A resistência dos povos da Europa perante a catástrofe

A guerra aberta desencadeada na Europa, após a invasão brutal da Ucrânia pelo exército de Putin, foi a gota que fez transbordar o copo de todas as crises acumuladas. Porque nem a destruição de empregos e de forças produtivas, nem a catástrofe sanitária agravada pela pandemia, nem a ruptura do fornecimento de energia, nem os ataques a todas as conquistas sociais (tais como pensões, salários ou acordos de negociação colectiva), nem a inflação galopante começaram a 24 de Fevereiro… Nessa data, essas situações aceleraram levando a mortes em massa e ao desmantelamento de todo o conjunto das relações sociais, políticas e económicas do continente europeu, com repercussões na globalidade do mercado mundial.

A guerra pelos mercados, pelo controlo da energia e dos principais produtos alimentares – travada entre os EUA (que, com a NATO, subjuga todos os governos europeus) e a oligarquia que saqueou a riqueza social da Rússia – tem um alcance mundial, porque, tal como o afirmou claramente a Cimeira da NATO de 29-30 de Junho, o principal rival/inimigo é a China. Biden precisa de subjugar a Europa a fim de enfrentar a China, perante a crise de decomposição que atinge a sociedade norte-americana.

O alinhamento/submissão de todos os governos dos países da NATO em relação aos EUA, na guerra contra a Rússia e na sua guerra comercial contra a China, vai contra os seus próprios interesses.

Tudo parece indicar que será a indústria europeia – atingida pela falta de fornecimento de energia e a “transformação verde” forçada – a ver acentuado o seu declínio.

Nesta Carta semanal e em todas as nossas publicações e iniciativas (tais como o Encontro de Madrid, a 25 de Junho) temos afirmado e defendido que o único interesse dos trabalhadores e dos povos da Europa é rejeitar qualquer “União Sagrada” com os governos belicistas, rejeitar os orçamentos de guerra, colocando a questão da necessidade de unidade em defesa das suas reivindicações mais elementares – dos salários à liberdade sindical e política – numa linha de internacionalismo operário, seguindo a tradição deste último.

É a linha da “Guerra à Guerra”, onde não existe um dos lados a favor dos povos, porque esta guerra é contra todos os povos. Antes de mais, é contra o povo ucraniano e o povo russo.

O objectivo dos EUA: destruir a Europa

Desde o fim da Primeira Guerra Mundial, o objectivo declarado do Estado norte-americano era reduzir a Europa e a sua indústria à expressão mínima, e só a luta de classes o impediu.

Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA contribuíram para a reconstrução da economia europeia e dos seus Estados por medo da revolução proletária, numa situação em que a derrota do Nazismo arrastou consigo as burguesias europeias e a classe operária tinha assumido a luta pelo poder, sob várias formas.

O desejo dos generais norte-americanos era transformar a Alemanha (o coração da indústria europeia) num “campo de batatas”. Planos de reconstrução da Europa, tais como o Plano Marshall, foram desenvolvidos sob rigoroso controlo dos EUA.

Hoje, com um mercado mundial em aberta contracção, o controlo deste mercado e a brutal disputa para o conseguir, fez com que a Administração de Biden tenha aproveitado esta ocasião para fazer pagar aos países europeus – à burguesia europeia, e, claro, à classe operária europeia, com os seus direitos e conquistas – a política belicista, os orçamentos de guerra e o rearmamento.

O que não constitui um instrumento de “desenvolvimento” das forças produtivas, um elemento que impulsione a economia como um todo, mas sim um factor agravante da decomposição do mercado.

A crise de abastecimento, a ruptura da cadeia alimentar e a anarquia do mercado da energia favorecem apenas as grandes empresas, os monopólios e as multinacionais – que os Estados são incapazes de controlar – são, sem dúvida, a expressão mais acabada do caos que o capitalismo representa.

Não é coincidência que os problemas estejam concentrados na Alemanha, o coração industrial da Europa, com as suas relações estreitas com todos os países vizinhos (Eslovénia, República Checa, Áustria, Suíça,…) e com toda a indústria europeia, actualmente sob ameaça.

O profundo rasgão que atravessa todas as instituições do Estado burguês alemão e todos os seus partidos tem esta base material. O objectivo desta Carta não é fazer um estudo detalhado sobre este tema, mas poderíamos resumi-lo no que disse Oskar Lafontaine (um líder que rompeu com o partido Die Linke – “A esquerda” – e participa num novo agrupamento que contesta a política de rearmamento do chanceler social-democrata Scholz).

De facto, há algumas semanas atrás, Lafontaine declarou: “Putin está a esfregar as mãos, porque as sanções estão a encher os seus cofres. Os apelativos anúncios do ministro da Desindustrialização, Habeck, segundo o qual se poderiam conseguir novos fornecedores de energia do Qatar, são apenas vento (…). O objectivo da política norte-americana é evitar a combinação da tecnologia alemã com as matérias-primas russas.”

