
Gorbachev e Putin: ambos membros da mesma Nomenklatura.
Morreu Mikhail Gorbachev, o último líder da URSS e um dos protagonistas da sua dissolução. Após a sua morte, assistimos a um paradoxo: os órgãos de Comunicação social ocidentais saúdam, quase unanimemente, a sua memória, enquanto a grande maioria das pessoas dos países que outrora fizeram parte da URSS, que ele liderou, mostram uma clara rejeição em relação a ele, às suas políticas e ao balanço do seu mandato.
Elogios dos defensores do capital
Não é por acaso. Para os órgãos de Comunicação social ao serviço do capital, a obra de Gorbachev – que levou ao colapso e à destruição do primeiro Estado operário da História, baseado na expropriação do capital – merece todos os elogios. Já o foi solenemente expresso por uma das suas instituições de maior prestígio, o Comité do Nobel da Paz, que lhe atribuiu esse prémio em 1990.
Para o New York Times, “os primeiros cinco anos de Gorbachev no poder foram marcados por significativos e até extraordinários feitos “.
O Presidente dos EUA, Joe Biden, reagiu à notícia da sua morte com grandes elogios, à “coragem” e à “imaginação” que ele demonstrou durante o seu mandato e durante muitos anos a seguir. O Presidente francês, Emmanuel Macron, expressou as suas “condolências pela morte de Mikhail Gorbachev, um homem de paz cuja eleição abriu um caminho para a liberdade dos Russos. O seu compromisso para com a paz na Europa mudou a nossa História comum”.
Pedro Sánchez salientou que ele contribuiu, com as suas decisões, “de uma forma decisiva para terminar com a Guerra Fria e fazer da Europa, e do resto do mundo, um lugar com mais paz e liberdade”, enquanto Núñez Feijóo (1) disse, que “a paz e a liberdade sempre estarão em dívida para com ele”.
No entanto, o governo da Federação Russa decidiu não organizar um funeral de Estado, dada a controvérsia que isso poderia originar, num momento em que está a acumular-se o descontentamento com a guerra.
Um homem da Nomenklatura
Gorbachev foi, durante toda a sua vida, um homem da Nomenklatura – a burocracia que usurpou o poder, após a morte de Lenine, e que tirou partido desse poder para obter enormes benefícios materiais. Burocracia cuja ascensão ao poder significou a destruição do Partido Bolchevique (que liderou a Revolução de Outubro de 1917) e a liquidação física dos seus principais quadros dirigentes.
Em 1955, com 22 anos de idade, Gorbachev iniciou a sua carreira nesse aparelho burocrático. Entre 1955 e 1962, foi Primeiro-secretário do Comité do Komsomol de Stávropol. Em 1970, foi promovido a chefe do Comité territorial do PCUS de Stávropol. Em 1966, ascendeu ao cargo de Primeiro-secretário do Comité do Partido dessa localidade. Em 1968, foi eleito Segundo-secretário do Comité provincial do PCUS e, em 1970, tornou-se o Primeiro-secretário desse Comité.
Em 1971, tornou-se membro do Comité Central do PCUS. Em 1978, foi eleito Secretário para a Agricultura, no Comité Central do Partido Comunista. Em 1980, foi incorporado no Politburo do Comité Central, tornando-se o seu membro mais jovem (aos quarenta e nove anos). Era membro do Comité Central há 17 anos, quando foi nomeado seu dirigente máximo.
A política de Gorbachev levou à desintegração da URSS
O Regime da URSS, dominado pela burocracia, estava a atravessar uma profunda crise – a qual, em última análise, expressava a irresolúvel contradição entre o carácter social da propriedade, que exigia uma gestão democrática da economia por parte das classes trabalhadoras, e a usurpação do poder por parte da burocracia parasitária. Uma contradição que, em 1938, foi expressa da seguinte forma por Leon Trotsky: “O prognóstico político tem um carácter alternativo: ou a burocracia se transforma, cada vez mais, num órgão da burguesia mundial dentro do Estado operário, derrubando as novas formas de propriedade e devolvendo o país ao capitalismo; ou a classe operária esmaga a burocracia e abre o caminho para o socialismo”.
Quando Gorbachev assumiu o cargo de Secretário-Geral do PCUS – tornando-se, portanto, no principal representante da burocracia dominante – a crise do sistema era imparável. A gota que fez transbordar o copo foi a greve geral dos mineiros, iniciada em Julho de 1989 pelos mineiros da região de Donbass e que se propagou, como pólvora, através do Kuzbass siberiano, a cidade árctica de Vorkuta, o Karagandy do Cazaquistão e por todo o país. Uma greve que, em algumas das suas reivindicações, punha em causa o próprio poder da burocracia. A greve assumiu, em alguns lugares, um carácter insurreccional. Os comités de greve tomaram conta do funcionamento das cidades. A venda de bebidas alcoólicas foi proibida e foram criadas organizações para manter a ordem pública. Em algumas cidades, os chefes da Polícia tiveram de prestar contas – sobre a questão da ordem pública – em reuniões de massa organizadas pelos grevistas.
