
Trata-se de uma biografia de Estaline, em grande parte inédita, que estava a ser escrita por Trotsky quando foi assassinado a mando do biografado. A notícia saiu no jornal espanhol El País, a 29 de Outubro de 2017, aquando do centenário da Revolução Russa, e é da autoria dos jornalistas Bernard Marín e Jorge F. Hernandéz.
“Estaline divertia-se, na sua casa de campo, degolando ovelhas ou lançando querosene (petróleo) nos formigueiros e ateando fogo. Kamenev disse-me que, nas suas visitas de lazer aos sábados a Zubalovka, Estaline caminhava pelo bosque e divertia-se, continuamente, alvejando animais selvagens e assustando a população local. Tais histórias sobre ele, procedentes de observadores independentes, são numerosas. E, no entanto, não faltam pessoas com esse tipo de tendências sádicas no mundo. Foram necessárias condições históricas especiais antes que esses instintos obscuros encontrassem uma expressão tão monstruosa.”
Estas palavras fazem parte de uma biografia singular. Pela relevância dos seus protagonistas, duas das figuras proeminentes da Revolução Russa, divididas por uma das rivalidades mais marcantes do século XX. E porque o perfil ficou incompleto depois do retratado ter ordenado a morte do seu biógrafo. Estaline, a obra que Leon Trotsky escrevia quando foi assassinado por Ramón Mercader, no México, em Agosto de 1940, permaneceu adormecida durante mais de sete décadas. E, depois de muitas peripécias, mutilações e acréscimos, volta a ver a luz num volume de quase mil páginas, em grande parte inédito, coincidindo com o centenário da chegada dos Bolcheviques ao poder.
A história deste livro merecia a publicação de outro que a contasse. Trotsky, exilado no México após ter o asilo rejeitado em vários países, sabia que estava condenado pelo líder da União Soviética, Josef Estaline. Mas não tinha interesse particular em escrever sobre a vida do seu antigo camarada. “Não foi uma vingança. Escrever essa biografia não estava nos planos do meu avô. Estava concentrado em acabar outra, sobre Lenine”, afirma Esteban Volkov, neto do revolucionário, em conversa por telefone da Cidade do México, onde mora. “Mas precisava de dinheiro e a editora Harper & Brothers, de Nova York, fez uma oferta generosa”.
Volkov, prestes a completar 92 anos, tem sido durante décadas o guardião da memória do seu avô. Também é o director da Casa Museu Leon Trotsky, entre cujos muros o revolucionário foi assassinado, em Agosto de 1940, por um golpe de uma picareta de alpinismo do agente estalinista Ramón Mercader. O mesmo cenário onde será apresentada a versão em espanhol do livro, publicada pela editora mexicana Fontamara, no dia 11 de Novembro, coincidindo com o aniversário da chamada “Revolução de Outubro” que, por diferenças entre os calendários gregoriano e juliano, ocorreu em Novembro para o resto do mundo. A obra foi publicada há um ano em Inglês, por uma editora marxista de Londres, e depois foi traduzida para o Italiano e o Português, mas a notícia não teve repercussão nos grandes meios da Comunicação Social.
SANGUE SOBRE PAPEL
A biografia mais transcendental de Joseph Vissarionovich – tristemente ainda celebrado por alguns pelo seu apelido: Estaline – é um retrato minucioso do diabólico ditador russo, em 890 páginas, escrito nada menos que por Leon Davidovich Bronstein, que conhecemos como Trotsky. Parece incrível que, ao ser publicado em Inglês, há um ano, não tenha sido manchete ou tido repercussão nas redes sociais nem nas mais diversas resenhas literárias. Vivemos em amnésias funcionais que creem saciar-se com 140 caracteres e onde, pelo menos, as duas últimas gerações só sabem algo de Leon Trotsky pelos filmes, postais, canecas e demais produtos que circulam desde que Frida Kahlo se transformou em marca registada.
A imensa biografia assinada por um dos principais líderes da Revolução Russa esmiúça, detalhadamente, a demência incrível de um sanguinário traidor dessa mesma Revolução: um comportamento que pareceria indescritível se não existissem milhares de documentos, fotografias (inclusive as alteradas “pelo bem da História”), depoimentos, sobreviventes das purgas, náufragos do Gulag, proscritos redimidos e seguidores arrependidos que, inclusive desde a primeira vitória bolchevique, deixaram registo do seu manancial de desgraças e um vasto rol dos seus crimes. Entre os parágrafos que Trotsky escrevia, de forma incansável, durante o seu exílio na sua frágil fortaleza de Coyoacán, estavam sobre a mesa os papéis que seriam a sua lápide, cuja redação se interrompeu quando Ramón Mercader cravou uma picareta de alpinismo no seu crânio.
