A Comuna de Paris nasceu há 150 anos

Praça do Hôtel de Ville, proclamação da República a 4 de Setembro de 1870.

De 18 de Março a 28 de Maio de 1871, a classe operária de Paris foi dona do seu destino, construiu o seu próprio Estado e legou aos trabalhadores de todo o mundo realizações surpreendentes, ainda mais nas terríveis condições em que estava a capital francesa naquele momento. Uma experiência de apenas 72 dias, mas a primeira do género na História.

Em 19 de Julho de 1870, a França e a Prússia entraram em guerra. O pretexto foi a sucessão monárquica na Espanha. A França vivia sob o império de Napoleão III, regime bonapartista que tinha entrado em várias aventuras militares, inclusive no longínquo México. Já a Prússia (hoje parte da Alemanha, de cuja unificação foi o eixo), sob o governo de Bismarck, vinha de guerras contra a Dinamarca e a Áustria. A guerra franco-prussiana teve curta duração. O Exército francês foi derrotado em apenas seis semanas. A batalha de Sedan, a 2 de Setembro, selou a vitória prussiana com a rendição e prisão de Napoleão III.

Mas a paz ainda não tinha sido declarada. As tropas prussianas ocupavam boa parte da França e sitiavam a sua capital, mas Paris continuava armada com a sua Guarda Nacional, composta por gente do povo. A 4 de Setembro, a República é proclamada, iniciando-se um período em que a burguesia francesa vai demonstrar toda a sua cobardia e traição.

Como é assinalado por Marx em “A guerra civil em França” (mensagem da Associação Internacional dos Trabalhadores, publicada dois dias após o esmagamento da Comuna), “Paris armada era a revolução armada. Uma vitória de Paris sobre o agressor prussiano teria sido uma vitória dos operários franceses sobre o capitalista francês e os seus parasitas estatais”.

Assim, Paris foi submetida a todo o tipo de manobras, ameaças e agressões, com o apoio de Bismarck e das outras burguesias europeias. Mas o povo da capital resistiu e não entregou as armas. Os burgueses de Paris fugiram em massa. Foi nessas condições que, a 18 de Março de 1871, o Comité Central do governo de Paris anunciou:

“Os proletários de Paris, confrontados com os fracassos e com as traições das classes dominantes, compreenderam que é chegada a hora de salvar a situação, tomando nas suas próprias mãos a direcção dos negócios públicos (…). Compreenderam que é seu dever imperioso e seu direito absoluto tornar-se donos dos seus próprios destinos, formando o poder governamental”.

Nascia assim a Comuna de Paris.

Medidas revolucionárias

As medidas adoptadas pela Comuna estavam condicionadas pela situação concreta daqueles dias: uma cidade sitiada pelas tropas prussianas, isolada do resto da França pela própria burguesia francesa – chefiada pelo infame Thiers e cujos representantes se reuniam em Versalhes, palácio dos reis escorraçados pela Revolução Francesa de 1789; uma classe operária ainda em formação; e, por fim, tratava-se de uma experiência inédita para o proletariado internacional.

As primeiras medidas da Comuna constituem as bases para a construção de um Estado operário: abolição do Exército, substituído pelo povo em armas (homens e mulheres, entre os 15 e os 60 anos); todos os funcionários eram eleitos e podiam ser demitidos a qualquer momento, e nenhum deles podia receber mais do que o salário de um operário. A burocracia tornava-se assim servidora do povo, e não um corpo parasitário. A Comuna demonstrava, na prática, que não bastava a classe operária tomar o poder de Estado existente, mas que devia construir o seu próprio Estado, sobre os escombros do Estado burguês (1).

A Comuna lançou apelos aos operários de toda a Europa e teve, entre os seus ministros eleitos, um operário alemão, afirmando o seu carácter internacionalista. Ela liquidou o Comando da Polícia, os tribunais, o Poder legislativo municipal, os intermediários na comercialização de imóveis, e decretou a gratuidade de todos os serviços públicos essenciais, que passaram a ficar sob controlo das Juntas populares de bairro. Proclamou a amnistia geral e o fim da pena de morte. Durante os dias de existência da Comuna, Paris ficou livre de furtos, assaltos e assassinatos.

