O negócio das vacinas contra o COVID-19

Vacinas: uma (pequena) parte dos acordos secretos revelada por engano (1)

Por engano (um tweet inoportuno, de 17 de Dezembro), a Secretária de Estado para o Orçamento da Bélgica revelou uma informação mantida cuidadosamente escondida até agora: por quanto é que a União Europeia (UE) e os governos pagaram as vacinas contra o Covid desenvolvida pelas grandes empresas farmacêuticas.

A UE tinha, de facto, assinado acordos de confidencialidade, e pode ver-se porquê: a diferença de preço é de 1 para 8, desde os 1,78€ por unidade da AstraZeneca, aos 14,68€ da Pfizer-BioNtech.

Esta diferença não se deve tanto à tecnologia mais ou menos inovadora das vacinas mas sobretudo à nacionalidade dos laboratórios, pois é sabido que“as empresas americanas praticam tarifas mais elevadas, mesmo para vacinas mais convencionais”, diz o jornal francês Le Monde, citando especialistas na matéria. O diário salienta também que “a Comissão (Europeia) se comprometeu a pagar, após a aprovação das vacinas pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA), todas as encomendas efectuadas, qualquer que seja no final a eficácia dos produtos. Ela prometeu também não revelar a tarifa finalmente acordada, a fim de permitir às empresas negociarem livremente com outros actores internacionais.”

Negócios são negócios…

Cooperativa ou condomínio (2)

Só o Canadá encomendou vacinas suficientes para cinco vezes a sua população, enquanto os 70 países mais pobres só conseguirão vacinar uma em cada dez pessoas.

Aflorou-se um debate, mais ou menos ideológico, sobre o papel do mercado e do Estado na rapidez histórica com que chegámos à vacina. Além de haver razões científicas para esta velocidade – as investigações não começaram do zero –, os factos tendem a cumprir uma função meramente ilustrativa nestas contendas um pouco infantis.

Porque não houve espaço para escolhas. Procurou-se apenas encontrar a vacina nas condições preexistentes: um Sistema baseado em multinacionais farmacêuticas, com investigação que cruza público e privado, e patentes que garantem retorno financeiro ao privado. A isto, acrescentou-se um apoio directo em subsídios e contratos de pré-reserva de doses para o desenvolvimento das vacinas, garantido pelos Estados em valores estratosféricos nunca vistos, reduzindo substancialmente o risco financeiro das farmacêuticas.

Em geral, as encomendas apoiadas não vieram com limites ao preço nem exigências de partilha da propriedade intelectual. Um negócio imposto pela necessidade que pode, é verdade, ter abreviado a chegada das vacinas. Quem pagou quer as vacinas para si. As primeiras centenas de milhões de doses foram arrebatadas pelos EUA, Reino Unido e União Europeia. Rússia e China terão as suas. 90% da produção da

vacina da Pfizer e toda a produção da Moderna em 2021 já foi adquirida pelos países ricos. Só o Canadá encomendou vacinas suficientes para cinco vezes a sua população, enquanto os 70 países mais pobres poderão só conseguir vacinar uma em cada dez pessoas.

Os acordos da COVAX (3) com a AstraZeneca, Novavax e Sanofi lidam com atrasos que atiram a disponibilidade de vacinas para o final de 2021. Milhares de milhões poderão ficar sem vacinas até 2024, dizem documentos internos da OMS. É verdade que a AstraZeneca se comprometeu a disponibilizá-las de forma não lucrativa a países em vias de desenvolvimento, mas mesmo isso só chegaria a 18% da população em 2021. Uma empresa não chega e várias ONG pedem que as farmacêuticas disponibilizem a tecnologia, para descentralizar a produção. Caso contrário, a produção será demasiado lenta.

São evidentes para todos as vantagens da cooperação que, no caso da União Europeia, tiveram um grau de coordenação inédito. Uma excelente notícia. Mas estamos sempre a falar de nós, os países ricos.

A diferença entre isto e uma verdadeira solidariedade internacional é a diferença entre uma cooperativa e um condomínio.

O egoísmo dos países ricos, que açambarcam as vacinas, é imposto pelos seus cidadãos, que naturalmente querem estar protegidos. E por um sistema que baseia o desenvolvimento científico na propriedade intelectual. Mas ele terá um preço. Uma pandemia não conhece fronteiras. Esta acabará por nos bater à porta, pelo menos até atingirmos a imunidade de grupo.

Qual será a tendência? A de fechar as fronteiras aos que vêm dos países pobres, para nos protegermos. Junte-se isto com a pressão migratória por causa das alterações climáticas e a crise social e económica à escala global, e tudo se vai desenhando para construir uma distopia política onde navegarão as mais sinistras criaturas.

Há coisas inevitáveis. Outras, resultam de escolhas que fazemos agora. Nós escolhemos proteger o condomínio.

Já se compraram tantas doses de vacinas para a covid-19 quantos os habitantes que há na Terra (4)

“É bastante claro que os países mais ricos escolheram pensar em si próprios e lançaram-se numa corrida para comprar, por antecipação, tantas doses de diferentes vacinas quantas seja possível. Isto quer dizer que terão a vacina antes de quaisquer outros”, disse ao Público Els Torreele, do Institute for Innovation and Public Purpose, do University College de Londres, formada em Bioengenharia e Biomedicina, mas que faz investigação sobre direitos humanos, inovação e acesso aos medicamentos. No início de Novembro, publicou uma análise na revista Development sobre como a “corrida” às vacinas está a expor as deficiências do sistema de Inovação em Medicina.

Em vez de aumentar a inteligência colectiva, defende Els Torreele, este sistema de “business as usual” assenta na competição entre vacinas protegidas por patentes e permite que seja baixado o nível de exigência na segurança e eficácia dos produtos, o que põe em causa a saúde das pessoas e reduz a confiança.

Apesar das belas palavras e dos alertas contra o “nacionalismo das vacinas”, foi esse o caminho seguido – com o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a desbravar caminho, quando decidiu até sair da Organização Mundial de Saúde e desligar-se de tudo e todos.

————————————-

(1) Nota publicada no Suplemento ao semanário francês “Informations Ouvrières” – Informações operárias – nº 635, de 22 de Dezembro de 2020, do Partido Operário Independente de França.

(2) Artigo de Daniel Oliveira, no semanário Expresso, de 24 de Dezembro de 2020.

(3) O mecanismo COVAX pretende garantir que pelo menos 20% da população mundial será imunizada contra o novo coronavírus, no fim de 2021. Foi lançado na Primavera pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e outros organismos (como a aliança GAVI, que pretende facilitar o acesso às vacinas nos países mais pobres, e a CEPI, uma parceria para financiar e coordenar o desenvolvimento de novas vacinas para prevenir e conter epidemias de doenças infecciosas).

(4) Citações do jornal Público, de 30 de Novembro de 2020.

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s