A Lei que reabre a porta à censura em Portugal

Sob o nome de “Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital”, a Assembleia da República adoptou a Lei 27/2021, no passado dia 8 de Abril, votada favoravelmente por todos os deputados (do PS, do BE, do PSD, do CDS, do PAN e das deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues), à excepção dos do PCP, do PEV, do Chega e da Iniciativa Liberal, que se abstiveram.

Segundo o seu normativo, esta Lei visa “assegurar o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Acção contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação.”

“Desinformação” que é definida deste modo, no seu artigo 6º: “Toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.”

Fica assim aberta a porta a todo o tipo de limitação da liberdade de expressão. Trata-se, na prática, da primeira Lei – adoptada depois da Revolução de Abril de 1974 – que reabre a porta da censura.

Mas, é preciso abordar esta problemática de um ponto de vista mais geral e global.

Por um lado, há casos recentes noutros países: por exemplo, em Espanha foi adoptada, em 2015, a Lei de Segurança e Protecção da Cidadania (a chamada Lei-mordaça); e, em França, está em discussão a Lei de Segurança Global.

Por outro lado, como afirma Paulo Casaca (1), “aquilo para que é fundamental olhar é a acção do lóbi organizado pelo oligopólio das empresas tecnológicas, muito em particular a Alphabet, empresa mãe da Google, que já provou ser capaz de produzir a mais tóxica das desinformações em nome da luta contra a desinformação”.

Citemos de novo Paulo Casaca (2): “Grande parte do espaço informativo com impacto em Portugal não é produzido dentro das suas fronteiras, nem sequer necessariamente no espaço europeu, pelo que é indispensável pensar em modelos alternativos para lidar com os eventuais problemas que aconteçam no seu âmbito.

(…) No nosso país, o Público foi das empresas financiadas pelo Google e em França foram dezenas, com impactos que são devastadores para o pluralismo, a liberdade de expressão e a imparcialidade. As empresas tecnológicas ficaram com o grosso do mercado publicitário de que vivia a Comunicação social, sendo que cada vez menos pessoas estão dispostas a pagar essa informação, pelo que as empresas tecnológicas podem permitir-se, com esses Fundos, comprar a fidelidade da Comunicação social tradicional.

(…) O primeiro cuidado a ter aqui presente é não convidar a raposa para saber como se protegem as galinhas, ou seja, assegurar que as principais empresas que controlam a informação mundial não vão ser encarregues de controlar eventuais excessos aí cometidos, o que é precisamente o que se faz com esta lei 27/2021.”

Só pode ser por ironia que a generalidade dos órgãos da Comunicação social em Portugal não considerou como importante a aprovação desta lei 27/2021, silenciando inclusive os pareceres negativos que, tanto a Entidade Reguladora para a Comunicação social – ERC (3) como o Conselho Superior do Ministério Público (4), assumiram sobre os prjectos de Lei que lhe deram origem. Foram necessárias as tomadas de posição de Pacheco Pereira (5) e de António Barreto (6) para que este facto passasse a ter repercussão pública.

A melhor “vacina” contra o vírus da “desinformação”

De qualquer modo, consideramos que não há nenhum “antídoto” contra o vírus da “desinformação” e a sua propagação (nomeadamente através das chamadas “redes sociais”) senão a formação generalizada de cidadãos cultos e com sentido crítico, o que só pode ser conseguido através de um Sistema de Ensino público democrático e de qualidade. Ou seja, tudo o que a Escola Pública tem sido impedida de fazer, no processo de destruição das conquistas do 25 de Abril.

—————————

(1) “Os patrões do ciberespaço e a desinformação”, jornal O Tornado, 15 de Maio, 2021

(2) “A liberdade de expressão sob fogo”, jornal O Tornado, 7 de Junho, 2021.

(3)“Deliberação ERC/2020/212”, 21 de Outubro, 2020.

(4) “Parecer do CSMP sobre os Projectos-Lei do PS e do PAN”, 10 de Outubro, 2020.

(5) “A institucionalização da censura”, José Pacheco Pereira, revista Sábado, 27 de Maio, 2021.

(6) “A Inquisição, a Censura e o Estado”, António Barreto, jornal Público, 29 de Maio, 2021.

Ataque à liberdade de manifestação

No quadro do escândalo decorrente do acto inqualificável, agora por todos comentado, da Câmara de Lisboa entregar – às polícias e às embaixadas – os nomes e os contactos dos organizadores de manifestações públicas, o Governo vem afirmar ser necessário “modernizar a Lei que regula o direito de manifestação”, datada de 1974.

Quer dizer, não lhe chega a violação do princípio constitucional de respeito pelas liberdades individuais e a garantia de segurança de qualquer cidadão. Quer aproveitar-se desta situação completamente intolerável para avançar com uma nova Lei – a juntar à que reabre a porta à censura – que condicione a liberdade de manifestação conquistada com a Revolução de Abril!

Quem pode aceitar isto?

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s