
Há pouco mais de um ano, saíam da Bolívia Evo Morales e o seu vice-presidente Álvaro Garcia Linera – rumo ao México (e depois à Argentina) – por sugestão do Alto Comando das Forças Armadas. Evo acabava de ganhar as eleições para o seu quarto mandato consecutivo e era alvo de manifestações violentas da classe média reacionária e de motins policiais, de que renunciasse para evitar um “banho de sangue”. Enquanto isso, mobilizações populares de indígenas e de trabalhadores enfrentavam uma brutal repressão, em várias regiões do país, enquanto gritavam “Evo no estás solo!” (Evo não estás sozinho!).
Desde o “exílio” Evo e Linera continuaram dirigindo o seu partido (o MAS – Movimento Ao Socialismo), denunciando o papel da OEA (Organização dos Estados Americanos) no golpe que colocou na Presidência interina a senadora Jeanine Añez, numa aberta violação da Constituição emanada do primeiro mandato presidencial de Evo.
O governo de Añez, abertamente pró-imperialista e racista contra a maioria indígena, foi apoiado pelas Forças Armadas, pelos empresários e pelos sectores de direita e ultra-direita minoritários, social e politicamente, no país. Esse Governo continuou a reprimir e a atacar as massas populares até à chegada da pandemia ao país.
Evo e Linera sempre orientaram o MAS e a sua base a “esperar por novas eleições”, cuja data foi adiada várias vezes sob a alegação da pandemia, aceitando a proibição dos golpistas de que eles próprios fossem candidatos. Uma primeira candidatura designada pelo MAS, a de um dirigente cocalero (plantador de coca) jovem da região do Chapare (bastião de Evo), foi rapidamente substituída pela fórmula Luís Arce e David Choqueuanca (ex-chanceler), ministros do governo de Evo. Arce teve a sua trajectória marcada por acordos estabelecidos com o agro-negócio de Santa Cruz e por um “crescimento económico” que lhe rendeu elogios do FMI.
O facto é que as massas populares e sectores fundamentais da classe trabalhadora – apesar da posição inicial da COB (Central Operária Boloviana) de pedir ao “companheiro Evo” que renunciasse para evitar uma guerra civil – derrotaram nas urnas, e logo no primeiro turno (51% dos votos), Carlos Mesa (centro-direita, 30%), Camacho (o “Bolsonaro boliviano”, 14%), e isso apesar da desistência, a favor de Mesa, de dois outros candidatos da direita oligárquica.
A vitória eleitoral do MAS e de Luís Arce não pode ser atribuída nem a uma pretensa “táctica genial de Evo”, tampouco às teorias de Garcia Linera sobre o “capitalismo andino” ou sobre um “Estado plurinacional”. Ela deve-se, fundamentalmente, à resistência das massas populares e trabalhadoras da Bolívia contra o golpe, desde o seu início, a qual continuou depois da saída de Evo e Linera do país, inclusive no período da pandemia. Ela deve ser atribuída aos indígenas, aos mineiros, ao povo trabalhador que jamais aceitou o golpe promovido por uma elite “branca” odiada pelo seu racismo anti-indígena (menos de 20% da população do país é “branca”) e pelos privilégios económicos que detém (propriedade privada de minas e agro-negócio exportador), apoiada por umas Forças Armadas – que, historicamente, sempre se envolveram em golpes de Estado contra o povo – e pelo imperialismo dos EUA (através da OEA, que agiu para “enviesar” as eleições de 2019, a mando do governo de Trump).
Secundariamente, mas também como efeito da resistência das massas ao golpe, houve a divisão das candidaturas de direita e extrema-direita – cada qual representando interesses oligárquicos regionais, só unidas pela submissão ao imperialismo dos EUA. Vale a pena lembrar que o imperialismo norte-americano também se encontra numa situação de crise, com o governo de Trump em final de mandato e sacudido pela explosão social do “Vidas negras importam”, em plena pandemia e em plena campanha para as eleições de 3 de Novembro.
Todos os governos dos países vizinhos da América do Sul – excepto o de Bolsonaro, que não se pronunciou – reconheceram o resultado eleitoral na Bolívia. Até o Departamento de Estado dos EUA, que arreganha os dentes contra a Venezuela, reconheceu o resultado e declarou estar disposto a colaborar com o novo Governo eleito.
De um ponto de vista regional (isto é, sul-americano), a retoma do governo da Bolívia pelo MAS veio somar-se à recente vitória da Frente Ampla (em Montevidéu, capital do Uruguai), dando alento à luta dos povos por nações livres do jugo imperialista e soberanas.
Só o desenvolvimento posterior da situação na Bolívia pode responder às várias questões que estão colocadas: O que fará o MAS com o poder reconquistado graças à resistência das massas bolivianas ao golpe? Os golpistas serão punidos pelos seus crimes contra o povo? As Forças Armadas terão os seus altos comandos golpistas expurgados e serão reestruturadas ao serviço do povo? As ilusões num “capitalismo andino” serão substituídas por uma política que ataque os privilégios da classe dominante local e as posições do imperialismo no país, em benefício da satisfação das reivindicações históricas do povo boliviano? Quem viver, verá.
22 de Outubro de 2020
Análise de Júlio Turra sobre a importante derrota eleitoral dos golpistas na Bolívia. Júlio Turra é membro da Comissão executiva da Central Única dos Trabalhadores (CUT) do Brasil e militante da Secção brasileira da 4ª Internacional (corrente do Partido dos Trabalhadores – PT)