As comemorações dos 150 anos do nascimento de Lenine têm aberto caminho para estalinistas e jornalistas burgueses multiplicarem falsificações a respeito da trajectória do revolucionário russo. Os estalinistas inventaram um Lenine infalível, o “guia genial dos povos”, sendo os seus textos como que uma espécie de Bíblia sagrada e Estaline o seu discípulo mais fiel. Os historiadores e jornalistas da burguesia pintaram Lenine como o grande tirano e ditador sanguinário, que teria chegado ao poder por um “golpe de Estado” e preparado o caminho para a brutal ditadura estalinista. Uma rápida passagem pela trajectória de vida do grande revolucionário russo desmente, de imediato, essas falsificações históricas.
Vladimir Ilyitch Ulianov (conhecido por Lenine) nasceu na cidade de Simbirsk, no dia 22 de Abril de 1870. Tornou-se militante revolucionário desde a juventude. A sua trajectória foi construída nas polémicas com os seus camaradas de luta, enfrentando a apodrecida Monarquia russa. Lenine tornou-se um disciplinado militante revolucionário, teórico marxista activo já na clandestinidade, sofrendo as perseguições da Polícia política russa e depois no estrangeiro.
Como membro do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), participou activamente em todos os principais momentos e debates do movimento revolucionário, que se articulava em torno da 2ª Internacional socialista. Esteve directamente ligado à vitória da Revolução russa, de Outubro de 1917, à fundação da 3ª Internacional Comunista (em 1919) e à fundação da União Soviética (em 1922).
Lenine morreu aos 53 anos de idade, em 1924, quando a Revolução soviética se consolidava, depois de quase cinco anos de guerra civil.
Contribuições de Lenine
Com a publicação do seu livro “Que Fazer?” de 1902, surgia uma nova teoria sobre o Partido revolucionário. Nem um pequeno grupo de conspiradores terroristas, nem um flácido partido parlamentar. Em oposição aos Mencheviques – defensores de um Partido aberto e flexível, frágil e reformista – Lenine propôs, como método de organização, o “centralismo democrático”. O Partido teria militantes centralizados politicamente, a partir de uma ampla e real democracia interna. Lenine argumentava que seriam necessários militantes disciplinados, organizados – de forma permanente – e dedicados a ajudar a elevar o nível de compreensão política da classe operária e a sua necessária acção política, única condição para enfrentar os aparelhos repressivos e o controlo dos Estados capitalistas.
A crise da 2ª Internacional – com a adesão das suas alas reformistas ao apoio à guerra imperialista (de 1914-1918) – fez Lenine encabeçar a luta contra Kautsky e a cúpula social-democrata, que se aliava aos governos burgueses dos respectivos países a favor da guerra. Em conjunto com Rosa Luxemburgo, Trotsky e outros, ele age para agrupar a ala revolucionária da Social-democracia, movimento que levaria depois à fundação da 3ª Internacional (em 1919). Integra esse combate a publicação, em 1916, do livro “Imperialismo, estádio supremo do capitalismo” (ver caixa no final).
Com a queda da Monarquia russa, em Fevereiro de 1917, Lenine – então exilado na Suíça – retorna à Rússia para participar na Revolução. O ressurgimento dos Sovietes – agrupando as massas revolucionárias – faz Lenine propor uma viragem na táctica dos Bolcheviques: total independência em relação ao Governo provisório e exigência de “todo o poder aos Sovietes”. Lenine travou duros debates dentro do Partido e dos Sovietes – não era um génio infalível e unânime, como depois os manuais estalinistas o tentaram retratar.
Publica, em 1917, o livro “O Estado e a Revolução”, onde defende que a base do futuro Estado operário seriam os Sovietes, como produto da ampla democracia de massas que nascia e se ampliava. A vitória da Revolução de Outubro, aprovada por delegados soviéticos eleitos por milhões de trabalhadores, quando Trotsky já presidia ao Soviete de Petrogrado, colocava Lenine e os Bolcheviques à cabeça da Revolução.
