O Covid e o “Job Reset” (reorganização do emprego)

Quando a epidemia de Covid começou a interromper as cadeias de abastecimento mundiais, os líderes das multinacionais não entraram em pânico. Os grandes patrões pensam com frieza.

Eles governam o mundo, mas da retaguarda. Como de costume, eles têm sido apoiados pelas suas empresas de consultoria para determinar a melhor estratégia. A crise é inevitável. O que deve ser feito para ganhar com ela?

Assim que o Covid apareceu, as consultoras Boston Consulting Group, KPMG, Pricewaterhouse Coopers, Bain ou McKinsey – que aconselham os líderes das multinacionais e orientam as suas decisões estratégicas (1) – apressaram-se a prescrever, mais ou menos, a mesma receita: reduzir custos; rever, nos mínimos detalhes, as cadeias de produção e a sua implantação mundial; redireccionar os investimentos para o digital; convencer os assalariados sobre as histórias fabricadas (“storytelling”) por comunicadores de serviços de recursos humanos.

A crise de Covid é vista como uma bênção por muitos “líderes” mundiais. Transferindo a responsabilidade das perturbações económicas para os próprios povos – acusados de serem os vectores do risco de infecção – a Covid tem, para alguns, virtudes milagrosas.

Aquando da publicação dos resultados financeiros de uma multinacional, os gestores explicaram-se, como de costume, perante uma plateia de analistas da Goldman Sachs, do Bank of America, da Merrill Lynch, e do Morgan Stanley… Os eminentes representantes do capital financeiro entraram em pânico quando a Administração dessa multinacional anunciou – devido ao colapso dos rendimentos ligado à crise sanitária – o cancelamento de dividendos? De modo algum. A vida real às vezes perturba certos padrões ou certas crenças. A questão dos banqueiros e analistas financeiros era: como sair mais forte da crise?

É claro que alguns grupos económicos têm enriquecido, como é o caso da Amazon, cujo rendimento líquido aumentou 84% em 2020. A empresa de consultoria Bain & Company congratulou-se, sem revelar o nome do seu cliente: “Depois de ter desenvolvido uma nova solução significativamente mais eficiente do que o melhor produto disponível, uma empresa de serviços farmacêuticos estava prestes a fazer o que as empresas fazem muito frequentemente: aplicar uma abordagem de preços convencional a um novo produto, perdendo assim uma oportunidade de ouro para obter mais lucro. Nós trabalhámos com a empresa para corrigir a situação (…). Como resultado, (ela) foi capaz de identificar oportunidades para aumentar, em 50%, a receita do lançamento da inovação, em três anos.”

Uma vez as medidas sanitárias terem sido adoptadas nas empresas, o assunto passou rapidamente para segundo plano. Em contrapartida, a propaganda continuou a ser desenvolvida até à overdose, com base principalmente na saturação (organizada) dos sistemas hospitalares e no enorme impacto económico da crise sanitária. Com que propósito? Para entender isto, temos que voltar ao essencial.

No início de Junho de 2021, terá lugar a “Cimeira Job Reset” do Fórum Económico Mundial de Davos. “Job Reset” (Reorganização do emprego): esta fórmula expressa a extensão da mudança desejada e organizada, pelas cúpulas do capital financeiro, para acelerar a “uberização” de toda a sociedade.

Os organizadores da Cimeira não escondem as suas intenções: “Do lado positivo, a pandemia tem acelerado tendências que se faziam esperar há muito tempo: a digitalização dos postos de trabalho e a economia das plataformas, a expansão do teletrabalho e o ensino virtual. Contudo, pela primeira vez nestes últimos anos, a criação de empregos começa a ficar para trás em comparação com a destruição de empregos – e este factor está prestes a afectar trabalhadores desfavorecidos com ferocidade particular.” Muito preocupados, desde o início da pandemia, “com o aumento do desemprego e da insegurança alimentar (o que) pode rapidamente transformar-se em agitação política, violência e conflitos”, eles apelam já ao reforço dos sistemas de repressão das populações.

