Não é certamente um produto do acaso, nem é fortuito: o Governo aprovou recentemente o projecto de Orçamento do Estado para o próximo ano, que entrou no Parlamento a 13 de Outubro.
Este Orçamento foi descrito, pelos porta-vozes oficiais, como “o mais social” da História. Mas, na realidade, ele é absolutamente “subsidiário” dos Fundos europeus (designados por “Bazuca”, em Portugal – NdT).
As direitas franquistas bradam aos céus contra aquilo que definem como um desperdício de dinheiro. O Patronato manifesta as suas reservas e os líderes das duas grandes confederações sindicais estão satisfeitos (não se percebe porquê), enquanto as federações dos trabalhadores do sector público anunciam mobilizações face a um anunciado aumento salarial, imposto sem qualquer negociação, que é apenas metade da taxa de inflação. E, em simultâneo, os mais de dois milhões de trabalhadores que auferem o salário mínimo receberam um aumento ainda menor este ano, e apenas durante três meses.
Apesar de se vangloriar com o Orçamento, o Governo está impotente face ao aumento dos preços da electricidade, que agora custa sete vezes mais do que há um ano atrás. Com este preço, milhões de pessoas não poderão ligar o seu aquecimento neste Inverno.
Ao mesmo tempo, a Magistratura deste país, cuja matriz franquista ninguém nega – alguns até se reclamam dela abertamente – está a preparar o “branqueamento” do Rei Emérito (tudo parece indicar que este era o verdadeiro objectivo da investigação aberta pelo Ministério Público, que se diz “anti-corrupção”). Isto está, sem dúvida, a ser feito com a colaboração de todas as instituições do Estado.
Ao branquearem o pai, estão a tentar estabelecer o filho, mesmo correndo o risco de isso aparecer, à maioria da população, como a confirmação de uma realidade: pode-se enriquecer ilicitamente durante anos e nada acontece – basta chamar-se Bourbon.
É evidente que a chamada “Justiça” não é a mesma para todos. Enquanto iliba o Bourbon (como ilibou, violando toda a jurisprudência, a Infanta Cristina de Urdangarín), persegue Puigdemont por toda a Europa, depois de perseguir mais de 300 sindicalistas, mantém a perseguição de mais de 3 mil cidadãos da Catalunha, acaba de condenar Alberto Rodríguez – deputado da Unidas Podemos – sem outra prova senão o testemunho de um polícia…
Consenso em defesa do Regime
E que relação – dirão alguns – tem uma coisa a ver com a outra? Bem, é muito fácil: a algazarra em torno do Orçamento permite, sem dúvida, ocultar o consenso em defesa do Regime que une o Governo com os partidos franquistas.
Mas a defesa do Regime tem consequências sociais e também em relação às liberdades democráticas. A defesa dos postos de trabalho, dos salários, das pensões de aposentação, do direito à Saúde e à Educação pública choca-se com as instituições deste Regime, com o poder da Igreja Católica financiada com mais de 6 mil milhões por ano, com todo este Regime corrupto – defensor do capital financeiro, opressor dos povos, contínuo da NATO e das suas aventuras militares contra os povos e guardião das instituições herdadas do Regime de Franco, como é caso do aparelho judicial.
Não é por acaso que esta Justiça, que quer amnistiar o Bourbon, é a mesma que persegue sindicalistas, Catalães e concede perdões aos bancos.
É a compreensão destes interesses ilegítimos partilhados que dá tanto vigor à mobilização dos reformados, a qual – ao exigir uma auditoria às contas da Segurança Social – está a tornar visíveis as falcatruas do Regime, a sua política de pilhagem dos Fundos dos trabalhadores, inseparável do seu carácter alheio e contrário à soberania do povo.
Se o Governo decidiu colocar-se ao serviço destes interesses inconfessáveis, não serão as esmolas europeias (por outro lado, carregadas de contrapartidas sociais, tais como uma nova reforma das pensões de aposentação ou a manutenção das leis laborais) que o irão salvar.
Quem quer que esteja no Governo, os direitos defendem-se.
Editorial do periódico Información Obrera – Tribuna livre da luta de classes em Espanha – nº 362 (Suplemento) de 14 de Outubro de 2021.
É difícil encontrar um país onde a Mensagem de Natal do Chefe de Estado (neste caso, o Rei) deixe suspensas do seu discurso as principais forças políticas e sociais, bem como os meios de Comunicação social. Pareceria uma anomalia se não tivéssemos em conta o papel da instituição monárquica como pedra-angular de todas as instituições do Estado e como representante do aparelho de Estado herdado do Regime de Franco. Como é sabido – e não podemos deixar de repetir – o Estado e as suas instituições não são neutras, nem estão ao serviço do conjunto da cidadania. Estas instituições são o produto de relações de classe contraditórias e representam os interesses de uma minoria – em concreto, os detentores do grande capital – ao mesmo tempo que preservam os privilégios da herança franquista.
