A “CRISE CRÓNICA” DO CAPITALISMO

Nas últimas semanas, houve o colapso de alguns grandes bancos (primeiro nos EUA e, em seguida, na Europa – Suíça e Alemanha). Divulgamos uma análise feita pelos nossos camaradas de Espanha, de 20 de Março, com o título «NÃO SE TRATA APENAS DE UMA NOVA CRISE BANCÁRIA, É A “CRISE CRÓNICA” DO CAPITALISMO».

Na sexta-feira passada, dia 10 de Março, o Silicon Valley Bank (SVB) fechou. Dois dias mais tarde, domingo 12 de Março, o Departamento de Serviços Financeiros de Nova Iorque (NYDFS) dos EUA fecha o Signature Bank, sobre o qual existem suspeitas de ocultação de informação. Outros bancos parecem aproximar-se perigosamente da mesma situação, tais como o First Republic Bank, o Western Alliance, o Metropolitan Bank ou o Customer Bancorp, cujas acções na Bolsa caíram mais de 60%. na segunda-feira dia 13. De novo um turbilhão de crises bancárias, fortes quedas nos preços das acções… e pânico geral.

O SVB especializou-se no financiamento de novas empresas tecnológicas (na sua gíria, start-ups), que têm tido grandes receitas, entre outras causas pelo enorme investimento de capital de risco que nelas foi feito. A enorme liquidez do banco (fala-se em 175 mil milhões de dólares) foi largamente utilizada para comprar títulos da Dívida pública, cujo preço se afundou pelo aumento brutal das taxas de juro impostas pela Reserva Federal. Quando os principais clientes do banco levantaram massivamente o seu dinheiro, o banco teve de vender os seus títulos, incorrendo assim em perdas inicialmente estimadas em 1,8 mil milhões de dólares. Mas a espiral já estava em marcha e os levantamentos de depósitos bancários aumentaram abruptamente, até 42 mil milhões, em dez horas (em 2008, foram retirados quase 17 mil milhões de dólares do Washington Mutual, mas em dez… dias).

Face a esta situação, outras fracções do capital procuram fazer negócios, tais como o banco britânico HSBC, que comprou por uma libra esterlina a filial do SVB no Reino Unido.

Como em outras ocasiões, a crise impulsionará a centralização do capital. A Administração dos EUA está a tentar reagir: “Estamos a tomar medidas decisivas para proteger a economia dos EUA, mediante o reforço da confiança pública no nosso sistema bancário”, afirmam, numa Declaração conjunta, Jerome Powell, Janet Yellen e Martin Gruenberg – respectivamente, presidente da Reserva Federal, secretária do Tesouro e presidente da Corporação Federal de Seguros de Depósitos (FDIC). Estas medidas são apresentadas com o objectivo de evitar “resgates e custos para os contribuintes” e cobrir os depósitos bancários superiores acima do limite garantido de 250.000 dólares. Mas são dotados de 25 mil milhões de dólares para isso com o Programa de Financiamento a Prazo do Banco.

Será esta resposta suficiente, e quais serão as consequências? Trata-se de uma crise pontual de um banco menor, sem grandes efeitos, ou poderá desencadear um cataclismo como o colapso do Lehman Brothers em 2008? Quem pagará a factura?

Se este novo episódio fosse o que a propaganda afirma, poderia ser debatido apenas enquanto tal. Mas temos que encará-lo como um novo episódio de uma crise muito mais profunda, que vem de um período tão distante que as suas origens remontam a antes da crise que eclodiu em 2007-2008.

É uma espécie de crise crónica do capitalismo, no sentido de uma sucessão de crises sem períodos expansivos intercalados entre elas, já desde a que irrompeu virulentamente no início dos anos 1970. Uma “crise crónica” directamente ligada à inevitável tendência à queda da força motriz da acumulação capitalista, que é a rentabilidade, tal como explica Marx no terceiro livro de o Capital (de cuja terceira secção, em particular, recomendamos vivamente a leitura), formulando-a como a “Lei da Baixa Tendencial da Taxa de Lucro” (LBTTL).

Por isso, é claro que este episódio poderá eventualmente ser travado pela acção do Estado, mas sem modificar as causas últimas que o explicam e que levam a discussão para outro terreno.

Porque houve esta falência e o que é que ela significa?