Trotsky lutou com o enviado, sabendo que o seu mandante se encontrava sorridente no Kremlin, e talvez durante a sua agonia pensou que ao menos grande parte da escrupulosa biografia do seu executor e de quase toda a sua família, de milhões de seres humanos e de não poucas ilusões utópicas estava praticamente terminada. Tinha aceitado escrevê-la pelo atraente pagamento prometido por uma editora norte-americana, cujo tradutor a traduziu e editou mal, além de fazer emendas e acrescentar parágrafos da sua própria cabeça. Isso foi corrigido, e agora contamos com a publicação de um retrato do Diabo feito em prosa sobre papéis manchados de sangue.
A Harper & Brothers publicou uma versão incompleta do livro, em Inglês, em 1946. Antes não era possível, porque os EUA e a União Soviética eram aliados contra a Alemanha. Mas a viúva de Trotsky, Natalia Sedova, recorreu aos tribunais, sem êxito, para que fosse retirada. As suas objecções dirigiam-se, principalmente, contra o editor e tradutor da obra. “Fez uma edição deficiente do livro, com mutilações e vários acréscimos da sua cabeça, muito distantes do pensamento político do meu avô”, afirma Volkov. O próprio Trotsky nunca teve muita confiança no seu tradutor, e tinha-se indignado quando soube que ele entregara alguns originais a terceiros. “Parece ter ao menos três qualidades: não sabe Russo, não sabe Inglês e é tremendamente pretensioso”, escreveu numa carta ao jornalista norte-americano Joseph Hansen.
Mas uma parte da obra nunca chegou às mãos da Editora. Quando soube estar condenado, Trotsky enviou à Universidade de Harvard, nos EUA, muitos dos seus documentos para serem guardados. “Os arquivos saem esta manhã de trem”, escreveu o revolucionário, a 17 de Julho de 1940, um mês e três dias antes do seu assassinato. E lá se acumularam 20.000 documentos que ocupavam 172 caixas de artigos, fotografias e papeis manuscritos, dactilografados, traduzidos e originais, com uma grande quantidade de correcções que demonstravam como o seu trabalho era extraordinariamente meticuloso.
Capítulos inteiros do livro sobre Estaline permaneceram assim adormecidos até que, em 2003, o historiador galês Alan Woods começou a pesquisar a montanha de documentos para resgatar a versão mais ampla e íntegra possível do livro. E, depois de mais de 10 anos de trabalho, o resultado foi uma obra um terço mais longa do que o livro publicado na década de 1940, sem os acréscimos do primeiro tradutor e, agora sim, com a bênção da família de Trotsky.
Woods concorda com Volkov que Trotsky não queria escrever esse livro. “Mas, uma vez que se dedicou a isso, fê-lo conscienciosamente, com muita documentação e detalhes, inclusive do período mais desconhecido da vida de Estaline – a sua infância. Para qualquer leitor é um estudo psicológico fascinante”, diz de Londres, onde mora. O historiador é um membro activo da Corrente Marxista Internacional. Participou na luta contra o Franquismo, em Espanha, e foi um firme defensor da Revolução bolivariana e amigo pessoal de Hugo Chávez, ainda que nos últimos tempos tenha se distanciado da deriva do Governo venezuelano.
Os dirigentes do Partido Bolchevique eram, em geral, gente muito capacitada, e entre eles brilhava Trotsky, que dominava cinco idiomas e escrevia vários livros ao mesmo tempo. Estaline aparece, por outro lado, retratado pelo seu grande rival político como um homem de horizontes limitados. Esse perfil medíocre coincide com o feito por outros observadores, como o jornalista norte-americano John Reed, que na sua crónica “Os Dez Dias que Abalaram o Mundo” menciona o “Homem de Aço”, apelido de Estaline, apenas duas vezes, e Trotsky nada menos do que 67.
