Chile: entre dois poderes

Manifestantes que apoiam a mudança constitucional no Chile celebraram assim, em Santiago, os resultados do plebiscito de 25 de Outubro de 2020.

A 4 de Julho foi instalada a Convenção Constitucional, nome dado ao processo constituinte aberto pela revolta – o chamado “estallido” (explosão) de 18 de Outubro de 2019. Paralelamente, ocorre o processo para a eleição do Presidente da República, dos senadores e dos deputados, previsto para Novembro.

A alternativa é que a Convenção é parte do poder constituinte que o povo, na sua maioria (1), exigiu nas mobilizações que colocaram em xeque o Regime político e económico do país, e cujo objectivo é a elaboração de uma nova Constituição (2); enquanto que o processo eleitoral é regido pelo poder constituído pela espúria Constituição de Pinochet, repudiada pela maioria do povo.

Convenção Constitucional instala-se, enquanto as eleições se realizarão ainda segundo as regras de Pinochet

Esta é a contradição que está em jogo actualmente. O Regime velho, que se recusa a morrer e que significou, para o país, 48 anos de profunda desigualdade social – um Regime político que privilegiou os interesses das oligarquias, colocando o Chile com as maiores taxas de concentração de propriedade e de riqueza, cujas consequências resultam numa das mais desiguais nações da região e são a causa primeira do “estallido” de 2019.

O novo Regime, o que está a nascer, é representado pelos delegados da Convenção que, numa percentagem relevante, são provenientes de organizações de base, ligadas aos movimentos sociais, aos povos originários (indígenas), aos ambientalistas, etc.. E que, numa percentagem também importante, surgem por fora dos partidos políticos tradicionais.

Uma característica do processo chileno – aberto com a revolta de Outubro, e que se inscreve num cenário similar ao que ocorre em muitos outros países – é que esta revolta não teve a participação de nenhuma Direção política tradicional. Os movimentos sociais – com as suas debilidades próprias, num país onde jurídica e politicamente se tentou dizimá-los – foram levantados pelos milhões que, espontânea e inorganicamente, saíram às ruas para reivindicar justiça.

Esta força social incontrolável tem vantagens na luta contra as instituições do Estado, pois não tem mediações, nem intermediários – a luta é directa. Ao não estarem presentes os partidos políticos tradicionais (que, pela sua própria natureza, sempre desempenham um papel norteador e, ao mesmo tempo, conciliador das lutas sociais) e, também, pela ausência da Igreja Católica, instituição característica da mediação – a luta tornou-se muito mais genuína, mais intensa e, às vezes, mais radical. Porém, o que constitui uma força, ao mesmo tempo converte-se numa debilidade, pois carece de uma Direcção que ordene e hierarquize as legítimas reivindicações e que conduza, para um objectivo preciso e concreto, esta tremenda força social dos milhões de mobilizados.

Manter bem alto as reivindicações fundamentais

A falta de Direcção é a grande debilidade que tem de ser superada pelas organizações sociais, no novo cenário do Chile. Mais ainda, porque a disputa entre o poder constituído e o poder constituinte vai crescendo em conflitos, pois expressam-se no seu seio diferentes interesses de classe representados pelos diversos constituintes.

Ao mesmo tempo, sabendo que os problemas fundamentais que se expressam na sociedade correspondem aos conflitos históricos entre capital e trabalho, é uma preocupação que – no processo constituinte – não haja representantes genuínos do mundo do trabalho. Pois, sendo absolutamente legítimas as reivindicações dos povos originários, do movimento feminista e do movimento ambientalista, a luta fundamental no capitalismo continua a ser a luta entre o capital e o trabalho.

O desafio do mundo do trabalho, dos sindicatos e dos sindicalistas é manter bem alto as reivindicações fundamentais pelas quais os trabalhadores e trabalhadoras há anos lutam, para que este processo constituinte faça as mudanças necessárias para acabar com as profundas assimetrias com que têm confrontado as classes trabalhadoras, nestes 48 anos de luta pelos seus direitos e interesses.

O Chile enfrenta uma grande alternativa: ou faz as mudanças necessárias, que representam igualdade e justiça social para as trabalhadoras e os trabalhadores; ou cede à pressão dos grandes empresários, aparentando mudar alguma coisa, mas para que o principal continue absolutamente igual.

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(1) No plebiscito, realizado a 25 de Outubro do ano passado, cerca de 78,3% dos votos registados foram favoráveis à opção “Aprovo” da mudança da Constituição elaborada no Regime ditatorial de Pinochet.

(2) A 11 de Abril de 2021, teve lugar a eleição dos 155 constituintes que integraram a Convenção Constitucional.

Crónica da autoria de Luis Mesina, correspondente chileno do jornal “O Trabalho” – cuja publicação é da responsabilidade da Secção brasileira da 4ª Internacional (corrente do Partido dos Trabalhadores do Brasil) – edição nº 888, de 12 de Agosto de 2021.

Traços gerais da Proposta de OE para 2021

A presente súmula tem por base, essencialmente, o estudo de Eugénio Rosa sobre a proposta do Governo do Orçamento do Estado para 2021, datada de 17 de Outubro de 2020.