Acontece agora como em 2007, quando o incumprimento das hipotecas subprime (1) foi o detonador da crise, mas não a sua causa de fundo: a falência do SVB e as suas consequências não se devem simplesmente a problemas de liquidez devido à queda do valor de certos títulos, mas são muito mais profundas e certamente não se vão solucionar com uma intervenção pontual por parte do Governo.

Em primeiro lugar, há que considerar que este modelo de negócio bancário está ligado a um sector empresarial tão volátil e instável como o das startups e os Fundos de capital de risco (já se acumulam mais de 250.000 despedimentos desde finais de 2022). Perante as dificuldades de valorização do capital nas actividades produtivas de mais-valia, enormes massas de capital estão a ser investidas em actividades especulativas. A razão de fundo reside nos problemas de rentabilidade que Marx detectou (a LBTTL). Por isso mesmo, ele expõe-nas antes das questões financeiras, que não são a causa dos problemas, mas uma resposta às mesmas (a lei da rentabilidade acima referida), que é certamente desesperada. Razão pela qual é tão frágil a ideia da “financeirização” (injecção de dinheiro) que, se contivesse o colapso, tornaria possível resolver os problemas.

Tão frágil porque, mais uma vez, se apela para a ilusória ideia de um capitalismo bom, que seria viável limitando o capital mau (especulativo) e promovendo o capital bom (produtivo). Como se não existisse uma lógica geral que rege a acumulação de capital, presidida pela conformação do capital financeiro que integra todas as actividades possíveis de negócio, desde as produtivas até às especulativas, passando pelas comerciais, etc.

Em segundo lugar, assistimos à conivência dos Estados com estas práticas, proporcionando-lhes cobertura legal. Após a crise de 1929, Roosevelt promulgou a Lei Glass-Steagall para conter, até certo ponto, a especulação financeira. Mas em 1999 Clinton acabou com ela, com a Lei Gramm-Leach-Bliley e a nova lei que Obama promoveu em 2010, a Lei Dodd-Frank, foi tão modesta que não inverteu a situação.

Além disso, Trump modificou alguns aspectos na linha de uma maior desregulamentação. Por isso, o SVB teve as mãos livres para certas práticas, ao não se considerar “banco sistémico” (o que não era verdade, porque o seu tamanho tinha aumentado de 50 mil milhões para 250 mil milhões e já tinha um balanço positivo de 220 mil milhões).

Quais são as consequências disto? Por um lado, ainda não é claro que existam outros bancos que possam incorrer em situações similares, em particular pelos laços que mantiveram com o SVB. Por outro lado, já se sabe que existe uma factura a pagar. E mesmo que Biden tenha declarado que não vai ser paga principalmente pela classe trabalhadora (ele disse contribuintes), há diferentes formas de o fazer, com toda a segurança, se repercutirá sobre a maioria da população: de uma forma ou de outra – pois se trata de despesas públicas que têm de ser financiadas – quer seja mediante emissão monetária (que nunca é realizada para qualquer fim social), quer seja através de outras políticas de ajustamento permanente exigidas pelo próprio capital financeiro, cujas práticas provocam situações como a que estamos a tratar. Não nos devemos esquecer que o SVB era o 16º do país (EUA) e que as conexões com outras entidades têm amplas ramificações que se estendem por todo o mundo.

E na Europa, o que se passa?

Estas ramificações estão a causar uma onda de choque, que se reflecte na rentabilidade de uma infinidade de capitais que se deterioram por toda a parte. Por exemplo, os seis maiores bancos espanhóis perderam, na segunda-feira (13 de Março), quase 12 mil milhões de euros na Bolsa de valores.

O chefe do Governo, Pedro Sánchez, declarou na quarta-feira, dia 14 de Março, que o sector bancário em Espanha tem níveis de liquidez e solvência “acima da média”. Mas a situação na Europa não está, de modo algum, blindada e logo nessa altura produziu-se o colapso do banco Crédit Suisse na Bolsa de valores, que em poucas horas perdeu 30% da sua capitalização bolsista. No dia seguinte, quinta-feira, dia 15 de Março, o banco anunciou que tinha contraído um empréstimo de cerca de 50 mil milhões de euros ao Banco Central suíço para “reforçar, de forma preventiva, a sua liquidez”. Tudo isto teve uma correspondente onda de choque que, entre outros efeitos, provocou uma queda de 4% no IBEX 35 (2), acumulando os principais bancos espanhóis perdas de 24 mil milhões de euros (o Banco Sabadell perdeu 1,8 mil milhões, 24,5% do seu valor).

