Ainda sobre a COP27: Acontece com o clima como com tudo o resto…

O capital financeiro está a ficar impaciente. O jornal francês de negócios L’Opinion (22 de Novembro) coloca como manchete: “O FMI (Fundo Monetário Internacional) alerta sobre a discrepância francesa” e escreve: “O FMI, na segunda-feira, exortou o Governo francês a realizar reformas estruturais, tais como as das pensões de aposentação e o seguro de desemprego”, juntando à lista outras “reformas” a serem implementadas sem demora: “racionalizar as despesas fiscais (…), racionalizar os efectivos da Função Pública (…), racionalizar as despesas com a Educação (…)”. “Racionalizar” significa: cortar com um machado.

O FMI está bem ciente da situação política em França, das condições para a reeleição de Emmanuel Macron, da ausência de uma bancada maioritária na Assembleia Nacional, bem como da rejeição pela grande maioria da população francesa de que ele é objecto. Contudo, é com pleno conhecimento dos factos que o FMI apresenta as suas recomendações.

REFORMA DAS PENSÕES: “O CORAÇÃO DO PROBLEMA”

Lúcido, o diário L’Opinion aponta o que considera ser o cerne do problema: “será que o Governo conseguirá terminar a sua reforma do seguro de desemprego e levar a cabo uma ambiciosa reforma das pensões?”, acrescentando através da voz de Christian Saint-Etienne (1): “O grande erro de Emmanuel Macron é não ter concluído uma reforma paramétrica das pensões em 2019. Estamos hoje a pagar por esse erro”. E concluiu: “É o Velho Continente, como um todo, que está ameaçado de sofrer com isso”.

Foi nesta situação que a 27ª Conferência Internacional das Nações Unidas (ONU) sobre Alterações Climáticas – conhecida como COP27 – foi realizada durante duas semanas, de 6 a 20 de Novembro, em Sharm el-Sheikh, no Egipto.

Numa altura em que milhões de trabalhadores em todo o mundo estão a sofrer as consequências da “inacção climática”, que afecta principalmente as populações mais pobres; numa altura em que protestos sobre o clima estão a ter lugar em todos os continentes, mobilizando em particular a geração mais jovem preocupada com o seu futuro – qual foi o resultado dessa grande “Conferência internacional”?

COP27: “OS EUA TERÃO DIFICULDADE EM VALIDAR”…

O jornal francês de negócios Les Echos (21 de Novembro) congratula-se com aquilo que considera ser um “avanço histórico” – a criação de um novo Fundo dedicado a “perdas e danos”, “que se refere aos danos irreversíveis causados pelo aquecimento global em países «particularmente vulneráveis»”. Mas o mesmo diário modera imediatamente o seu tom ao escrever: “mesmo se os contribuintes e os beneficiários ainda não estão definidos”. E acrescenta: “Os EUA (…) terão dificuldade em validar qualquer contribuição”.

Supostamente constituído para financiar a reconstrução de infra-estruturas destruídas pelas alterações climáticas ou perdas agrícolas em países pobres, este Fundo “é actualmente financiado ao nível de 210 milhões de euros. 170 milhões provenientes da Alemanha, 60 milhões virão da França (ao longo de 3 anos)”. Por outras palavras, praticamente nada.

“O APOIO PÚBLICO AOS COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS QUASE DUPLICOU EM 2021”

Inversamente, como sublinha o jornal Libération (21 de Novembro), “o apoio público global aos combustíveis fósseis, dado pelas 51 maiores economias do mundo, quase duplicou em 2021, atingindo a quantia astronómica de 700 mil milhões de euros, e espera-se que continue a crescer em 2022, de acordo com a OCDE”.