Em relação ao trabalho e aos trabalhadores, agora à pala de virem fazer face à catástrofe económica derivada da pandemia, a proposta:

– Congela novamente os salários-base dos trabalhadores da Função Pública, mantendo a medida tomada pelos sucessivos governos nos últimos 12 anos (salvo os 0,3% de correcção salarial em 2020), período em que o índice de preços no consumidor (IPC) aumentou 11,7%;

– Congela as pensões de aposentação superiores a 659€ (e as inferiores a esse valor terão um aumento mensal de 10€ a partir de Agosto, sendo a antecipação desse aumento ao mês de Janeiro uma das “moedas de troca” para os grupos parlamentares do PCP e do PEV viabilizarem a Proposta de OE na votação geral global prevista para 26 de Novembro);

– Sobe o conjunto dos impostos em 2839 milhões € (um aumento de 6,9%), sabendo-se que os indirectos representam 56,6% das receitas totais de impostos e não têm em conta o rendimento dos contribuintes (pesando mais sobre a massa da população do que sobre a minoria com mais meios financeiros, ao contrário do que se passa com os impostos directos).

Em relação aos Serviços públicos (funções sociais do Estado) e aos seus trabalhadores, Eugénio Rosa traça o quadro seguinte: “Em 2019, o aumento dos pagamentos de despesas com pessoal (nos Serviços públicos) foi de 4,7%; em 2020, em plena pandemia, a subida diminuiu para 3,7%; e, em 2021, com ameaça de uma nova onda muito maior da pandemia, que poderá causar a ruptura dos Serviços públicos, nomeadamente de Saúde e Educação, o aumento, relativamente a 2020, é apenas de 1,9%, muito inferior ao previsto com a «aquisição de serviços a privados» (+3,4%) e com a despesa total das Administrações Públicas (+3,9%).”

Nos casos da Educação e da Saúde:

Reduz a despesa com o Ensino não superior e a Administração Escolar. Segundo Eugénio Rosa, a Proposta “prevê até uma diminuição das despesas com pessoal no Ensino Básico, Secundário e Administração Escolar de -0,1%, pois passarão, entre 2020 e 2021, de 5141 M€ para 5.137,7 M€ (Quadro 4.10, pág. 88 do Relatório do Orçamento do Estado para 2021)”;

Não reforça as transferências do OE para o SNS. Segundo Eugénio Rosa, “em 2020, a despesa do SNS financiada com receitas de impostos atingirá 10.311,2 M€ e, em 2021, será de 10.315,2 M€ (pág. 262 do Relatório OE-2021), ou seja, apenas mais 4 milhões €. É este o grande reforço do SNS tão «badalado» pelo actual Governo.”

Em relação ao conjunto da economia avizinha-se que o investimento público será insuficiente para reanimar a economia e criar emprego, pois o montante previsto é pouco superior ao consumo de capital fixo.

De facto, segundo Eugénio Rosa, “nos últimos anos o investimento realizado pelas Administrações Públicas (Central, Local e Regional) tem sido sempre inferior ao Consumo de Capital Fixo Público, ou seja, aquilo que se degrada ou destrói pelo uso e pela obsolescência. Daí a razão da degradação em que se encontram muitos equipamentos e serviços públicos (escolas, hospitais, transportes, etc.).

Em 2020, segundo dados da Conta das Administrações Públicas (contabilidade nacional) estima-se que o investimento público será inferior ao consumo de capital fixo publico em 507 milhões €, ou seja, insuficiente para compensar o que «desapareceu». Em 2021, se o investimento público previsto no Orçamento do Estado for efetivamente todo realizado (e na maioria dos anos isso nunca aconteceu devido a atrasos e cativações), mesmo assim o saldo positivo será apenas de 628 milhões €, um valor insuficiente para reanimar a economia e criar emprego.”

O que se pode pressupor sobre a discussão na especialidade da Proposta de OE?

É esta a estrutura geral, bem como as grandes linhas de força, da Proposta de OE do Estado para 2021, que foi aprovada na generalidade com o voto favorável apenas do grupo parlamentar do PS e viabilizado graças à abstenção do PCP, Verdes, PAN e das deputadas não-inscritas Cristina Rodrigues (ex-PAN) e Joacine Katar-Moreira (ex-Livre).

O que podemos esperar agora da discussão na especialidade e da votação final global?

Como tem acontecido habitualmente, vai ser usada largamente a arte da “engenharia financeira”, além da chantagem política que já foi empregue na votação na generalidade, para fazer com que esta Proposta de OE seja viabilizada “custe o que custar”, respeitando os “compromissos do Estado” com o capital financeiro e as suas instituições… sobre os quais o povo português nunca foi consultado!

Já referimos a questão do “aumento” das pensões de aposentação mais baixas, mas irá certamente haver também “uns grãos de milho” para contemplar “os animais” do PAN, bem como umas “dádivas ecológicas” para contentar este partido (e também o PEV)… caso os seus votos se tornem necessários para a viabilização final da Proposta.

Viva o 25 de Abril!

25_Abril

Carta aos deputados que invocam representar o povo trabalhador na Assembleia da República

É com um sentimento misto, de orgulho e de profunda tristeza, que – na passagem dos 44 anos da aprovação da Constituição Portuguesa – assistimos a ser posto à consideração dos deputados na Assembleia da República a renovação do Estado de Emergência, o qual suspendeu o direito à greve, o direito de reunião e o direito de resistência, aí inscritos.

Orgulho, por termos feito parte daqueles que, nesse ano de elaboração da Constituição, procuraram ser uma voz na Assembleia Constituinte do movimento de fundo que mobilizou todas as camadas da população trabalhadora, de Norte a Sul do país. Nos principais centros fabris e nas aldeias mais remotas eram desmanteladas as instituições da ditadura e criadas formas de organização autónoma, dos sindicatos livres e independentes às Comissões de Trabalhadores e Comissões de Moradores, das Unidades Colectivas de Produção às Cooperativas Agrícolas e de Distribuição. Continuar a ler