Evidentemente, as autoridades monetárias europeias declararam imediatamente que isto nada tem a ver com a crise dos EUA. Mas o FMI vem anunciando o risco de um colapso financeiro do tipo do que houve em 2007-2008.

Actualmente, existem no mundo enormes massas de capitais que procuram oportunidades de investimento e a esfera financeira especulativa é um dos seus principais destinos, ainda que também o sejam os sectores que se privatizam ou são negligenciados (veja-se, por exemplo, a entrada massiva de Fundos de investimento na Educação em Espanha, particularmente em Universidades e na Formação profissional).

Toda esta situação, típica das crescentes contradições do capitalismo, é agravada pelas consequências da pandemia, da guerra na Ucrânia e de todas as políticas criminosas que lhe estão associadas, incluindo as sanções. É a própria expressão da decomposição do modo de produção capitalista.

Claro que há uma saída, mas não no Sistema capitalista!

Desde o final de 2020, o FMI tem alertado repetidamente para o risco de uma explosão social. E não se engana. A devastação social provocada pela sobrevivência do capitalismo é terreno fértil para um crescente mal-estar que se exprime, constantemente, de uma forma ou de outra. Porque a classe trabalhadora pode identificar-se a um ser vivo que, como tal, tem instinto de sobrevivência e se mobiliza para sobreviver. Estendem-se assim, por todo o mundo, as expressões de resistência. Os planos do capital não podem ser implementados devido a esta resistência.

É o caso do programado desmantelamento do Sistema público de pensões (de aposentação) no Estado espanhol, que não pôde ser implementado, salvo de forma marginal, precisamente devido a esta resistência. De facto, a última medida do Governo foi um passo atrás, que só pode ser explicado pela constante mobilização da classe trabalhadora, promovida pelas plataformas em defesa do Sistema público de pensões. É o caso da população grega que se ergueu perante um trágico acidente de comboio, que causou 57 mortos devido ao total abandono da rede ferroviária, em resultado dos cortes orçamentais. É o caso da mobilização na Alemanha contra a guerra, bem como noutros países. E é também o caso, entre muitos outros, das gigantescas mobilizações em França contra o ataque às pensões (de aposentação) pelo governo de Macron, cujas políticas não têm a aprovação de 80% da população.

O capital tem pânico de todas as mobilizações, consciente de que nada garante que será capaz de aplicar um ataque mais profundo contra as condições de vida da classe trabalhadora, como aconteceu após a eclosão da crise de 2007-2008.

Porque o problema hoje não é um caso particular de crise bancária, nem esta ou aquela medida. O problema é a sobrevivência do capitalismo e da barbárie crescente que isso implica.

Nós temos a posição literalmente oposta: temos toda a confiança em que a mobilização da classe trabalhadora tornará possível uma saída para os problemas e, como 4ª Internacional, mantemos o nosso compromisso incondicional com ela.

CARTA SEMANAL DO COMITÉ CENTRAL DO POSI (Partido Operário Socialista Internacionalista, Secção da 4ª Internacional em Espanha), Nº 931, de 20 de Março de 2023

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(1) Subprime é um crédito de risco, concedido a um credor que não oferece garantias.

(2) O IBEX-35 é índice bolsista das 35 maiores empresas cotadas na Bolsa de Madrid.

Ainda sobre a COP27: Acontece com o clima como com tudo o resto…

O capital financeiro está a ficar impaciente. O jornal francês de negócios L’Opinion (22 de Novembro) coloca como manchete: “O FMI (Fundo Monetário Internacional) alerta sobre a discrepância francesa” e escreve: “O FMI, na segunda-feira, exortou o Governo francês a realizar reformas estruturais, tais como as das pensões de aposentação e o seguro de desemprego”, juntando à lista outras “reformas” a serem implementadas sem demora: “racionalizar as despesas fiscais (…), racionalizar os efectivos da Função Pública (…), racionalizar as despesas com a Educação (…)”. “Racionalizar” significa: cortar com um machado.

O FMI está bem ciente da situação política em França, das condições para a reeleição de Emmanuel Macron, da ausência de uma bancada maioritária na Assembleia Nacional, bem como da rejeição pela grande maioria da população francesa de que ele é objecto. Contudo, é com pleno conhecimento dos factos que o FMI apresenta as suas recomendações.

