neto de Leon Trotsky e herdeiro do seu legado, prepara nestes dias uma sessão para comemorar o centenário da Revolução Russa, na Cidade do México, como presidente da Casa Museu onde o seu avô foi assassinado. Chegou ao México em 1939, para acompanhá-lo no seu exílio quando era adolescente, depois do seu pai ter desaparecido num Gulag e da sua mãe ter sido morta por capangas de Estaline. Ficou ferido num pé no atentado que o pintor David Alfaro Siqueiros organizou para acabar com a vida do revolucionário, em Maio de 1940, e poucos meses depois foi testemunha da agonia de seu avô após ser atacado por Ramón Mercader. Apesar dos terríveis acontecimentos que presenciou, mantém um espírito sereno e um humor invejável, e, aos 91 anos, diz que espera viver muito mais “para compensar todos os anos que Estaline tirou aos seus familiares”.

O senhor dedicou grande parte da sua vida e da sua energia para defender a memória do seu avô. O que o moveu a fazer isso?

Fui testemunha do seu assassinato e da campanha de calúnias e difamações da imprensa estalinista contra ele. Enquanto muitos se encarregavam de repeti-las, mil e uma vezes, para tentar transformá-las em verdades. Um dos maiores crimes de Estaline foi mutilar a memória histórica. Se é crime dar um mapa falso a um explorador que vai entrar na Amazónia, dar planos falsos à humanidade é um crime ainda mais grave, colocar uma venda nos olhos dos seres humanos entre profundos abismos é um dos piores crimes que se pode cometer.

Que valor tem a publicação dessa biografia de Estaline tantos anos depois?

Não era o livro que meu avô queria escrever, e fê-lo pressionado pelas dificuldades económicas. Mas é muito interessante, porque foi escrito na época de maior maturidade política de Trotsky e conta o contexto em que um personagem com as características de Estaline – que supera a escala de falta de ética de qualquer um – pode chegar ao poder. Não há dúvida de que foi um indivíduo sui generis, de uma crueldade como poucas vezes se viu na História. Personagens como Nero e Átila ficam pequeninhos ao seu lado. E por isso possivelmente acelerou a sentença de morte que tinha lançado contra o meu avô, quando soube que ele estava a escrever a sua biografia.

O que permanece do pensamento de Trotsky cem anos depois da Revolução Russa?

O meu avô deixou um arsenal de ideias políticas para mudar a sociedade. Para construir um mundo que vele pelo ser humano, e não pela ganância. Estudou a fundo o processo estalinista e a contra-revolução. E previu, com 70 anos de antecedência, a queda do totalitarismo burocrático na União Soviética.

A 4ª Internacional foi fundada há 82 anos

A 3 de Setembro de 1938, 30 delegados de 10 Secções da “Oposição de Esquerda” – União Soviética, França, Alemanha, Reino Unido, Polónia, Itália, Grécia, Bélgica, Holanda e EUA – e mais um pela América Latina, o brasileiro Mário Pedrosa, reuniram–se em Perigny, na periferia de Paris, na Conferência de fundação da 4ª Internacional.

Foi o ponto de chegada de um trabalho de cinco anos, desde que, em 1933, Leão Trotsky propôs à Oposição de Esquerda Internacional mudar de orientação e constituir o Movimento pela 4ª Internacional. Para tanto foi decisivo o que tinha ocorrido na Alemanha, onde a política ditada por Estaline ao PC alemão apontava a social-democracia como sendo “o inimigo principal” perante a ascensão de Hitler, negando-se a aplicar a estratégia da frente única operária para barrar a via ao nazismo. A total falta de reacção a essa política desastrosa, nos partidos da 3ª Internacional, levou Trotsky a considerá-la perdida para a revolução.

Perante a iminência da 2ª Guerra Mundial, era preciso assegurar o fio da continuidade

A fundação da 4ª Internacional teve lugar nas vésperas da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), preparada pelas grandes derrotas sofridas pelos trabalhadores depois da Revolução Russa de 1917: a contra-revolução estalinista na União Soviética, a vitória do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, as derrotas provocadas pelas frentes populares (aliança com a burguesia “democrática”) em França e na guerra civil de Espanha, os processos de Moscovo, iniciados em 1936, em que Estaline liquidou toda a antiga Direcção bolchevique.

Mas, era preciso assegurar o fio da continuidade do que vinha desde Marx e a 1ª Internacional: “A luta de classes não sofre interrupção. A 3ª Internacional, após a 2ª, está morta para a revolução. Viva a 4ª Internacional!”.

O método das reivindicações transitórias

O Programa adoptado em 1938, “A agonia do capitalismo e as tarefas da 4ª Internacional”, tinha como subtítulo “A mobilização das massas por meio das reivindicações transitórias como preparação para a tomada do poder” (Programa de Transição).

