Tem-se falado muito desde há semanas, diariamente nos meios de Comunicação Social, da dimensão da crise em Itália, em Espanha e nos EUA, mas muito menos do Reino Unido. No entanto, com alguns dias de atraso, a curva de mortes devidas ao Coronavírus nos hospitais é mais importante no Reino Unido do que em Itália ou França. E isto, com uma polémica crescente sobre o facto de as mortes nos Lares de idosos ingleses não estarem a ser contabilizadas. No passado dia 15 de Abril, Mike Padgham, presidente do Independente Care Group, uma Associação de Lares de reformados do Yorkshire, estimou no Daily Mail que o vírus pode já ter morto 4.000 residentes no país, para além dos números oficiais. Chris Whitty, o médico Conselheiro-chefe do Governo, admitiu que a contaminação por Coronavírus já tenha afectado 2.000 Lares de aposentados britânicos.
O Reino Unido, que foi a primeira potência imperialista no século XIX e continua a ser um dos países mais ricos do mundo, atingiu um ponto muito baixo em termos de Saúde: de acordo com os números compilados pela enciclopédia Wikipédia online, a partir de um grande número de fontes oficiais, ele é actualmente o 35º país no ranking em termos do número de camas hospitalares per capita (em comparação, o Japão está no topo dessa tabela, a Alemanha em 4º lugar, a França em 10º lugar e os EUA no 32º lugar).
De acordo com a organização King’s Fund (Fundo do Rei), o número total de camas hospitalares em Inglaterra foi reduzido em mais de metade, nos últimos 30 anos, passando de cerca de 299.000 camas em 1987 para 141.000 em 2018. O jornal The Guardian (25 de Novembro de 2019), em comparando com outros períodos de eliminação de camas, conclui que o número de camas hospitalares passou de 144.455 (em Abril-Junho de 2010) para 127.225 (no final de Novembro de 2019), ou seja, menos 17 230.
Ao Sistema de Saúde inglês falta tudo – camas, médicos e pessoal auxiliar – em proporções ainda mais dramáticas do que em Itália ou França.
O apego da população britânica ao seu SNS (NHS na sigla em inglês, ver abaixo) é tal, que ele foi o tema principal da campanha eleitoral do final de 2019. Corbyn tinha acusado Boris Johnson de ter feito um acordo secreto com Donald Trump para entregar o NHS a interesses privados norte-americanos. Boris Johnson, pelo seu lado, depois de ter feito da defesa do NHS um argumento fundamental da campanha para o Brexit, tinha anunciado um aumento impressionante de verbas para o Orçamento do NHS. Todos eles estão preocupados com o impacto na população deste afundamento do NHS.
Porque o que está a amadurecer no Reino Unido perante este desmoronamento do Sistema de Saúde já tinha sido anunciado, em 2016, pela greve histórica dos estagiários hospitalares contra a política do Governo dessa altura, que queria impor-lhes um novo contrato degradando as suas condições de trabalho.
Sinal de advertência…
O NHS: uma conquista crucial que data de 1948
que caiu para 35º lugar, ao nível mundial
O NHS (National Health Service, Serviço Nacional de Saúde britânico), ao qual todo o povo do Reino Unido está profundamente ligado, foi criado em 1948, na sequência da Segunda Guerra Mundial, durante a onda revolucionária que arrancou conquistas sociais de grande envergadura em toda a Europa. No Reino Unido, o NHS é a principal conquista social do período pós-guerra, em conjunto com a nacionalização das minas de carvão e dos caminhos-de-ferro britânicos.
Ao contrário da Segurança Social em França, o NHS não é financiado por quotizações sociais e, por conseguinte, por salários diferidos. É um sistema de cuidados de saúde com financiamento do Estado. Quando foi criado, o NHS assegurava cuidados de saúde gratuitos para todos, sem distinção ou condições especiais.
Muito rapidamente, foram postos parcialmente postos em causa certos cuidados gratuitos, com a introdução, em 1951, do pagamento de uma parte das despesas de odontologia (tratamentos dentários) e, em 1952, com a introdução de uma taxa fixa a ser paga por cada medicamento prescrito.
Mas o princípio fundamental do NHS não foi posto em causa: a hospitalização e as consultas do médico generalista permanecem livres de encargos.
Foi sob o regime de reacção negra do governo de Margaret Thatcher, na década de 1980, que teve lugar uma grande ofensiva contra o NHS. Foram estabelecidos serviços regionais hospitalares (os NHS trusts), obrigados a limitar as suas actividades de acordo com restrições orçamentais, enquanto, até então, o NHS tinha único limite a resposta às necessidades dos pacientes. Esta contra-reforma de Thatcher antecipou, em certa medida, a criação em França, vinte anos mais tarde, das Administrações Regionais de Saúde (ARS).
As consequências desta reestruturação foram a ampliação das listas de espera nos hospitais, a redução de certos tratamentos e o desenvolvimento um Sistema de seguros privados prestadores de cuidados de saúde que oferece, por uma taxa elevada, tratamentos de ponta sem lista de espera.
E não foi a chegada ao poder, em 1997, do governo “New Labor” de Tony Blair – após 18 anos de governo dos Conservadores – que inverteu a tendência, bem pelo contrário.
Blair, com o seu ministro das Finanças Gordon Brown, estabeleceu “parcerias público-privadas” (as famosas PPP) para o financiamento de novas instalações hospitalares. Estas PPP, ao obrigarem os hospitais públicos a pagarem juros sobre o capital investido pelo privado, criaram uma situação de endividamento dramático dos hospitais.
É o afundamento do NHS, desde há décadas, que explica a dimensão da crise sanitária actual no Reino Unido.
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Análise de Daniel Shapira, publicada no semanário Informations Ouvrières – Informações operárias – nº 601, de 22 de Abril de 2020, do Partido Operário Independente de França.