REFORMA DAS PENSÕES: “O CORAÇÃO DO PROBLEMA”

Lúcido, o diário L’Opinion aponta o que considera ser o cerne do problema: “será que o Governo conseguirá terminar a sua reforma do seguro de desemprego e levar a cabo uma ambiciosa reforma das pensões?”, acrescentando através da voz de Christian Saint-Etienne (1): “O grande erro de Emmanuel Macron é não ter concluído uma reforma paramétrica das pensões em 2019. Estamos hoje a pagar por esse erro”. E concluiu: “É o Velho Continente, como um todo, que está ameaçado de sofrer com isso”.

Foi nesta situação que a 27ª Conferência Internacional das Nações Unidas (ONU) sobre Alterações Climáticas – conhecida como COP27 – foi realizada durante duas semanas, de 6 a 20 de Novembro, em Sharm el-Sheikh, no Egipto.

Numa altura em que milhões de trabalhadores em todo o mundo estão a sofrer as consequências da “inacção climática”, que afecta principalmente as populações mais pobres; numa altura em que protestos sobre o clima estão a ter lugar em todos os continentes, mobilizando em particular a geração mais jovem preocupada com o seu futuro – qual foi o resultado dessa grande “Conferência internacional”?

COP27: “OS EUA TERÃO DIFICULDADE EM VALIDAR”…

O jornal francês de negócios Les Echos (21 de Novembro) congratula-se com aquilo que considera ser um “avanço histórico” – a criação de um novo Fundo dedicado a “perdas e danos”, “que se refere aos danos irreversíveis causados pelo aquecimento global em países «particularmente vulneráveis»”. Mas o mesmo diário modera imediatamente o seu tom ao escrever: “mesmo se os contribuintes e os beneficiários ainda não estão definidos”. E acrescenta: “Os EUA (…) terão dificuldade em validar qualquer contribuição”.

Supostamente constituído para financiar a reconstrução de infra-estruturas destruídas pelas alterações climáticas ou perdas agrícolas em países pobres, este Fundo “é actualmente financiado ao nível de 210 milhões de euros. 170 milhões provenientes da Alemanha, 60 milhões virão da França (ao longo de 3 anos)”. Por outras palavras, praticamente nada.

“O APOIO PÚBLICO AOS COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS QUASE DUPLICOU EM 2021”

Inversamente, como sublinha o jornal Libération (21 de Novembro), “o apoio público global aos combustíveis fósseis, dado pelas 51 maiores economias do mundo, quase duplicou em 2021, atingindo a quantia astronómica de 700 mil milhões de euros, e espera-se que continue a crescer em 2022, de acordo com a OCDE”.

Mas é provavelmente o editorial do jornal patronal L’Opinion (21 de Novembro) que melhor resume estas duas semanas de discussões dos líderes mundiais: “Em suma, nada se faz. O que é importante é comunicar que se chegou a um acordo. Parece que isto é o que conta a partir de agora nestas grandes-missas organizadas nos quatro cantos do mundo (…) e que são implacavelmente concluídas com um texto que permite a todos salvar a face, sem sujar muito nenhum dos restantes. Este triste espectáculo vai voltar a acontecer dentro de um ano, e num palco principal: a COP28 terá lugar no Dubai, nos Emiratos Árabes Unidos, um dos emissores de CO2 per capita mais elevados do mundo.”

TRATA-SE DA PRÓPRIA NATUREZA DO SISTEMA CAPITALISTA

Acontece com o clima o que se passa com tudo o resto: os governos – submetendo-se aos ditames do capital financeiro – não só não podem resolver os problemas colocados pelas alterações climáticas, como não querem fazê-lo, tal como esta COP27 demonstrou mais uma vez. Trata-se da própria natureza do sistema capitalista, que já foi analisada muitas vezes no passado (2).

Pará-los, na “inacção climática” como no resto, a começar pela guerra na Ucrânia que serve de sinistro pretexto para a guerra social (inflação assassina, “reforma” do seguro de desemprego, “reforma” das pensões), é a prioridade para todos aqueles que pretendem defender os interesses da população trabalhadora.

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(1) Christian Saint-Etienne é membro do Cercle des économistes (Círculo dos Economistas) e é professor titular da cadeira de Economia industrial no Conservatoire National des Arts et Métiers (Conservatório Nacional das Artes e Ofícios).

