Cimeira da União Europeia, realizada em Bruxelas entre 18 e 21 de Julho de 2020.
Quando foi assinado o Acordo europeu, na madrugada de 21 de Julho, Antonio Garamendi, presidente da CEOE (1), declarou que era “um bom acordo para a Espanha e para a Europa”.
Opinião compartilhada pelos meios de comunicação social (a menos de algumas nuances), o governo de Sánchez, os partidos da coligação e da oposição, os secretários-gerais dos sindicatos, os altermundialistas, e todo o tipo de defensores do Sistema de “mercado livre” (ou seja, o capitalismo imperialista) e o Regime monárquico. Tanta unanimidade, sem dúvida que só pode significar gato escondido.
Com efeito, no dia seguinte as coisas já não estavam tão claras.
Os protestos e a hipocrisia do Parlamento Europeu
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tão sorridente no dia anterior, na sessão de 23 de Julho do Parlamento Europeu parecia transformada. O facto de o “Acordo” incluir uma redução substancial do Orçamento plurianual (2021/2027 da União Europeia) dos 1,3 mil milhões de euros previstos para 1,074 não é um detalhe. Ela declarou que isto era “uma pílula difícil de engolir”. E, como foi assinalado no debate havido nesse Parlamento, seriam reduzidos “programas comunitários” para a Saúde (em 7.700 milhões), quando parece que há uma epidemia – o que quer dizer que cada Estado terá de combatê-la por sua conta. Em investigação, 8.500 milhões. Quer dizer, que essa investigação seja feita pelas empresas farmacêuticas. E também cortes no Clima (onde pára o discurso ecologista?), na Defesa, na ajuda às empresas em crise, no montante de 26.000 milhões (ou seja, que cada Estado apoie as que quiser, num quadro de desindustrialização generalizada – a Alemanha investe 33 vezes mais que a Espanha em subsídios às empresas, acompanhados de despedimentos, numa economia que é apenas quatro vezes maior). 40.000 milhões a menos para a PAC (Política Agrícola Comum), e também outros tantos milhões para os Fundos Regionais de Coesão, que beneficiam sobretudo os países do Leste (Polónia, Bulgária, Roménia, Hungria) – daí o “debate” hipócrita sobre os países que não respeitam o “Estado de Direito”. Como dizia um funcionário da UE nos corredores (do Parlamento), trata-se de uma “desculpa para não falar da redução de subsídios”.
Porque, sejamos claros, é no mínimo cínico que governos como o francês (ou o espanhol) critiquem estes países por não respeitarem as liberdades, depois da utilização repressiva do Estado de alarme (em particular, no nosso país, com a Lei Mordaça). Mas, é claro, para justificar o Orçamento vale tudo.
Alguns deputados europeus ameaçaram não votar a favor do Orçamento… ainda que, claro, as negociações destes últimos dias tenham demonstrado quem manda.
Quem manda?
Recordemos que o plano para o Fundo de Recuperação foi proposto, bilateralmente, por Merkel e Macron – a pedido das Associações patronais dos seus dois países – o qual contava com apoios sindicais (evidentemente, sem qualquer debate em nenhuma instância sindical).
Os governos mais poderosos, respondendo aos interesses do capital financeiro, fixaram as normas, o montante e as proporções (ainda que, como se viu, depois de uma dura “negociação” tenha havido algumas mudanças).
Mas pôr-se de acordo sobre um Fundo Europeu, e promover a captação 750.000 milhões no mercado de capitais, é uma decisão de uma importância capital. Por um lado, diminui-se o Orçamento da União Europeia, concedem-se cheques de desconto às contribuições da à Holanda, Dinamarca, Suécia, Áustria e inclusive à Alemanha; e, quando se constata que não está estipulado de onde sairão os recursos, conclui-se e confirma-se que será à custa do endividamento geral, o qual recairá sobre as populações e enriquecerá de novo a Banca privada, que é quem negoceia os créditos.
Ou seja, os grandes governos reúnem os outros governos (recordemos que o Conselho Europeu é a reunião dos chefes de Estado e/ou de governo dos 27), propõem-lhes e impõem – unanimemente – o seu plano, com alguns reajustamentos para contentar inclusive os países proporcionalmente mais ricos, como a Holanda ou Suécia.
Dizer – a partir do ponto de vista da economia e dos interesses capitalistas – que isto é uma vitória dos países do Sul, ou é produto do “patetismo” ou do embuste consciente (optamos por esta última fórmula).