Mas é provavelmente o editorial do jornal patronal L’Opinion (21 de Novembro) que melhor resume estas duas semanas de discussões dos líderes mundiais: “Em suma, nada se faz. O que é importante é comunicar que se chegou a um acordo. Parece que isto é o que conta a partir de agora nestas grandes-missas organizadas nos quatro cantos do mundo (…) e que são implacavelmente concluídas com um texto que permite a todos salvar a face, sem sujar muito nenhum dos restantes. Este triste espectáculo vai voltar a acontecer dentro de um ano, e num palco principal: a COP28 terá lugar no Dubai, nos Emiratos Árabes Unidos, um dos emissores de CO2 per capita mais elevados do mundo.”

TRATA-SE DA PRÓPRIA NATUREZA DO SISTEMA CAPITALISTA

Acontece com o clima o que se passa com tudo o resto: os governos – submetendo-se aos ditames do capital financeiro – não só não podem resolver os problemas colocados pelas alterações climáticas, como não querem fazê-lo, tal como esta COP27 demonstrou mais uma vez. Trata-se da própria natureza do sistema capitalista, que já foi analisada muitas vezes no passado (2).

Pará-los, na “inacção climática” como no resto, a começar pela guerra na Ucrânia que serve de sinistro pretexto para a guerra social (inflação assassina, “reforma” do seguro de desemprego, “reforma” das pensões), é a prioridade para todos aqueles que pretendem defender os interesses da população trabalhadora.

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(1) Christian Saint-Etienne é membro do Cercle des économistes (Círculo dos Economistas) e é professor titular da cadeira de Economia industrial no Conservatoire National des Arts et Métiers (Conservatório Nacional das Artes e Ofícios).

(2) Já em 1843, Friedrich Engels descreveu os efeitos do mecanismo infernal que, sob o regime capitalista, nunca cessará: “A luta do capital contra o capital, do trabalho contra o trabalho, do solo contra o solo, torna a produção febril. Todas as relações da Natureza e da razão estão invertidas. Nenhum capital pode fazer frente à concorrência de outro se a sua actividade não for levada até ao ponto mais alto. Nenhuma terra pode ser cultivada, de forma rentável, se a produtividade não for constantemente aumentada. Nenhum trabalhador pode prevalecer sobre os seus concorrentes se não dedicar todas as suas forças ao trabalho. De um modo geral, só se pode manter o que se tem na luta competitiva ao preço do máximo esforço, pelo sacrifício de todos os objectivos verdadeiramente humanos.” (Esboço de uma Crítica de Economia Política [1843-1844], publicado por Allia, Julho de 1998).

Crónica política, da autoria de Pierre Valdemienne, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” Informações operárias – nº 733, de 23 de Novembro de 2022, do Partido Operário Independente de França.

COP27: um fracasso anunciado

A eleição de Lula acabou por ser a “melhor notícia climática”

Lula discursando no Egipto.

Quando a activista ambiental Greta Thumberg – rosto presente em todas as conferências do Clima da ONU desde 2018 na Polónia – anunciou que não se deslocaria ao Egipto para a COP27, já não havia muitas expectativas de avanço em acordos sobre a questão do meio ambiente nessa Conferência de governos, empresários e sociedade civil acolhida por um Regime ditatorial (ver nosso post anterior sobre a COP27).

A activista sueca hoje diz que as COPs não produzem efeitos práticos pois “não são destinadas a mudar todo o Sistema”. Ela não deixa de ter razão, mas o fracasso anunciado da COP27 deve-se directamente à guerra que rebentou na Europa logo após a COP anterior de Glasgow, fazendo explodir os planos de “consenso” para a “transição climática” ali acordados.

Afinal, a guerra na Ucrânia, coma escassez de gás russo vital para a economia europeia, provocou uma corrida para aumentar a produção de petróleo, de gás e até mesmo de carvão, que deveriam ser substituídos por “energia limpa”.

Os líderes mundiais, como é o caso de Biden e de Macron, até fizeram discursos no Egipto “em defesa do planeta”, mas rapidamente se deslocaram para a reunião do G20, realizada na Indonésia em 15 e 16 de Novembro, onde o tema era a guerra na Ucrânia e o interlocutor principal o chinês Xi-Jin-Ping (na ausência de Putin, representado por Lavrov, o ministro das Relações Externas da Rússia).