Aterrorizada com a perspectiva da mobilização operária, a burocracia, sob o comando de Gorbachev, lançou um programa de reformas económicas e políticas. Ele declararia, mais tarde, que tinha sido forçado a aplicar políticas “perigosas” para evitar que estalasse “uma revolução mais sangrenta que a de Outubro”. Políticas que levaram à destruição da propriedade colectiva e à desintegração da URSS.
Na esfera económica, produziu-se a apropriação da propriedade colectiva pelos chamados “oligarcas”, que eram normalmente os membros da própria burocracia que administravam o correspondente sector económico e que se apropriaram dele. Os antigos dirigentes do PCUS converteram-se em governantes dos novos Estados que emergiram do colapso da URSS. Boris Yeltsin, coveiro da URSS, era membro do Secretariado Político do PC. Gaidar, organizador das privatizações, foi durante anos colunista económico do jornal oficial do PCUS (Pravda). Kravchuck, que separou a Ucrânia da URSS, era o Secretário ideológico do PC da Ucrânia. Schevarnazde, primeiro presidente da Geórgia burguesa, era membro do Secretariado Político do PCUS.
Como Xabier Arrizabalo assinala: “A oligarquia russa insere-se no mercado mundial a partir da sua condição de proprietária das grandes riquezas do país – que são, em particular, os recursos naturais – na sequência da destruição industrial sofrida desde antes de 1991 e depois (entre 1989 e 1996 o PIB per capita caiu 45%).” (2)
Há quem afirme que Putin – valendo-se do antigo KGB e do monstruoso aparelho repressivo/administrativo – poderia ser, de qualquer forma, o continuador da URSS. Mas a realidade mostra o contrário: a sua função de saqueador e destruidor da propriedade social, o seu papel no mercado mundial como exportador de matérias-primas e a sua política militarista brutalmente agressiva (como vemos pela invasão da Ucrânia) para “defender” o seu lugar no mercado mundial, mostra o seu carácter estritamente reaccionário, por muito que se tente camuflar na defesa das populações que falam a língua russa. Putin – que, tal como Gorbachev, foi criado no seio da Nomenklatura – não é o herdeiro da URSS, mas sim da burocracia que a destruiu, e, em particular, do KGB que aniquilou milhares de revolucionários bolcheviques, a geração que fez a Revolução de Outubro.
Recordemos o discurso de Putin em que ele justifica a agressão contra a Ucrânia, acusando os Bolcheviques de terem criado esse país de forma artificial. A política de Putin confirma o papel da burocracia estalinista como agente do imperialismo no antigo Estado operário.
As consequências da destruição da URSS
Este processo implicou uma destruição formidável de forças produtivas, processo com uma dimensão nunca sentida pela Humanidade fora dos períodos de guerra. O PIB da Rússia caiu 45%, os salários foram reduzidos para metade, a pobreza passou de 2,2 milhões de pessoas, em 1987, para 72 milhões em 1995, os serviços públicos foram destruídos.
Um terço da população caiu na miséria em resultado da privatização: o consumo de carne caiu 23% e o de leite 28%.
A esperança de vida, que era de 71 anos antes do colapso da URSS, caiu para 65 anos em 2007. A população diminuiu em 3 milhões.
O balanço do mandato político de Gorbachev é a destruição da URSS e a liquidação da propriedade colectiva e das conquistas da revolução de Outubro de 1917 – substituído pelo poder dos oligarcas mafiosos, actualmente sob o controlo do sector mais duro da antiga burocracia: o KGB. O balanço económico do mandato de Gorbachev foi a miséria para a imensa maioria da população, enquanto um grupo de multimilionários mafiosos – que emergiu dessa mesma burocracia – acumulou enormes fortunas.
Na actualidade, a população russa – e, em particular, os trabalhadores – sofrem as consequências da guerra. A Duma aprovou, a toda a pressa, leis repressivas para impedir as manifestações contra a guerra.
Porém, toda a gente está consciente que o proletariado russo e a ampla massa da população – como já o fizeram no passado – regressarão à resistência aberta e às mobilizações. Na Rússia tiveram lugar as maiores revoluções nesta última época histórica: desde 1905 e, em particular, em 1917.
Mais cedo ou mais tarde, num movimento que será alimentado pelas greves que estão a iniciar-se na Europa – a partir da Alemanha, do Reino Unido ou da Grécia – o proletariado russo retomará o seu papel na luta emancipadora contra a guerra, a exploração e a opressão.
—————————————
(1) Núñez Feijóo é o Presidente do Partido Popular da Galiza e, também, o Presidente da Junta dessa Região “Autónoma” do Estado espanhol.
(2) No seu livro “Ensinamentos da Revolução Russa – Interpretação marxista da experiência soviética através de textos dos seus protagonistas”.
Tradução da Carta Semanal do Comité Central do Partido Operário Socialista Internacionalista (POSI) – Secção da 4ª Internacional em Espanha – nº 903, de 5 de Setembro de 2022