“A FRANÇA ESTÁ SOBRE UM VULCÃO”. ELA NÃO É A ÚNICA

Para a empresa de consultoria Pricewaterhouse Coopers: “Os CEOs (Directores executivos) já estavam a fazer malabarismos face aos problemas de custos antes da epidemia de Covid-19.” Aliás, o meu patrão – dirigente de uma multinacional mundial – não mencionou o colapso da receita para justificar os milhares de cortes de empregos que veio anunciar. Ele até disse: “O plano de redução de custos não está relacionado com dificuldades económicas.” Surpreendente, não é? Tratava-se de um problema mais profundo: era necessário rever completamente a cadeia de valor e os métodos de trabalho, reorganizar as empresas subsidiárias e deslocalizar para países onde os salários são mais baratos.

Mas antes do Covid, as condições não estavam totalmente reunidas para fazê-lo. Pelo menos, à escala desejada. E por um bom motivo. Apesar das reformas realizadas nas últimas décadas, por todo o mundo, para enfraquecer os direitos sociais e sindicais, o equilíbrio de poder entre as classes não mudou substancialmente. Enquanto Elon Musk e Jeff Bezos, não sabendo mais o que fazer com a sua imensa fortuna, divertiam a galeria com projectos de viagens a Marte ou de uma colónia no espaço, ao mesmo tempo que milhões de seres humanos morrem de fome na Terra, a economia está-se a afundar na crise. Regimes políticos eram abalados por “degagismo” (rejeição dos regimes pelos povos dos respectivos países). Na Argélia, no Líbano, no Chile, em Hong-Kong,…, os povos levantaram-se, uns após outros, como que ligados por uma corrente comum, a qual não desapareceu. A classe operária e a juventude não foram esmagadas. “A França está sobre um vulcão”, e ela é não é a única.

A UTILIZAÇÃO DO COVID

O capital não inventou o Covid. Ele usou os impactos enormes do Covid na economia e nas empresas para tentar assegurar a modificação da relação de forças de que precisa desesperadamente para sobreviver e abrir novas perspectivas. Como escreve o jornal Atlantic Council, com sede em Washington: “Desde o início, a pandemia abriu caminho para o controlo do Hirak (2) pelo Regime argelino.” Até o jornal conservador alemão Die Welt não pode esconder os factos: “Durante a primeira vaga da pandemia de Coronavírus, em Março de 2020, o ministro do Interior fez um apelo – para fins políticos – a cientistas de várias instituições de investigação e universidades. Ele pediu aos investigadores do Instituto Robert-Koch e de outras instituições que estabelecessem um modelo matemático, com base no qual a administração do Ministério do Interior (…) queria justificar medidas duras contra o Covid.” O Poder amplificou ao máximo os efeitos da epidemia, com muitas campanhas na Comunicação social de uma amplitude jamais vista, para fortalecer a sua política de opressão, a começar pela restrição das liberdades e dos direitos. Surpreendentemente, militantes sinceros foram levados a acreditar que era para o seu próprio bem. Contudo, o capital e os seus representantes – a começar por Macron – não dão a mínima importância à saúde deles. Quando o meu CEO anunciou os milhares de cortes de empregos, ele concluiu o seu e-mail com estas palavras, que se tornaram famosas: “Cuidem-se!”.

FECHAR AS ESCOLAS PARA SE PROTEGER DO VÍRUS?

O Covid teve efeitos poderosos, quase transcendentais, em certas mentes que se puseram a aceitar o inaceitável. Até exigir o fecho de escolas para se proteger do risco de infecção, sem entender que o mundo de antes não existe mais e que o confinamento “sanitário” seria utilizado para acelerar o fecho permanente, parcial ou total, de sectores inteiros de escolas e universidades, bem como de empresas (3). A realidade é que a “uberização” da sociedade implica uma polarização extrema dos empregos (4), nomeadamente em relação aos baixos salários, e uma desqualificação em massa da população.

Um estudo do Cepremap (Centro para as Investigações Económicas e as suas Aplicações) recorda que: “Desde meados da década de 1990, o mercado de trabalho do sector privado francês sofreu uma forte polarização do emprego. (…) O ritmo da polarização dos empregos em França foi particularmente rápido (…) durante os anos que se seguiram à crise (de 2008), nos quais o número de empregos qualificados diminuiu consideravelmente. Não só a queda foi muito mais importante do que antes, mas aconteceu ainda mais rapidamente e num período mais curto.” E isso não teria impacto na Escola, sobre a qual os governos, desde há décadas, continuam a dizer-nos que ela se deve adaptar às necessidades das empresas?

