E, “depois do adeus” à Pandemia?

Pandemia

 “Quando isto passar vão mudar muitas coisas.”

Isto é-nos repetido, vezes sem conta, por políticos e comentadores. Dizem-nos coisas tais como: “Quando passar a crise do Coronavírus” a produção de medicamentos vai deixar de estar concentrada na China e na Índia, e vai ser recuperada pelos países europeus e os EUA; a produção de máscaras e equipamentos de protecção vai deixar de estar localizada na China; vão-se acabar os cortes na Saúde; vai ser criado um Serviço de Saúde ao nível da União Europeia (o qual, de acordo com o que é a UE, só serviria para dinamitar os serviços de Saúde que realmente existem, que são os de cada país); vai ser feita uma repartição mais justa da riqueza… E assim poderíamos continuar até ao infinito, e mais além. É outra vez o conto de fadas de que o capitalismo se pode reformar, que é possível um “capitalismo bom, civilizado”, um “capitalismo com rosto humano”.

Mas quando nos prometem estas coisas, muitos de nós voltamos o olhar para trás, para a crise de 2008! E para as crises anteriores. Também então foram feitas muitas promessas, mas as coisas continuaram iguais. Ou pior.

Devolver a produção aos países mais desenvolvidos?

Para responder a esta pergunta, há que fazer uma primeira consideração. Não se trata de uma questão de boa ou má vontade, mas sim das leis do Sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção, do capitalismo.

Neste modo de produção, os lucros do capitalista – o proprietário dos meios de produção – têm como base a extracção da mais-valia ao trabalhador assalariado, porque ao trabalhador ou trabalhadora é-lhe pago um salário, que deve garantir as condições da sua sobrevivência e da sua família, mas que, em todo o caso equivale somente a uma parte do que produz (a outra parte é a mais-valia). Como acontece que essas “condições de sobrevivência” estão socialmente determinadas (não são as mesmas na Alemanha e no Vietname), a soma do salário directo e diferido varia de país para país. De aí que o capitalista, procurando o máximo lucro, desloque a produção para os países ou lugares onde consiga produzir de forma mais barata. Compensa com os baixíssimos salários a menor qualificação da mão-de-obra.

Por isso, a Siderurgia e a Construção naval encerraram as suas fábricas na Europa e transferiram a produção para a Coreia do Sul e, em seguida, para a China. Do mesmo modo, a indústria têxtil fechou as suas fábricas na Catalunha e transferiu a produção para Marrocos e a Turquia, em seguida fechou neste país transferiu-se para a China, e de aí para o Bangladesh e o Vietname… e assim continuará, procurando onde pagar menos salários e obter maiores lucros.

O mesmo se passou com a produção dos “princípios activos” dos medicamentos. À volta de 80% dos princípios activos dos fármacos usados na Europa e nos EUA são produzidos na Índia e na China, e a Índia tem uma poderosa indústria de produção de medicamentos genéricos.

Do mesmo modo, a produção de máscaras é feita quase exclusivamente na China. Calcula-se que, desde 1 de Março, a China exportou 3.860 milhões de máscaras e 37.5 milhões de batas de protecção.

A única excepção é a indústria militar. Os únicos estaleiros que restam em Espanha produzem barcos para o Exército (e vendem-nos a outros países, como a Arábia Saudita). Mas aqui o que é protegido não é a produção industrial, mas sim o segredo militar, a patente das armas.

Vai isto mudar depois da crise do Coronavírus? Efectuar essa mudança significaria que o capitalista decide fabricar medicamentos ou máscaras em França ou em Espanha, ainda que tenha de pagar salários mais altos. O problema é que o lucro do capitalista provém da extracção da mais-valia, mas é realizado no mercado, como resultado da venda do seu produto. E como vai vender esses remédios ou essas máscaras que saem mais caros que os fabricados na China ou na Índia? Os especuladores, os “Fundos-abutre” proprietários de boa parte das empresas vão continuar a manter o seu investimento nessa empresa que não consegue vender os seus produtos, em lugar de fazê-lo numa empresa chinesa que os vende como pãezinhos?

Aqui não há uma patente submetida a segredo militar. Inclusive os exércitos encarregam a fabricação dos seus uniformes a fábricas têxteis da China ou do Vietname.