O facto de, no quadro destas instituições, os trabalhadores e o povo terem conseguido, após uma longa luta, inserir conquistas democráticas ou sociais não altera o carácter das instituições, e especialmente da Coroa.
O conjunto das instituições do Estado – o Regime – tem como fio condutor a Coroa, a sua Corte, as suas relações com as outras instituições: o Exército, o Sistema judicial, as Forças de segurança, a alta Administração do Estado, a própria Igreja Católica (cujos privilégios estão blindados na respectiva Concordata) e a sua identificação com os interesses das grandes empresas, dos bancos, do Patronato…
A Coroa é, ao mesmo tempo, uma agência subsidiária do imperialismo mundial, ao qual assegura o seu apoio militar – com as bases de Rota e Morón, e a defesa dos seus interesses financeiros através da sua participação em instituições internacionais: a OMC, a UE, o FMI…
É por isso que a relação da Coroa com os trabalhadores e o povo, o seu grau de aceitação ou não – o que é concretizado no apoio à Constituição de 1978 – é fundamental para manter a “estabilidade” do Estado, necessária para que os capitalistas possam explorar (extrair a mais-valia), em melhores condições, os trabalhadores e para que os direitos do povo sejam contidos (ou mesmo espezinhados) no quadro de um Regime que é baseado num sistema autonómico que não é, de forma alguma, um reflexo da satisfação destes direitos, mas a base da divisão, que suscita confrontos entre eles para permitir a sobrevivência da Monarquia.
Annus horribilis após annus horribilis
Desde Abril de 2012, quando Juan Carlos I partiu a anca, numa caçada aos elefantes no Botsuana, todo o edifício dos meios de Comunicação Social – construído para enganar o povo sobre a natureza da Coroa e o carácter do Rei – começou a desmoronar-se. O “Rei campestre” foi-se convertendo, aos olhos de uma parte crescente da população, em Juan Carlos I o angariador de “comissões”. Em Junho de 2014, ele teve de abdicar acossado pela corrupção e pelos escândalos, mas isso não parou um processo em que – aos olhos da maioria – a própria existência da Monarquia era questionada. De nada serviu a defesa sistemática que a grande imprensa e uma parte dos intelectuais têm feito do Rei. As primeiras fissuras em massa ocorreram, desde o Movimento dos Indignados, de Maio de 2010, passando pelos partidos republicanos catalães e bascos. Isto levou a uma furiosa ofensiva mediática, policial e judicial para afundá-los e/ou desacreditá-los.
Devemos também salientar o confronto aberto do seu sucessor, Filipe VI, com o povo catalão – espancado pelas suas Forças policiais – a 1 de Outubro de 2017, na tentativa de impedir um voto democrático, povo contra o qual o Monarca incitou o aparelho judicial, no seu infame discurso de 3 de Outubro.
Queiramos ou não, a questão da Monarquia está no centro e, com ela, não é simplesmente a forma de Estado, mas é o conjunto da estrutura, e os interesses que ela defende, que estão em jogo. Queiramos ou não, os debates de imprensa são sobre o facto de que o Rei, na sua Mensagem de Natal, não ter dito nada sobre a corrupção gritante do seu pai, que acaba de admitir que burlou o Erário Público.
A erosão persistente do Regime
“A situação é a seguinte: os mecanismos da União Europeia colocam a Espanha em posição de saída da crise económica, pelo menos em teoria; mas os eventos internos colocam-na na posição de ter de fazer face à crise política mais grave dos últimos quarenta anos…” (Fernando Onega, 12 de Dezembro, em La Vanguardia. Neste artigo, o jornalista refere-se à crise na cúpula do Estado, pondo-a em contraste com o facto do Governo ter acabado de ver o Orçamento do Estado ratificado pelo Senado).
Para além da observação, voluntariamente optimista, sobre a crise económica e a utilização dos Fundos europeus, Onega está consciente de que para a burguesia, sem um regime estável e bem estabelecido, tudo está em perigo; ele está consciente de que o que está em jogo não é “a falta de moral de um personagem” (que, por outro lado, não é diferente da tradição dos Bourbons, existem livros de História para o provar), mas que é o “sistema político como um todo que está em questão”. É por isso que as frases banais sobre ética, moral, ou responsabilidade e outras belas declarações são areia entre os dedos. Os factos existem: a descoberta sucessiva dos negócios de Juan Carlos, especialmente desde 2014, escondendo o seu longo trajecto desde 1973, quando Franco o tornou pelas suas relações com os líderes dos países produtores de petróleo. Não são excepções, é o hábito da Monarquia e da sua estrutura institucional.