O mundo mudou e é importante compreender isso. O capital só se protegerá a si próprio. Enquanto ele estiver no Poder, isso destruirá continuamente a Natureza. Os hospitais ficarão cada vez mais sem sangue e a Escola será reservada a uma elite. A miséria e as doenças vão atacar mais a população. São muito astutos aqueles que proclamam: “Primeiro, protegemo-nos! Confinamos e fechamos!” E se a epidemia ou epidemias estiverem apenas a começar? Ficaremos confinados para sempre?

Somente a luta de classes reduzirá o medo. Ela lançará as bases para a reconquista e a protecção das populações, a defesa de Escola e da Medicina, e de uma abordagem rigorosamente científica e fundamentada das infecções. Os mortos não são problema para o capital. Eles até se podem tornar numa vantagem e numa dádiva de Deus… se os dólares estiverem no fundo do caixão.

Como afirma a agência financeira Bloomberg: o Covid “atinge os pobres com muito mais força do que os ricos. Uma das consequências será a agitação social permanente, e até revoluções.” É aqui que começa a real preocupação do grande Patronato. E isto numa situação em que esta vontade manifesta de recusa Sistema por parte da classe operária e dos jovens não encontra, nas cúpulas dos sindicatos ou na maioria dos partidos políticos, o apoio que eles deveriam dar-lhes. E isso é o mínimo que podemos dizer.

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(1) Não apenas as multinacionais recorrem a essas consultoras, mas também as Administrações dos Estados para a gestão dos assuntos públicos.

(2) O “Hirak” é um profundo movimento nacional de rejeição do Regime militar em vigor na Argélia.

(3) A “surpresa divina” do Covid provavelmente está a chegar, para os patrões, com o teletrabalho. As economias gigantescas feitas na ocupação de escritórios continuam a surpreender e entusiasmar os CEOs.

(4) A polarização dos postos de trabalho refere-se à queda de postos de trabalho de qualificação intermédia e à sua concentração em dois extremos: num pólo, empregos pouco ou nada qualificados (com salários muito baixos); e, no outro pólo, empregos altamente qualificados e bem pagos.

Crónica de Alex Duboi publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 653, de 6 de Maio de 2021, do Partido Operário Independente de França.

Emprego com direitos

Em entrevista ao jornal Público, o Primeiro-ministro António Costa apresentou a proposta de Orçamento do Estado para 2021 dizendo que procura garantir os apoios e subsídios necessários para que “ninguém fique para trás” – slogan do Governo e de algumas forças políticas.  Nela, a propósito da proibição dos despedimentos, afirmou que “a nossa prioridade não é proibir despedimentos, é apoiar a manutenção do emprego”.

Será esta a resposta que os estivadores – que sofreram uma requisição civil, quando lutavam para preservar o seu posto de trabalho – esperam do Governo?

Será esta a resposta que os trabalhadores da Galp, em Sines – cuja Administração se desembaraçou dos trabalhadores com contrato a prazo e que faziam falta à empresa – esperam do Governo?

Que significará para os 1200 trabalhadores da TAP já despedidos, para as centenas de trabalhadores da Montepio na calha do despedimento, ou para os trabalhadores das cantinas das escolas que entraram em greve para garantir o trabalho perante a incerteza do seu futuro, no serviço público que asseguram, mas que é gerido por empresas privadas, “não dar  prioridade à proibição dos despedimentos”?

Os exemplos podem ser multiplicados, já que os níveis de desemprego (que já atingiu os 700 mil) sobem de forma vertiginosa, sobretudo entre os trabalhadores precários, ou entre os trabalhadores de empresas que utilizam a figura da reestruturação ou da falência. E são milhares as pequenas e microempresas à beira do colapso que não beneficiaram de qualquer apoio do Estado.