Lafontaine resume em poucas palavras, numa lógica económica racional, que as relações de troca entre países produtores de matérias-primas e países industrializados seriam normais. Mas o capitalismo não é racional: a procura do lucro, a luta para combater a queda da taxa de lucro, a tentativa de ficar com toda a mais-valia – o motor da luta de classes – em suma, a guerra pelo controlo dos mercados, destrói toda a lógica económica racional. Isto significa, em última análise, a necessidade da reorganização da sociedade segundo um novo eixo, ou seja, a necessidade de expropriar os meios de produção, de distribuição e de troca.

Neste sentido, nunca os povos da Europa – após a Segunda Guerra Mundial – estiveram tão unidos em termos dos problemas a resolver; mas é impossível fazê-lo num quadro nacional, pois isso só é possível na perspectiva dos Estados Unidos Socialistas da Europa, que acabe com o poder dos gângsteres das multinacionais, dos oligarcas corruptos e dos governos e instituições ao seu serviço.

A queda de Draghi, um sintoma para todo o continente europeu

A 20 de Julho, em Itália o governo de Draghi caiu. Governo formado em Fevereiro de 2021, o qual não resultou de uma eleição mas sim de um acordo entre partidos – desde a extrema-direita ao Partido Democrático (antigo PCI).

Tal como o jornal The New York Times analisou dias mais tarde, trata-se de uma “nova época de caos político, num período crítico para a União Europeia”.

Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu (BCE), foi uma autoridade europeia para a defesa das instituições e do euro.

Apresentou-se em Itália como o garante das “reformas” a aplicar – ou seja, a implementação de um plano de austeridade que poria fim aos direitos conquistados pelos trabalhadores italianos, e mesmo inclusive à luta pela paz e pela liberdade. Não devemos esquecer que a Constituição italiana, de 1947, declara solenemente que “a Itália nunca mais participará numa guerra”.

A Itália tem sido o país onde têm existido greves nos portos marítimos – Génova, Livorno,… – contra o envio de armas para a Ucrânia, e onde 52% da população é a favor da paz “sem condições”, de acordo com números oficiais.

Draghi participou na Cimeira da NATO, com 30 outros líderes mundiais, a 29-30 de Junho em Madrid. E todos – de livre vontade ou com relutância – aceitaram os ditames de Biden. Ditames que estão em contradição com o sentir dos povos, em particular do povo italiano.

Draghi caiu em resultado desta contradição, que inclui as muitas voltas e reviravoltas da política italiana, em particular o colapso total dos partidos tradicionais – e, nomeadamente, dos chamados partidos de esquerda – o que, eleitoralmente, no imediato só pode dar uma “vitória” à extrema-direita. Em contraste, por exemplo, com a França ou a Espanha – onde existem regimes de origem bonapartista ou fascista – em Itália existem instituições que traduzem o voto popular, expressando o caos existente na sociedade.

Mas, um mês após a unanimidade em Madrid, em Junho, que governo europeu não está em crise? A submissão aos ditames de Biden não resolve nenhum problema, nem unifica. Pelo contrário, aumenta a crise e a decomposição em todos os países.

Resistência e reorganização

Em pleno Verão, há inúmeros elementos de resistência, não só por parte dos trabalhadores mas também de sectores médios da população – ameaçados pelas consequências da crise – tais como os agricultores nos Países Baixos, na Alemanha ou em Espanha. Demoraria muito tempo detalhar o panorama a nível continental e em cada país. Mas há lições comuns:

– Em nenhum país a classe operária está derrotada.

– Os líderes políticos e sindicais chamados de esquerda enfrentam imensas dificuldades em impor a “União Sagrada” com o capital – ou a sua tradução social, como é o caso em Espanha com o “Pacto de Rendimentos”. Em muitos casos, como em França, todos os sindicatos se pronunciam contra a reforma do Sistema público de pensões de aposentação.

– Do lado dos governos, são em particular os partidos social-democratas ou partidos que usurpam o nome do socialismo, que estão na linha da frente da política de belicismo arrastando os partidos “verdes”, e na maioria dos casos as novas organizações: Podemos (Espanha), Bloco de Esquerda (Portugal), Syriza (Grécia),…

– Nestas condições, a emergência de movimentos de ruptura ligados à dinâmica da mobilização dos trabalhadores é um elemento decisivo.

A Nova União Popular Ecológica e Social (NUPES) em França, que está a preparar uma marcha em Paris, em Outubro, em defesa das reivindicações; o sector do partido Die Linke, que se opõe aos orçamentos de guerra e está a preparar uma Conferência em Outubro; a constituição em Roma, em 9 de Julho, do Movimento “Verso la Unione Popolare” (Rumo à União Popular), liderado pelo ex-presidente da Câmara de Nápoles, são alguns destes sinais de reorganização do movimento operário.

É nesta perspectiva que damos continuidade à Conferência de Emergência contra a Guerra, de 9 de Abril, e ao Encontro Operário Europeu de 25 de Junho, em Madrid.

Carta Semanal do Comité Central do Partido Operário Socialista Internacionalista (POSI) – Secção da 4ª Internacional em Espanha – nº 898, de 1 de Agosto de 2022

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