O que deveria ser o centro da COP27 – a reparação aos países pobres pelos danos ambientais provocados pelas emissões poluentes das grandes potências industriais – reduziu-se a uma promessa do presidente dos EUA de 180 milhões de dólares de ajuda para toda a África, uma soma irrisória.

Um palanque para Lula

Assim, a presença de Lula, presidente eleito do Brasil, e o seu discurso a 16 de Novembro, acabaram por ser o destaque dos órgãos de Comunicação internacional e junto aos participantes na COP27. Com Bolsonaro ausente, tanto da COP como do G20, Lula aproveitou a ocasião para reuniões bilaterais com enviados da China, dos EUA e outros líderes, transmitindo a mensagem de que “o Brasil está de volta à agenda climática”.

No seu discurso principal, Lula associou a defesa do meio ambiente ao combate à fome no mundo, mostrou a responsabilidade dos países ricos na situação criada, ofereceu a Amazónia brasileira para ser a sede de uma futura COP, além de não poupar críticas ao governo de Bolsonaro.

Segundo a revista Time, a vitória eleitoral de Lula foi “a melhor notícia que a luta climática global recebeu há muito tempo”, reflectindo tanto o clima que o cercou no Egipto, como a falta de outras “boas notícias” vindas da COP27.

Crónica da autoria de Julio Turra, publicada no jornal “O Trabalho” – órgão de imprensa da Secção brasileira da 4ª Internacional – nº 910, de 17 de Novembro de 2022.

A COP27 e o Regime militar egípcio

Os líderes do mundo inteiro na COP27 (1) discursam fazendo vista grossa sobre os crimes de Sissi e olham para outro lado

A detenção, a menos de uma semana do início da Conferência, pelas Forças de segurança egípcias de um arquitecto e activista ambiental indiano de renome, Ajit Rajagopal – que se estava a preparar para fazer uma marcha pacífica, de oito dias, do Cairo até Sharm el-Sheikh, para sensibilizar a população local para as questões das alterações climáticas – ilustra o processo repressivo em curso, no Egipto, desde o golpe de Estado que levou o marechal Sissi ao poder, há nove anos.

As interpelações ilegais são moeda comum. Sessenta mil prisioneiros políticos, incluindo activistas dos direitos humanos e do ambiente, têm vindo a apodrecer nas prisões egípcias durante a última década, sob falsas acusações, e a tortura é o seu destino. Quando um detido é libertado, outros dez ocupam o seu lugar.

É neste contexto que os líderes do mundo inteiro discursam fazendo vista grossa sobre os crimes do Regime militar egípcio e olham para outro lado.

MILHARES DE MILHÕES DE AJUDA DOS EUA E DO FMI PARA O REGIME MILITAR

O Regime recebe uma ajuda norte-americana de 1,3 mil milhões de dólares, todos os anos, desde que assinou os Acordos de paz com o Estado de Israel, em 1978. No Outono de 2021, o Departamento de Estado dos EUA “reteve” 130 milhões de dólares desta ajuda, afirmando que a questão dos prisioneiros políticos era a principal razão para esta decisão.

Em Janeiro de 2022, a Administração de Biden restaurou o pagamento, redireccionando os 130 milhões de dólares para outros programas. Durante a sua campanha eleitoral Biden disse: “Acabaram-se os cheques em branco para o ditador preferido de Trump”… Em meados de Outubro, Sissi mandou prender centenas de pessoas no Cairo, Alexandria, Matrouh, Gizé e Suez, em resposta a apelos nas redes sociais para a realização de manifestações populares na próxima sexta-feira, 11 de Novembro. Não contra decisões ambientais, mas directamente contra a inflação que está a “estrangular” milhões de Egípcios e contra a subida dos preços dos bens de primeira necessidade que os estão a lançar na miséria.