Falou-se de devolver à Europa a produção de medicamentos e de produtos sanitários. Escusado será dizer que os produtos siderúrgicos, os barcos e o vestuário continuarão a fabricar-se onde o capitalista consiga maiores lucros.

Uma divisão mais justa da riqueza?

Em 1916, Vladimir Lenine escrevia “O imperialismo fase suprema do capitalismo”, obra onde descreveu a fusão do capital industrial e do capital bancário no capital financeiro, a constituição de um mercado mundial e a concentração da produção em empresas industriais cada vez maiores.

Passou mais de um século, duas guerras mundiais, numerosas crises económicas e o fenómeno descrito por Lenine não fez senão aumentar, desde então.

A ONG Oxfam dizia, no seu Relatório de 2020 sobre as desigualdades mundiais, que “a riqueza dos 1% mais ricos do planeta corresponde a mais do dobro da riqueza de 90% da população mundial (6.900 milhões de pessoas)”. E acrescentava que “2.153 multimilionários entesouram mais riquezas que 4.600 milhões de pessoas, que são 60% da população mundial”.

Arrizabalo e Halphen explicam em “A Verdade” nº 105, que “a Black Rock – empresa dos EUA de gestão de activos – declarava, em Fevereiro de 2019 que, com 14900 trabalhadores, gere 5.97 mil milhões de dólares (equivalente a 7,5% de todo o PIB mundial). Há que ter em conta que, segundo o Mckinsey Global Institute, 10% apenas dos grupos que operam na Bolsa arrecada 80% de todos os ganhos mundiais”. (1)

Pode fazer-se reverter esta tendência, que se tem mantido, e inclusive acelerado, durante mais de cem anos? É possível “essa repartição mais solidária da riqueza”? A Oxfam, que citámos antes, opina que bastaria mudar as políticas fiscais para que as grandes companhias e fortunas pagassem mais impostos. De facto, apenas 4% da receita fiscal mundial provém das grandes fortunas. Haverá que perguntar porque nunca nenhum Governo o fez, em qualquer país do Mundo, nem de “direita”, nem de “esquerda”, nem de “esquerda plural”. Como colocar a coleira com guizo no gato? (ou, como fazer o que parece “impossível”? – NdT). Que Governo pode impor-se a esses 1% mais ricos que açambarcaram 82% da riqueza mundial gerada em 2017? Em última instância, é possível manter-se um Regime democrático quando 1% é dono de tanta riqueza?

Na realidade, a concentração da produção nalgumas poucas empresas é o resultado da necessidade de concorrer, de incorporar maquinarias cada vez mais complexas, e mais caras, uma corrida onde, como assinalava Trotsky: “As empresas grandes gozam de mais vantagens técnicas, financeiras, de organização, económicas e políticas do que as empresas pequenas.”

Não haverá mudança senão a que for imposta pelas classes trabalhadoras

São estas as leis que regem o Sistema capitalista. Por isso, o capitalismo não é reformável, nada vai mudar após a crise do Coronavírus, a menos que o mudem as classes trabalhadoras com a sua mobilização, impondo aos capitalistas conquistas sociais tal como foram impostas – como resultado da luta de classes – o direito à reforma, as férias pagas, a Educação básica obrigatória a cargo do Estado, a existência de serviços de Saúde pública, etc.

Nos últimos anos temos visto todas estas conquistas em perigo, ameaçadas pela voracidade do capital financeiro, que procura aumentar o grau de exploração, a taxa de mais-valia.

Enquanto se mantiver o domínio do capital financeiro, estes ataques vão continuar e todas as conquistas que se arranquem constituirão sempre objectivos a recuperar pelo capital e os seus governos.

No entanto, é certo que quando isto passar muitas coisas vão mudar, mas só se a classe operária – pondo-se à frente de todos os oprimidos – se der os meios para transformar a situação, acabando com o império do capital.

————————

NOTA

(1) Centralização e concentração do capital na época do imperialismo. A VERDADE (revista teórica da 4ª Internacional), nº 105, pg 35-43.

—————————

Transcrição da Carta semanal do Comité Central do POSI (Partido Operário Socialista Internacionalista, Secção espanhola da 4ª Internacional), Nº 779 – de 27 de Abril a 3 de Maio de 2020.

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s