A neve do deserto

Dentro de alguns dias, será realizado no Qatar o Campeonato do mundo de futebol.

Estádios com ar condicionado, é bom para o planeta.

Seis mil e quinhentos trabalhadores asiáticos, verdadeiros escravos, morreram para os construir, e muitos comentadores sugerem que o Qatar fez subornos para conseguir acolher o Campeonato do mundo de futebol (1).

No último momento, algumas almas – tais como a Sra. Hidalgo (2) – mostraram-se perturbadas por este evento se realizar no Qatar, apesar de não terem dito nada sobre o assunto durante anos, e anunciam que não haverá ecrã gigante em Paris para transmitir o Campeonato do mundo. Mas o facto de o Emirado do Qatar ser o proprietário do clube de futebol PSG não incomoda a Sra. Hidalgo.

O Conselho Olímpico da Ásia anunciou, a 4 de Outubro, que o reino do deserto da Arábia Saudita irá acolher os Jogos Asiáticos de Inverno, em 2029. É de facto sabido que, tal como nos Alpes, a neve cai lá em abundância e que é o reino dos esquiadores.

O projecto para acolher estes Jogos ascende a quase 500 mil milhões de dólares. Eles irão, nas montanhas em torno do Neom – como diz o gestor do projecto – construir “infra-estruturas adequadas para criar uma atmosfera de Inverno no coração do deserto”.

Uma aparelhagem técnica gigantesca criará um frio invernal, neve artificial, gelo para o hóquei e a patinagem artística; tudo isto, é claro – tal como foi indicado pelas autoridades sauditas – em conformidade com as normas ambientais.

Um esquiador alpino saudita, Fayik Abdile, um pouco surpreendido, disse: “Nunca pensei poder alguma vez esquiar no meu país.”

Um pouco ingénuo, ele não pensou que muito dinheiro pode fazer acontecer um monte de coisas.

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(1) Centenas de milhares de trabalhadores, especialmente indianos e nepaleses, foram cruelmente sobre-explorados – como se fossem forçados das galés – por salários de 200 euros, muitas vezes não pagos; os seus documentos administrativos foram-lhes retirados, foram proibidos de se deslocar e de rescindir os seus contratos. Sem pausas nem protecção, com temperaturas de 50°C, morreram milhares de entre eles, desde há dez anos, por esgotamento, hipertermia ou desidratação, frequentemente com vinte e poucos anos de idade. As causas da sua morte por sobre-exploração foram falsificadas. O repatriamento dos caixões teve de ser pago pelas famílias. A Amnistia Internacional tem denunciado as responsabilidades das autoridades do Qatar e da FIFA, dando ênfase ao silêncio dos dirigentes do futebol francês.

(2) Anne Hidalgo, do PS, é presidente da Câmara Municipal de Paris desde 2014.

Crónica da autoria de Lucien Gauthier, publicada no semanário francês “Informations Ouvrières” Informações operárias – nº 729, de 26 de Outubro de 2022, do Partido Operário Independente de França.