Mas, pelo que se conta no livro que agora será lançado, as qualidades de Estaline eram outras: a astúcia e a arte da manipulação. “A técnica de Estaline consistiu em avançar gradualmente, passo a passo, até à posição de ditador, enquanto representava o papel de um defensor modesto do Comité Central e da Direcção colectiva. Utilizou a fundo o período de enfermidade de Lenine para colocar indivíduos que lhe eram fiéis. Aproveitou-se de cada situação, de cada circunstância política, de qualquer combinação de pessoas para promover o seu próprio avanço na luta pelo poder e para alcançar o seu desejo de dominar os outros. Se não podia elevar-se a sua altura intelectual, podia provocar um conflito entre dois competidores mais fortes. Elevou a arte de manipular os antagonismos pessoais ou de grupo a novos níveis. Nesse campo desenvolveu um instinto quase infalível.”
No entanto, Woods não atribui ao carácter de Estaline a sua ascensão ao poder. “Tinha sido um menino maltratado pelo pai, rancoroso e com tendências sádicas. Mas nem todos os que são maltratados se tornam monstros. Como nem todos os artistas fracassados se tornam Hitler”. E propõe um argumento marxista para explicar a sua ascensão. “Em todas as revoluções há um período em que são necessários heróis, gigantes. Quando se chega a um período de declínio, são necessários medíocres. A degenerescência burocrática teria ocorrido com ou sem Estaline, porque a Rússia era um país isolado e atrasado. Mas, neste caso, a burocracia incarnou-se num personagem sanguinário.”
O livro pode ter acelerado o assassinato? Estaline estava muito bem informado sobre o que o seu rival fazia. A cada manhã tinha os últimos artigos de Trotsky sobre a sua mesa. E Volkov relembra como Robert Sheldon Harte – guarda-costas do seu avô a quem se atribui a traição que facilitou um primeiro atentado contra ele, em Maio de 1940 – lhe perguntava sempre sobre o andamento da obra. “Como qualquer criminoso tinha que eliminar as testemunhas”, diz Woods.
ESTEBAN VOLKOV: “UM DOS GRANDES CRIMES DE ESTALINE FOI MUTILAR A MEMÓRIA HISTÓRICA”
Esteban Volkov (nascido em Ialta, então União Soviética, em 1926), neto de Leon Trotsky e herdeiro do seu legado, prepara nestes dias uma sessão para comemorar o centenário da Revolução Russa, na Cidade do México, como presidente da Casa Museu onde o seu avô foi assassinado. Chegou ao México em 1939, para acompanhá-lo no seu exílio quando era adolescente, depois do seu pai ter desaparecido num Gulag e da sua mãe ter sido morta por capangas de Estaline. Ficou ferido num pé no atentado que o pintor David Alfaro Siqueiros organizou para acabar com a vida do revolucionário, em Maio de 1940, e poucos meses depois foi testemunha da agonia de seu avô após ser atacado por Ramón Mercader. Apesar dos terríveis acontecimentos que presenciou, mantém um espírito sereno e um humor invejável, e, aos 91 anos, diz que espera viver muito mais “para compensar todos os anos que Estaline tirou aos seus familiares”.
O senhor dedicou grande parte da sua vida e da sua energia para defender a memória do seu avô. O que o moveu a fazer isso?
Fui testemunha do seu assassinato e da campanha de calúnias e difamações da imprensa estalinista contra ele. Enquanto muitos se encarregavam de repeti-las, mil e uma vezes, para tentar transformá-las em verdades. Um dos maiores crimes de Estaline foi mutilar a memória histórica. Se é crime dar um mapa falso a um explorador que vai entrar na Amazónia, dar planos falsos à humanidade é um crime ainda mais grave, colocar uma venda nos olhos dos seres humanos entre profundos abismos é um dos piores crimes que se pode cometer.
Que valor tem a publicação dessa biografia de Estaline tantos anos depois?
Não era o livro que meu avô queria escrever, e fê-lo pressionado pelas dificuldades económicas. Mas é muito interessante, porque foi escrito na época de maior maturidade política de Trotsky e conta o contexto em que um personagem com as características de Estaline – que supera a escala de falta de ética de qualquer um – pode chegar ao poder. Não há dúvida de que foi um indivíduo sui generis, de uma crueldade como poucas vezes se viu na História. Personagens como Nero e Átila ficam pequeninhos ao seu lado. E por isso possivelmente acelerou a sentença de morte que tinha lançado contra o meu avô, quando soube que ele estava a escrever a sua biografia.
O que permanece do pensamento de Trotsky cem anos depois da Revolução Russa?
O meu avô deixou um arsenal de ideias políticas para mudar a sociedade. Para construir um mundo que vele pelo ser humano, e não pela ganância. Estudou a fundo o processo estalinista e a contra-revolução. E previu, com 70 anos de antecedência, a queda do totalitarismo burocrático na União Soviética.