E as instituições europeias – a Comissão, o Parlamento, e inclusive o BCE – ainda que, de forma relutante, aplicam as decisões dos governos, em particular do alemão e do francês. Governos de potências imperialistas que, mais do que nunca, procuram manter o acordo e o mercado dos 27, perante o seu retrocesso das suas vendas no mercado mundial, dominado pela concorrência entre os EUA e a China, feita à custa dos interesses da Europa nesse mercado. Notemos, inclusive, que os acordos entre a China e os EUA são contrários ao Acordo de Livre Comércio da Organização Mundial do Comércio. Ou seja, as duas primeiras superpotências procuram expulsar os competidores europeus. Nestas condições, em particular, a indústria alemã NÃO pode deixar que se afunde a Itália (que, além disso, fabrica uma boa parte das peças destacáveis que ela usa) ou a Espanha, que fabrica automóveis e exporta e nutre a Europa com produtos agroalimentares a baixo preço. Em particular, graças à sobre-exploração da mão-de-obra facilitada pelas reformas laborais.
O porquê da posição do Governo holandês
O discurso de Frank Rutte (Primeiro-ministro holandês) dirige-se, em primeiro lugar, à sua população. Está em marcha nesse país uma nova reforma das pensões de aposentação, perante o colapso financeiro dos Fundos de investimento (que é o pilar fundamental do Sistema de pensões na Holanda). O Governo propõe que o montante das suas pensões dependa “da rentabilidade dos títulos e da evolução da Bolsa de valores”.
Os Fundos de investimento holandeses obtêm os seus investimentos mais rentáveis na compra de obrigações estatais em Itália e em Espanha. Uma dívida (europeia) mutualizada diminuiria os seus ganhos, porque corresponderia a juros menores.
Ou seja – e o povo e os trabalhadores holandeses são as primeiras vítimas – aos Fundos de investimento holandeses interessa-lhes que a Espanha e a Itália se endividem sem riscos para eles. Como será o caso e, sobretudo, no nosso país com a obrigação – pelo artigo 135º da Constituição (aprovado graças a Zapatero e Rajoy, no Verão de 2011) – do pagamento dos juros da dívida pública ser uma prioridade por lei.
Portanto, quem sairá beneficiado com este Acordo histórico, se ele for cumprido? Colocar a pergunta é dar-lhe implicitamente a resposta.
Sem condições?
De facto, NÃO há condições… escritas.
Contrariamente ao que se passou em 2011 e 2012, então com a Troika, não existem agora – formalmente – planos de resgate, votados nos parlamentos nacionais, ditados pela Troika (que já não existe) e aplicados pelos respectivos governos.
A forma mudou, mas quanto ao fundo?
Ninguém dá nada a ninguém.
O Governo deve apresentar os seus projectos, antes de Outubro (daí a ofensiva de Sánchez/Montero para chegar a um acordo com o PP).
E a Comissão Europeia ficou encarregue de analisar esses projectos, e responder em dois meses, para eventualmente começar a financiá-los na Primavera de 2021.
As declarações de uns e de outros são claras: ficaria mal vista uma revogação das reformas laborais (que já não é uma prioridade do Governo), há que voltar a discutir sobre a “sustentabilidade” das pensões. Por isso, reactiva-se confidencialmente o Pacto de Toledo (2) e tenta-se desmantelar a COESPE (3).
E há que procurar recursos para pagar os juros da dívida crescente. Ou seja, subir os impostos. Mas quais?
A 22 de Julho – que rapidez! – a AIReF (4) recomenda uma subida gradual das taxas reduzidas do IVA, com a observação demagógica de que o álcool ou o tabaco têm impostos menores do que no resto da Europa. Mas as taxas reduzidas do IVA afectam os produtos de primeira necessidade; ou seja, a sua subida faz com que paguem os que existem em maior número – a massa dos trabalhadores, pensionistas e jovens.
E entretanto, como anuncia hoje a imprensa, a “Assistência Primária está sobrecarregada”, à beira do colapso. Não, não se trata de um acidente: a epidemia só revelou o desmantelamento do Sistema sanitário, provocado por decénios de cortes.
Perante esta grave situação, do que a população necessita não é de pequenas medidas, mas sim de acabar com esta política e o Sistema, de acabar com as forças que os apoiam, que conduziram a este desastre. Essas forças têm nomes e apelidos.
As mobilizações em curso – dos trabalhadores da Saúde, aos pensionistas ou aos trabalhadores da indústria automóvel – mostram a sua incompatibilidade com os planos do capital e as instituições do Regime monárquico.
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(1) Confederação Espanhola de Organizações Empresariais.
(2) Denomina-se Pacto de Toledo a aprovação – pelo plenário do Congresso dos Deputados de Espanha, durante a sessão de 6 de Abril de 1995 – do documento, previamente aprovado pela Comissão de Orçamento a 30 de Março de 1995, referente à “análise dos problemas estruturais do Sistema de Segurança Social e das principais reformas que deverão ser efectuadas”.
(3) Comissão que decidiu a retirada dos restos mortais de Franco do Vale dos Caídos.
(4) Autoridade Independente de Responsabilidade Fiscal.
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Análise publicada na Carta semanal do POSI (Partido Operário Socialista Internacionalista – Secção espanhola da 4ª Internacional), nº 792, de 27 de Julho de 2020.