Isto é inseparável do balanço destes mais de 40 anos, da transformação económica deste país, da destruição de uma grande parte das suas bases económicas, particularmente industriais, do baixo nível do investimento público (nomeadamente, em Saúde e Educação), do ataque sistemático às conquistas dos trabalhadores, que hoje está concentrado em particular contra o Sistema público de pensões de aposentação.
Um Sistema e as suas instituições que nem sequer respeitam os pactos com que se comprometem
Quando Filipe VI saúda o compromisso da União Europeia e os Fundos para a reconstrução, ele tem pleno conhecimento daquilo para que está a defender a utilização destes Fundos, que, tal como foi anunciado irão na esmagadora maioria para as grandes empresas, as quais naturalmente os utilizarão para financiar os seus planos de reconversão ou de reajustamento da mão-de-obra, ou simplesmente para “recomprar a sua dívida”. Esses Fundos irão, também, para aquilo a que se chama novamente “Parceria privado/público” – ou seja, o financiamento de empresas privadas com dinheiros públicos, como é o caso dos cuidados de Saúde, de que algumas comunidades, tais como Madrid ou a Catalunha, assumiram a liderança.
E, evidentemente, a burguesia está ciente de que para realizar esta operação é necessário um Regime estável.
E esta é a situação em que o governo de Sanchéz se encontra. A maioria trabalhadora exige que ele dê satisfação às suas reivindicações. Mas a defesa da Monarquia significa, hoje, deitar borda fora as reivindicações e as razões pelas quais uma maioria trabalhadora e popular o levou ao poder: do Sistema de pensões às reformas laborais. E o medo do capital e dos seus porta-vozes é este Governo ser, actualmente, o único que pode defender o Regime, perante a extrema divisão dos “partidos” franquistas, reflectindo a divisão do aparelho de Estado do qual eles são a representação genuína.
A própria crise no seio do Governo actual não é mais, em última análise, do que um reflexo da divisão existente no aparelho de Estado.
Quem está no comando e como fazer-lhe frente
Lembremo-nos que, no final de Novembro, o Pacto de Toledo adoptou 21 recomendações. O seu conteúdo era claro: uma nova volta do torniquete contra as pensões públicas. Este Pacto foi e está a ser desafiado a partir do interior e, claro, do exterior, com as persistentes mobilizações lideradas pela COESPE (Coordenadora Estatal para a Defesa do Sistema Público de Pensões) e outras plataformas, seguidas por uma multidão crescente de militantes e dirigentes sindicais. Dias depois o Parlamento adoptou, por larga maioria, as recomendações do Pacto de Toledo.
E de repente, dias depois, Escrivá (o ministro da Inclusão, Segurança Social e Migração – NdT) “decidiu” expandir as medidas, por sua própria conta, e aumentar – enviando essa indicação para Bruxelas, sem sequer consultar o Governo – o período de cálculo da pensão de aposentação, que passaria a ser calculado com base nos últimos 35 anos em vez de 25. Trata-se de uma medida persistente do aumento no período de cálculo de 1982, quando foi fixado em dois anos. Foi o governo de Felipe González que iniciou a modificação da contagem. A “nova” medida de Escrivá significaria uma redução média de 5,5% no valor da pensão.
Vejamos: embriagam-se os sindicatos com medidas para salvar as pensões, dizem eles; em seguida, essas medidas são aprovadas no Parlamento e, depois, o Governo decide modificá-las, aparentemente devido às imposições do capital financeiro e de Bruxelas.
Quase abertamente, Nadia Calviño (a ministra da Economia – NdT) declara que estas medidas são necessárias para obter os Fundos europeus (a Europa insistira em medidas para “assegurar a sustentabilidade do Sistema de pensões”)… Ou seja, nós perguntamos: quem governa, quem manda?
A história repete-se. A 5 de Julho de 2015, o governo do Syriza, na Grécia, referendou o novo Plano de Ajustamento da Troika. Dois terços da população grega votaram contra, mas uma semana depois o Governo grego adoptou esse Plano de austeridade. Os governos europeus – sejam “de esquerda” ou “de direita” – são semelhantes, pela sua submissão ao capital financeiro.
O Governo, no nosso país, está sujeito à dupla influência do capital e da Monarquia. Por isso mesmo, não respeita sequer os pactos com que se compromete, deixando entre a espada e a parede os líderes sindicais que afirmam não haver outra saída para além do “diálogo social”.
Este é o cerne da questão: submeter os trabalhadores a esta política leva à derrota. Quebrar as amarras com esta política é a condição necessária para alcançar as reivindicações e assim preservar – e se necessário reconstruir – as organizações operárias.
Carta semanal do POSI (Partido Operário Socialista Internacionalista, Secção espanhola da 4ª Internacional), nº 815, de 30 de Dezembro de 2020