As reivindicações transitórias consistiam em superar o velho “programa mínimo”, numa situação de “capitalismo em decomposição, quando não há mais lugar para reformas sociais sistemáticas nem para a elevação do nível de vida das massas; (…) quando cada reivindicação séria do proletariado e mesmo cada reivindicação progressista da pequena burguesia conduzem, inevitavelmente, para além dos limites da propriedade capitalista e do Estado burguês. (…) Na medida em que as velhas reivindicações parciais ‘mínimas’ das massas se chocam com as tendências destrutivas e degradantes do capitalismo decadente (…), a 4ª Internacional avança um sistema de reivindicações transitórias, cujo sentido é o de se dirigir, cada vez mais aberta e resolutamente, contra as próprias bases do regime burguês.”

Com este método, o Programa aborda temas como: o desemprego e a carestia de vida; o lugar dos sindicatos, comités de fábrica e sovietes; a expropriação de certos grupos capitalistas e dos bancos; o controlo operário da produção; a aliança dos operários e camponeses; a luta contra o imperialismo e contra a guerra.

As reivindicações transitórias são válidas também para os países dominados pelo imperialismo, combinando as tarefas de libertação nacional com a tomada do poder pela classe operária, e igualmente para a União Soviética, onde se trata de ajudar as massas a fazer a revolução política perante a alternativa: “ou a burocracia, tornando-se cada vez mais no órgão da burguesia mundial no Estado operário, derrubará as novas formas de propriedade e lançará o país de volta ao capitalismo; ou a classe operária destruirá a burocracia e abrirá uma saída em direcção ao socialismo”.

Para o marxismo, o Programa é um guia para a acção, não um dogma. Assim, o que foi considerado como “pouco provável” no texto de 1938, tornou-se recorrente após a Segunda Guerra Mundial: que, numa “combinação de circunstâncias excepcionais (guerra, derrota, afundamento financeiro, ofensiva revolucionária das massas etc.), os partidos pequeno-burgueses, inclusive os estalinistas, possam ir mais longe do que eles mesmos queriam na via da ruptura com a burguesia”. A revolução chinesa (1949) e, de outro modo, a revolução cubana (1959) foram exemplos dessa possibilidade, ao mesmo tempo que não asseguraram a permanência das conquistas obtidas com a expropriação do capital.

Para libertar as massas das velhas Direcções, que se tornaram num obstáculo à revolução, o Programa retoma a essência da política de frente única, ao propor que delas se exija sistematicamente: “Rompam com a burguesia, tomem o poder!”.

A transição na construção do Partido

Nos limites deste texto, não cabe explicar as bases políticas da crise de dispersão que atingiu a 4ª Internacional em 1952/1953, privada que estava de Trotsky, assassinado por um agente de Estaline em Agosto de 1940. Vamos apenas realçar que aqueles que ficaram fiéis ao seu Programa de fundação procuraram ligar-se às classes trabalhadoras e aplicar o método da transição também na construção da 4ª Internacional e das suas secções.

Pierre Lambert – dirigente da Secção francesa, cujo centenário de nascimento ocorre neste ano de 2020 – desempenhou um papel importante nessa elaboração. Militante da CGT clandestina sob a ocupação nazi, depois dirigente da CGT-FO, Lambert procurou convencer os seus camaradas sobre a necessidade de criar um quadro flexível que permitisse o trabalho comum com militantes de outras origens, em ruptura com o estalinismo e a social-democracia.

Uma elaboração que avançou através da discussão e da experiência, e que pode ser assim resumida: o Programa da 4ª Internacional foi confirmado pela História; logo, ele é a base para a construção do Partido revolucionário. Mas, perante a terrível crise de Direcção, o Programa não pode ser um ultimato dirigido aos que querem combater o imperialismo. Sobre a base do internacionalismo e da independência de classe, é preciso criar – em pé de igualdade com outros militantes – um quadro comum para o combate pelo socialismo.

A luta por partidos operários independentes e a criação de um quadro internacional para o debate e a acção contra o imperialismo, além de corresponder a uma necessidade premente, é também uma transição para a construção da 4ª Internacional e das suas secções.

O processo que levou à reproclamação da 4ª Internacional, em 1993, foi alimentado por experiências de construção ou defesa de partidos operários independentes em vários países. Em 1991, na Conferência Mundial Aberta de Barcelona, foi criado o Acordo Internacional dos Trabalhadores e dos Povos (AIT), expressando essa mesma linha da transição, que hoje se prolonga no Comité Internacional de Ligação e de Intercâmbio, criado na Conferência Mundial contra a Guerra e a Exploração, realizada em Argel em 2017. ´

É assim que, passados 82 anos da sua fundação, e no meio da mais brutal crise do capitalismo – acelerada e desnudada pela pandemia do Covid19 – a 4ª Internacional vive e luta!

Artigo de Júlio Turra no jornal “O Trabalho” – cuja publicação é da responsabilidade da Secção brasileira da 4ª Internacional (corrente do Partido dos Trabalhadores) – na sua edição nº 874, de 11 de Setembro de 2020.