(2) Já em 1843, Friedrich Engels descreveu os efeitos do mecanismo infernal que, sob o regime capitalista, nunca cessará: “A luta do capital contra o capital, do trabalho contra o trabalho, do solo contra o solo, torna a produção febril. Todas as relações da Natureza e da razão estão invertidas. Nenhum capital pode fazer frente à concorrência de outro se a sua actividade não for levada até ao ponto mais alto. Nenhuma terra pode ser cultivada, de forma rentável, se a produtividade não for constantemente aumentada. Nenhum trabalhador pode prevalecer sobre os seus concorrentes se não dedicar todas as suas forças ao trabalho. De um modo geral, só se pode manter o que se tem na luta competitiva ao preço do máximo esforço, pelo sacrifício de todos os objectivos verdadeiramente humanos.” (Esboço de uma Crítica de Economia Política [1843-1844], publicado por Allia, Julho de 1998).

Crónica política, da autoria de Pierre Valdemienne, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” Informações operárias – nº 733, de 23 de Novembro de 2022, do Partido Operário Independente de França.

Alemanha: Die Link (A Esquerda) em profunda crise

À esquerda, Oskar Lafontaine (ex-Secretário-Geral do Die Link) que acaba de sair desse Partido, e ao centro Sarah Wagenknecht (líder da oposição ao actual Secretário-Geral, Gregor Gysi).

Em 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, os prisioneiros políticos sobreviventes nos campos de concentração da Alemanha escreveram manifestos. E não apenas no campo de Buchenwald, um manifesto de militantes trotskistas, que é bem conhecido. Existem também outros manifestos, de outros campos, escritos por militantes do PC, sindicalistas, militantes do SPD. Estes diversos manifestos têm, pelo menos, duas coisas em comum: por um lado, estabelecem claramente a ligação entre capitalismo e fascismo e colocam a questão da expropriação do capital; e, em segundo lugar, proclamam – “Nunca mais fascismo, nunca mais guerra!”. “Nunca mais guerra” é aquilo que chamamos, na Alemanha, “o juramento do povo alemão”.

De facto, existe – desde a Segunda Guerra Mundial e o fascismo – um pacifismo profundamente enraizado na população alemã. Isto teve um efeito profundo na situação política do pós-guerra e teve consequências a vários níveis. Por exemplo, o pacifismo das massas não é alheio ao facto de o Exército alemão, o Bundeswehr, ser ridiculamente pequeno e fraco em relação ao peso económico da Alemanha e, especialmente, após a queda do Muro em 1989, também em relação ao peso político do imperialismo alemão. Poder-se-ia continuar: por exemplo, esta situação também fez abrandar, durante décadas, o parasitismo para o qual a corrida aos armamentos, a economia de guerra, arrasta toda a economia.

Continuemos: este pacifismo das massas foi expresso ao ar livre, em manifestações de milhões nas ruas, no final dos anos 70 e início dos anos 80, quando os Norte-americanos, no contexto da Guerra Fria, quiseram instalar os famosos mísseis “Pershing”, em solo alemão, a fim de atacar a Rússia. Houve enormes manifestações por toda a Alemanha, as maiores manifestações desde a Segunda Guerra Mundial, nomeadamente para as bases norte-americanas – locais onde os EUA queriam instalar estes mísseis.

A 27 de Fevereiro de 2022, três dias após o ataque de Putin à Ucrânia, o chanceler social-democrata Scholz fez um discurso no Parlamento alemão, o Bundestag. Neste discurso histórico, anunciou que não só aceitaria a exigência dos EUA de aumentar o Orçamento militar para 2% do PIB, como também investiria 100 mil milhões de euros num Fundo especial para fazer da Bundeswehr “o maior Exército da União Europeia”. Esta é uma verdadeira ruptura política, uma ruptura com o “juramento do povo alemão” e a mais total subordinação às políticas do imperialismo norte-americano e da NATO.

No próprio dia do discurso de Scholz, 500 mil pessoas manifestaram-se em Berlim contra a guerra; e, nos dias seguintes, 140 mil em Hamburgo, 120 mil em Frankfurt, etc., manifestações muito massivas em todo o lado. Foi importante, muito importante.

