Carta aos deputados que invocam representar o povo trabalhador na Assembleia da República
É com um sentimento misto, de orgulho e de profunda tristeza, que – na passagem dos 44 anos da aprovação da Constituição Portuguesa – assistimos a ser posto à consideração dos deputados na Assembleia da República a renovação do Estado de Emergência, o qual suspendeu o direito à greve, o direito de reunião e o direito de resistência, aí inscritos.
Orgulho, por termos feito parte daqueles que, nesse ano de elaboração da Constituição, procuraram ser uma voz na Assembleia Constituinte do movimento de fundo que mobilizou todas as camadas da população trabalhadora, de Norte a Sul do país. Nos principais centros fabris e nas aldeias mais remotas eram desmanteladas as instituições da ditadura e criadas formas de organização autónoma, dos sindicatos livres e independentes às Comissões de Trabalhadores e Comissões de Moradores, das Unidades Colectivas de Produção às Cooperativas Agrícolas e de Distribuição.
Orgulho, por termos feito parte daqueles que nos batemos, denodadamente, para que ficassem inscritos na Constituição direitos democráticos e sociais abolidos durante 48 anos, com os contornos que a população trabalhadora mobilizada queria ver nela consignados.
Orgulho, por termos feito parte daqueles que ajudaram a inscrever e consignar direitos, como o direito de livre associação sindical, o direito à constituição de Comissões de Trabalhadores e suas atribuições, o direito à greve sem restrições, o direito à Saúde, à Educação Pública e à Segurança Social.
E, ao mesmo tempo, uma profunda tristeza, por estarmos a assistir – num dia que deveria ser de comemoração de uma data que deixou uma marca indelével na vida política e social do nosso país – a um golpe, pondo em causa alguns destes direitos, e que, a ser consumado, poderá ter consequências de enorme gravidade, nos tempos que se perfilam, para a vida e o bem-estar do povo trabalhador do nosso país. Não nos esqueçamos que ele vem no seguimento de derivas autoritárias já assumidas, como a requisição civil dos motoristas de matérias perigosas e dos estivadores do Porto de Lisboa.
Todos temos consciência da situação dramática que se vive em Portugal e no mundo inteiro, acelerada pela pandemia do corona vírus, mas queríamos deixar aqui um apelo, a partir da nossa própria experiência como deputados constituintes, aos deputados dos partidos e forças políticas que invocam representar o povo trabalhador na Assembleia da República.
Tal como não foi possível defender e inscrever os direitos democráticos e sociais na Constituição Portuguesa, através de uma política de unidade nacional – com as forças políticas da direita, vindas ou não da “ala liberal” do antigo Regime – também não é possível, com uma política da mesma natureza, encontrar as respostas para salvar as vidas e tomar as medidas que permitam construir um futuro novo para o país e para a maioria do povo.
O entusiasmo expresso pelos líderes e deputados dos partidos da direita – apelando à unidade nacional em torno do Decreto proposto pelo Presidente da República, que instituiu o Estado de Emergência, com a suspensão do direito à greve, do direito de reunião e de resistência – ilustra, com clareza, o caminho que estas forças propõem.
2 de Abril de 2020
Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira
Deputados constituintes 1975/76