As propriedades abandonadas pelos burgueses foram expropriadas e colocadas ao serviço da comunidade. Foi decretada a diminuição da jornada de trabalho. A Comuna era um exemplo para toda a França, e houve diversas tentativas de criação de comunas em várias regiões do país.

Mas o velho mundo, com as suas maquinações e repressão sangrenta, não permitiu o seu desenvolvimento.

As mulheres no centro da luta

Em “A guerra civil na França”, Marx denuncia o comportamento depravado de homens e mulheres da burguesia francesa, com madames aplaudindo os massacres contra os communards (assim eram conhecidos os defensores da Comuna): “Em seu lugar, as verdadeiras mulheres de Paris voltaram a emergir: heroicas, nobres e devotadas como as mulheres da Antiguidade. Trabalhando, pensando, lutando e sangrando”.

Quem eram essas mulheres? Operárias, artesãs, pequenas comerciantes, elas entregaram-se com entusiasmo à tarefa de construir uma nova sociedade. Enfrentaram com coragem a prisão, a deportação e mesmo a morte, não sem antes terem deixado gravada a sua presença nas medidas da Comuna: fim da submissão das crianças e das mulheres à autoridade do pai: “O casal constitui-se livremente com o único fim de procurar o prazer comum” (artigo 12 da Constituição da Comuna). A Comuna proclamou o direito à educação sexual desde a infância, o direito ao aborto e à contracepção.

Num artigo publicado no 20º aniversário da Comuna, em 1891, Engels escreveu: “Olhai para a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!”

O massacre da Comuna

A Comuna sempre viveu sob ameaça dos poderosos. Mas a burguesia francesa não tinha ainda os meios para uma confrontação aberta. A ocasião surgiu com o Tratado de Frankfurt, de 10 de Maio de 1871, que acabou oficialmente com a guerra. Nesse Tratado, o agora Estado alemão unificado (como resultado da vitória na guerra franco-prussiana), obtinha concessões territoriais e uma grande indemnização. Em contrapartida, Bismarck vai libertar dezenas de milhares de soldados franceses prisioneiros de guerra, para que fossem utilizados pelo Governo burguês de Versalhes para esmagar a Comuna de Paris. Dessa forma, as burguesias francesa e alemã – que, até há pouco tempo, estavam em guerra – uniram-se contra o proletariado parisiense.

O que se seguiu, perante a resistência heroica dos communards, foi um massacre pavoroso. Pelo menos 20 mil homens, mulheres e crianças foram assassinados pelas tropas de Versalhes na “semana sangrenta” (21 a 28 de Maio) que pôs fim à Comuna.

A primeira experiência de Estado operário da História deixou a sua marca

Passados 150 anos, as palavras de Marx no final de “A guerra civil em França” mantêm toda a sua força:

“A Paris dos Trabalhadores, com a sua Comuna, será eternamente celebrada como a precursora de uma nova sociedade. Os seus mártires estão gravados no grande coração da classe operária. Quanto aos seus exterminadores, a História já os acorrentou àquele eterno pelourinho, do qual todas as preces dos seus clérigos de nada servirão para os redimir”.

Artigo da autoria de Roberto Salomão, do jornal “O Trabalho” – cuja publicação é da responsabilidade da Secção brasileira da 4ª Internacional (corrente do PT) – na sua edição nº 881, de 18 de Março de 2021.

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(1) Um artigo do jornal Público (de 18/3/2021), da autoria de Paulo Narigão Reis, sintetiza assim as medidas decretadas pela Comuna de Paris: “Entre as medidas defendidas pela Comuna estão a separação entre o Estado e a Igreja, a adopção da bandeira vermelha como símbolo nacional, a substituição da Polícia pela Guarda Nacional, o fim do serviço militar obrigatório e do Exército regular, a abolição da pena de morte, a instituição da igualdade civil entre os géneros, a secularização e gratuidade da educação para toda população, a criação da Segurança Social, a redução da jornada de trabalho e o fim do trabalho nocturno, a fixação de salários mínimos para os trabalhadores, a expropriação de residências e fábricas sem uso e o controlo dos preços dos alimentos.”