Mas, o facto político mais importante foi que – nesse mesmo dia – a deputada do partido “Die Linke” (A Esquerda), Sarah Wagenknecht, e sete deputados do seu Partido, emitiram uma declaração conjunta, condenando Putin e o seu ataque, mas rejeitando totalmente o Orçamento de 100 mil milhões para a Bundeswehr e a política da NATO e dos EUA. É de notar que Gregor Gysi, líder histórico do Die Linke, quis levar – também nesse dia – o seu partido a assinar uma Declaração conjunta com o governo SPD-Verdes-Liberais e o partido burguês CDU, aceitando o rearmamento de 100 mil milhões de euros, abandonando assim as posições históricas do Partido. Sarah Wagenknecht e os seus colegas deputados estão a resistir, a crise do Die Linke é total.

É uma grande convulsão na Alemanha, o parêntesis iniciado em 1945 está a ser fechado. O imperialismo norte-americano quer tirar partido da guerra na Ucrânia para esmagar os seus concorrentes no mercado mundial. Biden exige que a Alemanha deixe de importar gás e petróleo russos. É importante saber que a Alemanha, especialmente a sua indústria, depende em 59% do gás e petróleo russos, que é comprado a baixo preço e transportado através dos gasodutos “Nordstream” para a Alemanha.

O imperialismo norte-americano quer transformar a Alemanha num “campo de batatas”, como previa o famoso Plano dos EUA (elaborado por Morgenthau, em 1945). Isto não é, de forma alguma, um exagero. Há alguns dias, economistas publicaram um estudo explicando que fechar as “torneiras russas” mergulharia a Alemanha na maior crise desde a República de Weimar (que vigorou entre 1919 e 1933), provocando imediatamente uma queda do PIB em cerca de 13% e atirando 6 milhões de trabalhadores para o desemprego. Ao tentar esmagar o seu concorrente alemão, o imperialismo norte-americano está a tentar esmagar o proletariado alemão, que tem, apesar de todos os ataques, algumas das conquistas mais importantes na Europa.

O parêntesis de 1945 está a ser fechado, isto é: ou o imperialismo norte-americano consegue transformar o país num “campo de batatas”, impondo a marcha em direcção à barbárie; ou os trabalhadores se mobilizam para expropriar o capital – uma questão que foi colocada, sem poder ser resolvida, com a queda do Muro de Berlim e, portanto, da burocracia estalinista – com o início da revolução alemã.

A 3 de Junho de 2022, quando Scholz colocou à votação no Bundestag o Orçamento de 100 mil milhões de euros para a Bundeswehr, os dirigentes do SPD, Gregor Gysi do Die Linke e a maioria das direcções sindicais capitularam e submeteram-se ao ditame dos EUA, ao “suicídio”. Mas 22 deputados do Die Linke, liderados por Sarah Wagenknecht, mas não Gregor Gysi, e 9 deputados do SPD, votaram contra.

Estes 31 deputados salvaram a honra do movimento operário alemão!

A 3 de Junho de 2022, eles foram 31 no Parlamento alemão. A 3 de Dezembro de 1914, no início da Primeira Guerra Mundial, quando os dirigentes do SPD aceitaram os créditos de guerra do Kaiser, apenas um deputado votou contra, apenas um. Foi Karl Liebknecht, filho de um dos fundadores do SPD, Wilhelm Liebknecht, um advogado de profissão, mas sobretudo um internacionalista e revolucionário socialista.

Sarah Wagenknecht mantem-se firme com os seus camaradas e vai mais longe. Juntamente com 85 líderes sindicais e deputados do Die Linke, lançou um apelo “Para uma esquerda popular”. Claro – isso é óbvio – inspiraram-se em Jean-Luc Mélenchon e a União Popular e a sua política de ruptura em França. 6.400 militantes já assinaram esse apelo. Sarah Wagenknecht e os primeiros signatários querem convocar um Congresso dos signatários deste apelo, em Outubro, para ir mais longe. Os nossos camaradas na Alemanha estão empenhados neste processo.

Não sabemos com que ritmos e até onde Sarah Wagenknecht e os seus camaradas querem ir na ruptura com o imperialismo e com a Direcção de Gysi que a ele se submete.  Mas sabemos que este caminho que começaram é o caminho da resistência, o caminho da ruptura, que centenas de milhar de militantes operários da Alemanha procuram e querem tomar. E lembremos que, alguns anos após o voto de Karl Liebknecht, no final da Primeira Guerra Mundial, começou a revolução alemã de 1918/1919.