Lenine contra Estaline
O Partido Bolchevique e a democracia soviética sobreviveram à guerra civil (1918-1922). As perdas foram gigantescas, milhares de mortos, fome, destruição e miséria. No seu último combate político, Lenine antevê uma perigosa ameaça à Revolução em marcha, bem como uma burocratização do Partido, personalizada por Estaline – representando uma camada social de funcionários nomeados, que se aproveitava das dificuldades para garantir privilégios e colocar o Partido sob o seu controlo.
O Testamento de Lenine é uma prova irrefutável da sua oposição a Estaline. A 24 de Dezembro de 1922, ele escreveu nesse Testamento: “O camarada Estaline, após ter chegado a Secretário-Geral, tem concentrado nas suas mãos um poder enorme, e não estou seguro de que irá utilizá-lo sempre com suficiente prudência.” Um dia depois, ele retoma o tema: “Estaline é brusco demais, e este defeito – plenamente tolerável no nosso meio e entre nós (os comunistas) – torna-se intolerável no cargo de Secretário-Geral. Por isso, proponho aos camaradas que pensem na forma de passar Estaline para outro posto, e que nomeiem para este cargo outro homem que se diferencie do camarada Estaline no seguinte aspecto: que seja mais tolerante, mais leal, mais correcto e mais atento com os camaradas, menos caprichoso, etc.”
Resgatar e defender o legado de Lenine
As preocupações e advertências de Lenine – que nesse momento já estava muito doente – não foram suficientes. De facto, o total controlo do aparelho – comandado por Estaline a partir de 1928 – representou uma ruptura e uma negação da Revolução liderada por Lenine: fim da democracia soviética e burocratização do Partido, perseguição e assassinato de militantes opositores, fim do internacionalismo revolucionário, fortalecimento de uma casta burocrática que sugava as riquezas produzidas pela classe operária e a economia planificada. Uma gigantesca máquina de falsificações criou uma identificação imaginária de Lenine com o estalinismo e uma suposta “doutrina marxista-leninista” – visando encobrir essa imensa máquina de falsificações, o confisco das conquistas sociais da Revolução pela burocracia e o terror do estalinismo.
Resgatar e defender o legado do revolucionário Lenine para as futuras gerações de militantes é, portanto, um tema que interessa principalmente ao movimento operário. Não é um tema de interesse apenas para os historiadores.
Imperialismo, estádio supremo do capitalismo
Este livro, escrito por Lenine em plena Primeira Guerra mundial, no ano de 1916, quando estava exilado na Suíça, tem uma enorme actualidade. Longe de ver propostas ou esperanças de salvar, reformar ou esperar uma retoma do progresso da humanidade através do capitalismo, ele defende que a sua sobrevivência – apesar dos avanços tecnológicos – levaria a humanidade a uma permanente espiral de guerras e à concentração de capitais nas mãos de uma minoria.
Lenine qualificou assim o estádio supremo do capitalismo: “Os monopólios, a oligarquia, a tendência para a dominação em vez da liberdade, a exploração de um número cada vez maior de nações pequenas ou fracas por um punhado de nações riquíssimas ou muito fortes: tudo isto deu origem aos traços distintivos do imperialismo, que obrigam a qualificá-lo como capitalismo parasitário, ou em estado de decomposição.”
Isto é mais verdadeiro do que nunca, quando cerca de 2 mil multimilionários detêm mais de 2/3 das riquezas mundiais, num mundo devastado pela pandemia, pelas guerras e pelo desemprego.
Trata-se de um livro actual, para ser lido e relido.
Artigo da autoria de Everaldo Andrade, do jornal “O Trabalho” – cuja publicação é da responsabilidade da Secção brasileira da 4ª Internacional – na sua edição nº 865, de 6 de Maio de 2020.