
Recebemos do nosso camarada José Luz este artigo de opinião.
A “aplicação” da discórdia, verdadeiro vírus na democracia?
Num Estado de Direito não é admissível que a Polícia, sem mandato, tenha o poder de fiscalizar um cidadão. Quando uma proposta destas parte de um Governo que se diz socialista, temos o dever de nos questionarmos. É um imperativo de consciência, pela defesa das liberdades públicas. A falta de investimento do Governo na área da Saúde, não pode justificar estes episódios de distraçcão em maré de Orçamento do Estado.
António Costa recuou, inevitavelmente, na proposta de tornar obrigatório o descarregamento da «app STAYAWAY COVD», naquilo que se revelou como um desfecho previsível para todos. Pediu o PM ao presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, para suspender o debate da proposta (in TSF).
A implementação desta aplicação tem sido amplamente discutida nos meios de Comunicação social e nas redes sociais. Temas de discórdia? A obrigatoriedade do seu uso, questões sobre a privacidade de dados e sobre as desigualdades ao acesso da aplicação.
Nos relatórios europeus de 2018 e de 2019, dos índices de digitalidade da economia e da sociedade portuguesas, pode-se ler-se que “metade da população portuguesa não possui as competências digitais básicas necessárias para utilizar eficazmente a Internet e 30% não tem quaisquer competências digitais.” (in Postal, Sociedade).
É neste contexto que o Governo veio propor que fosse decretada uma lei sobre a utilização da aplicação, a ser «devidamente fiscalizada pelas forças policiais, com a obrigatoriedade do seu uso em determinados contextos.» (JN).
A talhe de foice, quanto custou, para já, o negócio da «app STAYAWAY COVID»? Segundo o portal sapo, o financiamento até à data é de 400 mil euros e é do INESC TEC, uma instituição de privados. Segundo Rui Oliveira, do INESC TEC, «ou compensamos isto ou vamos ter prejuízo, e esse prejuízo vai repercutir-se em recursos humanos” (in sapo).
Desde o anúncio desta medida que diversas personalidades do meio científico alertaram para a necessidade de um debate transparente que clarificasse, de forma simples, as questões éticas, jurídicas e técnicas.
Luciano Floridi, professor da Filosofia e Ética da Informação e Director do Laboratório de Ética Digital na Universidade de Oxford escreveu um artigo que começa do seguinte modo: “A app deve ser tornada ética ou é melhor renunciar a ela?”) (in Agenda Digitale).
Na proposta do Governo adiada sine die, consta que será obrigatório o uso da app, no contexto laboral ou equiparado, escolar e académico, a saber, «pelos possuidores de equipamento que a permita». Razão pela qual, adianta-se, «a vigilância do seu cumprimento ficará a cargo da Guarda Nacional Republicana (GNR), Polícia de Segurança Pública (PSP), Polícia Marítima e polícias municipais» (in executive digets, sapo). Não, não estamos em 1973. E, para rematar, no mesmo tom autoritário do Estado em tempos Covid, decreta-se que o incumprimento poderá, caso a Assembleia da República legisle nesse sentido, «dar origem a multas entre os 100 e os 500 euros».
Marcelo, constitucionalista, face aos factos, disse que prefere mil vezes enviar para o Constitucional a obrigatoriedade da «Stayaway Covid» do que assistir ao “arrastar da polémica”.
A obrigatoriedade do uso da aplicação bem como o seu policiamento causou resistência dentro do próprio PS, na bancada e não só. Sérgio Sousa Pinto escreveu no facebook que «aplicações digitais e política é um casamento tenebroso».
Isabel Moreira, deputada do PS, fazendo-se ouvir de fora para dentro, disse mesmo em voz alta: “No dia em que a polícia pudesse pedir-me o telemóvel sem mandado judicial, eu preferia ser arrastada pelas ruas.” (in Visão).
Marques Guedes, presidente da Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, em declarações à Renascença, arrasou a proposta do Governo sobre a aplicação. Entre várias críticas sobre as dúvidas constitucionais, aquele deputado refere-se a uma lei que não poderá ter eficácia: «Para ter qualquer condição de eficácia seria necessário que houvesse uma obrigação legal, que não faz sentido nenhum, de as pessoas andarem com telemóvel. Mesmo as pessoas que têm telemóvel podem não andar com telemóvel, podem deixá-lo em casa. Não há nenhuma obrigação legal para que se ande, no dia-a-dia, com telemóvel”.
Lendo os sinais de Belém, da sociedade e do interior do próprio PS, o Governo – temendo um chumbo em toda a linha da sua proposta – recuou ou, por outra, activou a solução «b» em carteira.
Há uma grande diferença entre descarregar e usar efectivamente a aplicação. A eficácia do uso da aplicação depende, em grande medida, das chamadas «habilidades digitais básicas».
Por outro lado, será que as questões sobre privacidade podem ser consideradas menos urgentes em detrimento do contexto em si? Este é um ponto de discórdia.
De acordo com um artigo de opinião publicado no Jornal Médico: «É importante salientar que a aplicação irá sinalizar a possibilidade e não o contacto de alto risco propriamente dito, definido pela Norma 015/2020». Ali se questiona também «o que deverá fazer um indivíduo assintomático quando é sinalizado pela aplicação de que teve um contacto de elevado risco? Não existem orientações.»
Defender a Constituição de Abril é denunciar os ataques aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. É denunciar a falta de investimento na Saúde (na contratação de profissionais), é denunciar os constrangimentos do acesso universal aos cuidados básicos de saúde. É exigir o direito à segurança e à saúde no trabalho. A proposta do Governo, sobre esta aplicação de telemóvel, esconde a incompetência política na gestão da pandemia e faz-nos recordar os versos de José Gomes Ferreira:
«Acordai/ acordai/ homens que dormis/ a embalar a dor (…)».
José Luz