O Fundo Monetário Internacional (FMI), que negoceia com o Governo egípcio desde Março de 2022, anunciou oficialmente, a 27 de Outubro, que iria fornecer 3 mil milhões de dólares de ajuda ao Egipto. A quarta ajuda em seis anos. Em troca, exigiu a desvalorização da libra egípcia em 15% e pediu que ela flutuasse de acordo com o mercado das divisas.

A MISÉRIA PROMETIDA A MILHÕES DE EGÍPCIOS

No mesmo dia desse anúncio, a libra depreciou quase 18%, o que agrava a inflação. O Regime egípcio tinha, inicialmente, pedido uma ajuda ao FMI no valor de 12 mil milhões de dólares. A modesta opção pelos 3 mil milhões de dólares, “que se assemelha mais a um penso rápido do que a uma jangada salva-vidas, para um país abalado pelas consequências da guerra na Ucrânia”, como refere o jornal New York Times de 28 de Outubro de 2022, está parcialmente relacionada com o facto do Regime egípcio não ter implementado, com a amplitude necessária, as reformas económicas e as privatizações, prometidas ao longo dos últimos seis anos, nomeadamente o fim das participações do Estado numa série de sectores económicos, incluindo os controlados pelos militares. Pelo contrário, o Regime tem dado cada vez mais projectos aos Serviços militares e aos Serviços de informação, que já controlam uma grande parte da economia egípcia.

Com a guerra na Ucrânia, quase 22 mil milhões de dólares fugiram do Egipto, levando a uma grande escassez de moeda estrangeira. Resultado: no início de Outubro, oitocentas mil toneladas de trigo, quase metade da quantidade que o Egipto importa todos os meses, foram bloqueados nos portos do país devido à falta de dólares para pagar aos fornecedores.

Como consequência, 80% dos moinhos produtores de farinha para o sector privado estão parados. Alguns estão a dispensar pessoal. O preço do trigo sobe em flecha no mercado local e, por ricochete, o do pão, das massas e das forragens para o gado. O mesmo é válido para muitos outros produtos que o Egipto importa, incluindo medicamentos e material médico.

A miséria é prometida a milhões de Egípcios, um terço dos quais já está a viver abaixo do limiar da pobreza.

PARA EVITAR UMA SUBLEVAÇÃO…

Preocupado em evitar uma sublevação e inquieto com os apelos nas redes sociais para a manifestação de 11 de Novembro, durante a COP27, o Governo aumentou o salário mínimo para 3 mil libras, ou seja, cerca de 130 euros (embora o próprio Sissi tenha admitido que o aumento deveria ser para 10 mil libras, cerca de 430 euros). Decidiu também manter o congelamento dos preços da electricidade até Junho de 2023, bem como o preço do pão subsidiado, do óleo e do arroz.

Alaa Abdel Fattah

Alaa Abdel Fattah é um militante egípcio que foi um dos mais activos no derrube do ditador Hosni Mubarak, em Janeiro de 2011. Depois de ter passado a maior parte dos últimos dez anos nas prisões do Regime militar, foi preso em 2019 e condenado, no final de 2021, a cinco anos de prisão por “difundir informações falsas” – de facto, por ter denunciado a morte de um preso devido às torturas que sofreu. Já em greve de fome, também deixou de beber água no primeiro dia da COP27. Eis a nota que, da prisão, ele escreveu à sua irmã: “Último copo de água. Decidi, neste momento oportuno, intensificar a luta pela minha liberdade e dos outros prisioneiros. Alaa Abdel Fattah, 31 de Outubro de 2022.”

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(1) A 27ª Conferência do clima da Organização das Nações Unidas, mais comumente referida como Conferência das Partes da UNFCCC, ou COP27, está a ocorrer – de 6 a 18 de Novembro de 2022 – em Sharm El Sheikh, no Egipto.

Crónica da autoria de Samir Hassan, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” Informações operárias – nº 731, de 9 de Novembro de 2022, do Partido Operário Independente de França.