“Excesso de rigidez pode significar a perda de muitos mais postos de trabalho”

O excesso de rigidez – se fossem proibidos ou dificultados os despedimentos – voltar-se-ia contra a criação de emprego, afirmou o Primeiro-ministro.

Não é este o mesmo argumento de todos os governos anteriores, nomeadamente do governo de Passos Coelho / Troika?

Rigidez para quem trabalha e produz toda a riqueza; flexibilização, todas as facilidades e mordomias para quem se apropria dessa riqueza.

Liberdade de despedir e para conseguir mais-valia à custa de contratos a prazo, de bancos de horas, de destruição da contratação colectiva, de trabalho à experiência; eis os mecanismos constantes das leis anti-laborais, contidas no Código do Trabalho dos governos anteriores e as quais o actual Governo recusa reverter.

Estas são as leis responsáveis pelo processo de desregulamentação dos direitos laborais, de desorganização da vida das famílias, de destruturação da sociedade, permitindo ao Estado português atingir o défice zero, imposto pela União Europeia, ao mesmo tempo que o nosso país se tem mantido no quadro da situação da pobreza de uma grande parte da população trabalhadora, em virtude das baixas pensões de reforma, bem como dos baixos salários.

Uma economia e um emprego precário que, perante a crise sanitária, abanou e abana de tal maneira, que tudo ameaça colapsar.

Ao manter a liberdade de despedir e todas as leis que garantem ao capital sujeitar os trabalhadores portugueses às condições de trabalho que conhecemos, agravadas ainda mais a pretexto da pandemia, o que o governo do PS faz é manter o processo de desregulamentação e precarização do trabalho, em contraste absoluto com aquilo que se impõe fazer no nosso país.

Por mais persuasivo que seja o discurso de defesa das camadas mais desprotegidas, de apoio à criação de empresas com elevado valor acrescentado, por maior que seja o esforço na proposta Orçamental para acudir às situações de emergência, agravadas de forma exponencial pela pandemia, António Costa aposta na continuidade das políticas anteriores, agravadas com o teletrabalho e a “economia digital” desregulamentada.

Com esta política, este Governo desbarata, de forma inexorável, a mais importante conquista da Revolução de Abril: a geração de homens e de mulheres, com altas qualificações em todos os sectores, preparados para assumir o processo de reconstrução da economia nacional.

Esta geração tem capacidade para mudar o rumo do país e reatar com os processos positivos conseguidos pelas gerações anteriores, quando fizeram a Revolução de Abril. Nessa altura, também parecia ser impossível salvar empresas descapitalizadas e manter uma economia que assentava, em grande parte, na pilhagem das colónias. Os trabalhadores, os camponeses, os funcionários públicos, os profissionais de saúde, os professores,… foram capazes daquilo que poderia parecer “um milagre”. Foram feitas muitas reestruturações e fusões de empresas, não para despedir trabalhadores, mas sim para manter postos de trabalho com direitos.

Proibição efectiva dos despedimentos

Também agora é a necessidade dessa mobilização social e unida que está na ordem do dia, reatando com o processo aberto pela Revolução de 1974. O movimento pela proibição efectiva dos despedimentos, assente numa petição dirigida aos deputados da Assembleia da República, da iniciativa de quadros políticos e sindicais, vai nesse sentido. Por isso, os militantes do POUS o apoiam.

(1) Esta Petição pode ser assinada através do link https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT102662

Itália: greve na ArcelorMittal defende os empregos

FIOM

A siderúrgica ArcelorMittal aproveitou a pandemia para aumentar o número dos seus empregados na Itália em situação de desemprego técnico (redução da jornada de trabalho e de salários). Isso ameaça a continuidade dos contratos de trabalho. Em resposta, os trabalhadores da empresa iniciaram um movimento de greve, a 15 de Maio. E, no dia 18, realizaram uma manifestação sindical unitária em Génova, com distanciamento social e uso de máscaras. Em virtude da lei de emergência sanitária, organizaram um “desfile” até à Câmara municipal.

A empresa, que pretende fechar as suas sucursais em Itália, ameaça colocar todos os 1002 empregados em desemprego técnico, caso a greve não seja interrompida. Continuar a ler